O desenvolvimento do conhecimento sobre o outro e o ofício do antropólogo

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Transcrição:

O desenvolvimento do conhecimento sobre o outro e o ofício do antropólogo 2 As tradições disciplinares do pensamento antropológico Início de conversa Expõe-se, a seguir, uma breve síntese da evolução do pensamento antropológico, que se instaura com o Iluminismo. Pode-se apresentá-lo segundo as suas diversas tradições disciplinares, as quais, ao contrário do que se passa com as ciências naturais, não se sucedem, mas coexistem ao longo do tempo, ou seja, uma nova tradição não elimina as anteriores (OLIVEIRA, 1985).

12 O desenvolvimento do conhecimento sobre o outro e o ofício do antropólogo Mãos à obra Tópico 1 O evolucionismo e o particularismo histórico A diversidade cultural e as diferenças de desenvolvimento entre as sociedades recebem uma primeira explicação mais elaborada e dotada de legitimidade científica com o evolucionismo unilinear, formulado especialmente por Edward Tylor e Lewis Morgan na segunda metade do século XIX. Segundo o evolucionismo unilinear, elaborado no otimista contexto vitoriano e marcado pela ideia de progresso, a diversidade cultural resultaria dos diferentes estágios de desenvolvimento em que se encontravam os povos ou sociedades dispersos pelo planeta. A evolução das sociedades e culturas ocorreria, portanto, de maneira previsível e uniforme, através de um caminho único, segmentado em três etapas de desenvolvimento: selvageria, barbárie e civilização. Atribuía-se a diversidade existente entre eles à posição que ocupavam nos diferentes estágios evolutivos (LARAIA, 1989). Por isso, os grupos atrasados, os nossos antepassados contemporâneos, seriam sobreviventes de etapas já cumpridas pelos povos mais civilizados os europeus. Para Gérard Leclerc, o evolucionismo unilinear ancorava-se em uma perspectiva histórica, cuja ênfase estava posta nas relações materiais de produção, reduzindo a socie- dade a um momento, a um estado evolução técnico-econômico. O autor também observa que essa teoria supõe a unidade psíquica do homem, donde a recondução de sua diversidade a uma situação histórica determinada, pois as sociedades são alinhadas segundo um contínuo homogêneo e único, assinalado por cortes pertinentes: as fases de avanço' (LECLERC, 1973: 22-23). De acordo com Morgan (1974: 253), o homem, que existe no planeta desde tempos remotíssimos e incomensuráveis, evoluiu a partir de um baixo nível e daí deu início à sua dura marcha, a qual, por sua vez, obedecia a um único processo histórico. Uma concepção nitidamente etnocêntrica fundamentava a percepção evolucionista, pois os europeus atribuíam a si próprios o estatuto de povos mais avançados ( civilizados ), distribuindo os nativos americanos, africanos, asiáticos e os aborígenes australianos pelos estágios primordiais, os mais atrasados, da evolução da humanidade. A rigidez dessa percepção acerca do desenvolvimento das sociedades e culturas humanas e o seu indisfarçável ranço etnocêntrico não obscurecem, todavia, a sua maior virtude: o seu antirracismo, embutido no postulado da unidade psíquica da humanidade, ou seja, na unidade da espécie humana, segundo o qual todos os grupos mostram-se portadores de igual potencial criativo. O evolucionismo não atribuía as disparidades entre os povos a predisposições mentais congênitas, pois essas assimetrias na trajetória do progresso resultariam de específicas condições técnicas e econômicas (LAPLANTINE, 1988: 72-73).

Tema 2 As tradições disciplinares do pensamento antropológico 13 Procedendo à crítica da hipótese segundo a qual alguns povos seriam inferiores aos outros, Morgan lembra que as populações ditas civilizadas descenderiam de semitas e arianos. E acrescenta: (...) as tribos arianas e semíticas faziam parte da massa indistinta dos bárbaros. Ora, como estas tribos nasceram de remotos antepassados bárbaros e, mais remotamente ainda, de antepassados selvagens, perde todo o valor a distinção entre raças normais e raças anormais (MORGAN, 1974, v. 2: p. 251; grifo do autor). Uma concepção divergente, a de que cada sociedade evolui por caminhos próprios, ao sabor de sua história particular, sendo múltiplos os rumos para o desenvolvimento da cultura ao contrário do modelo proposto pela simplificada estrutura dos tríplices estágios de desenvolvimento, introduz a tese do evolucionismo multilinear, acompanhado da noção de relativismo cultural (LARAIA, 1989). Deve-se essa reação ao evolucionismo unilinear do século XIX às contribuições de Franz Boas, alemão radicado nos EUA, introdutor do método comparativo na antropologia. Reconstituir a evolução das sociedades humanas em sua totalidade não figura nas ambições dessa tradição antropológica, adepta do particularismo histórico, isto é, da tese segundo a qual cada cultura segue seus próprios caminhos em razão dos diferentes eventos históricos que enfrentou. Assim, cada grupo cultural tem a sua própria história, em parte devido a fatores peculiares, internos ao próprio grupo, em parte em razão de influências externas, exercidas por outros grupos (BOAS, 1966: 286). Boas e seus discípulos admitem apenas a reconstituição histórica de povos ou regiões particulares e a comparação da vida social de diferentes grupos cujo desenvolvimento segue as mesmas leis (LARAIA, 1989). A evidência histórica só poderia ser alcançada mediante o acúmulo dados empíricos exaustivos, sem os quais é impossível proceder a reconstruções seguras, fundamentadas em fatos passíveis de interpretação (MOURA, 2004: 210). Para Boas e seus seguidores, cada sociedade deve ser estudada como uma totalidade autônoma, assim como o significado de cada costume só pode ser compreendido se estiver relacionado ao contexto específico no qual se inscreve (LAPLANTINE, 1988: 77-78). Tópico 2 O funcionalismo e a escola francesa No início do século XX, Bronislaw Malinowski, polonês radicado na Inglaterra, introduz inovações profundas na prática e na teoria antropológicas. Seu mais famoso estudo, Os Argonautas do Pacífico Ocidental, resulta de muitos meses de trabalho de campo entre os nativos das ilhas Trobriand, acanhado arquipélago localizado na região da Nova Guiné. Fundador do funcionalismo cultural, sua obra exibe uma contradição: à enorme riqueza, vivacidade e complexidade da descrição etnográfica opõe-se o simplismo de certas concepções teóricas (DURHAM, 1986: 7). Para Malinowski, somente o prolongado convívio com um povo primitivo possibilita o estudo meticuloso de uma cultura diferente daquelas de configuração europeia. O seu modo de conceber a antropologia enfatiza e valoriza a especificidade de cada cultura, a coleta de dados empíricos, a observação do comportamento manifesto dos pesquisados e seu conteúdo emocional (DURHAM, 1986: 10).

14 O desenvolvimento do conhecimento sobre o outro e o ofício do antropólogo O funcionalismo cultural rompe com os evolucionistas e suas grandes teorizações conjeturais sobre o progresso da humanidade através de estágios sucessivos de desenvolvimento. O olhar de Malinowski centra-se em questões de menor alcance, propondo, por exemplo, o estudo exaustivo de um único traço cultural relevante um costume, como o complexo sistema de trocas trobriandês conhecido como Kula, por exemplo, para desvendar o perfil da sociedade investigada (LAPLANTINE, 1988: 80). A tradição funcionalista se atém ao estudo de uma sociedade tomada como uma totalidade coerente, objetivando compreender o modo como ela funciona no momento em que está sendo metodicamente observada, negligenciando a sua história para verificar como ela se torna viável, para os seus membros, através dos aspectos que a constituem (LAPLANTINE, 1988: 80-81). Esse olhar funcionalista estabelece a máxima de que a realidade de uma dada sociedade só pode ser compreendida enquanto sistema, uma síntese integrada de múltiplos aspectos, e não uma mera coleção de manifestações desconectadas entre si (DURHAM, 1986: 11; MERCIER, 1969). A ênfase na tese funcionalista de que uma sociedade funciona a partir da integração de suas instituições para satisfazer as necessidades de seus integrantes põe em primeiro plano a estabilidade do tecido social, colocando no velamento a dinâmica típica dos conflitos, da mudança social e das contradições dinâmica esta constitutiva, em maior ou menor grau, da natureza da vida sociocultural. Em compensação, os trabalhos de Malinowski revelam uma ampla, profunda e humana percepção compreensiva do outro, distanciando-se assim da postura de boa parte das obras de seus antecessores, muito identificados, etnocentricamente, com a própria cultura (LAPLANTINE, 1988). Foi-se o tempo em que podíamos tolerar relatos que nos apresentavam o nativo como uma cari- catura distorcida e infantil do ser humano. Essa imagem é falsa e, como muitas outras do mesmo tipo, deve ser destruída pela ciência (MALINOWSKI, 1986: 34). /conc} Boas e Malinowski receberam uma formação acadêmica distanciada do campo das humanidades, o que talvez tenha contribuído para que esses dois pioneiros adotassem o modelo positivista das ciências naturais de resto, em voga naquela época, com ênfase na coleta de dados empíricos, prática que constituiu a própria etnografia enquanto modalidade de pesquisa e descrição minuciosa das realidades investigadas. Todavia, faltou a ambos a criação de um sólido instrumental teórico e metodológico capaz de conferir especificidade à antropologia. Essa tarefa coube à tradição francesa, encabeçada por Émile Durkheim e Marcel Mauss, dotados de formação filosófica e sociológica. Para Durkheim e demais integrantes da escola francesa, os fatos sociais são objetivos, exteriores e anteriores aos indivíduos, e a realidade social não se reduz à experiência, à consciência ou à percepção dos membros de uma sociedade, pois a consciência coletiva é mais do que a soma das consciências individuais. Em outras palavras, os fatos sociais são autônomos e coercitivos, são coisas, e só se pode explicá-los desde que referidos e relacionados a outros fatos sociais (LAPLANTINE, 1988: 88-89). Importava, para Durkheim, delimitar a especificidade do social, de modo que a sociologia tomasse para si um objeto próprio os fenômenos sociais, diferenciado do campo de outras disciplinas científicas, especialmente da psicologia.

Tema 2 As tradições disciplinares do pensamento antropológico 15 Durkheim não atribuiu à antropologia o estatuto de uma disciplina autônoma, mantendo-a no corpus da sociologia. Coube a Marcel Mauss a tarefa de inverter os termos e conferir autonomia à nossa ciência, propondo que a sociologia encontrasse um lugar no âmbito da antropologia. De todo modo, Mauss amplia os horizontes da antropologia, especialmente por meio da percepção de que o homem deve ser considerado em sua totalidade, e não apenas em sua dimensão social ou cultural, muito embora os fatos sociais predominem sobre os biopsicológicos. Em seu célebre ensaio As técnicas do corpo, por exemplo, Mauss escreve que uma visão clara a respeito do modo como o corpo é utilizado não poderia ser alcançada desconsiderando-se os seus aspectos anatômicos ou físicos, tampouco os psicológicos e sociológicos. É o tríplice ponto de vista, o do homem total', que é necessário (1974: 215). Essa posição central atribuída à noção de totalidade está posta também em seu mais famoso trabalho, o Ensaio sobre a dádiva, em que Mauss aponta a existência de um conjunto muito complexo de fatos, nos quais tudo o que constitui a vida propriamente social das sociedades que precederam as nossas se mistura: Nesses fenômenos sociais totais'(...) exprimem-se, de uma só vez, as mais diversas instituições: religiosas, jurídicas e morais estas sendo políticas e familiares ao mesmo tempo ; econômicas estas supondo formas particulares da produção e do consumo, ou melhor, do fornecimento e da distribuição ; sem contar os fenômenos estéticos em que resultam esses fatos e os fenômenos morfológicos que essas instituições manifestam (MAUSS, 1974: 41). Fig. 2.1 Marcel Mauss / Fonte: CEPA Os fenômenos sociais totais como é o caso do sistema de troca investigado por Mauss descortinam para o pesquisador a oportunidade privilegiada de captar o perfil de uma sociedade, como Malinowski também percebera. Contudo, para bem apreendê-los, não basta examiná-los somente de fora, como uma coisa, mas também de dentro, como uma realidade vivida. Ora, o que caracteriza o modo de conhecimento próprio das ciências do homem é que o observador-sujeito, para compreender seu objeto, esforça-se para viver nele mesmo a experiência deste, o que só é possível porque esse objeto é, tanto quanto ele, sujeito (LAPLANTINE, 1988: 91). Tópico 3 O estruturalismo e a antropologia interpretativa O estruturalismo francês, na antropologia, cujo maior expoente é Claude Lévi-Strauss, não deixa de ser tributário das contribuições pioneiras de Durkheim e Mauss. O próprio Lévi-Strauss reconhece a extensa influência das obras de Mauss em sua orientação intelectual. As maiores ressalvas à abordagem estruturalista dizem respeito ao excessivo formalismo contido nos trabalhos de Lévi-Strauss (que concede primazia aos conceitos de estrutura e sistema); ao seu pressuposto de que há um substrato universal da humanidade

16 O desenvolvimento do conhecimento sobre o outro e o ofício do antropólogo uma base comum, difícil de ser provada, pois repousaria no inconsciente coletivo ou na identidade das estruturas mentais humanas; à diminuta importância do tempo histórico e dos dados empíricos em suas interpretações (MERCIER, 1969). Lévi-Strauss empresta de outras disciplinas, em especial da linguística estrutural, instrumentos úteis para o estudo de alguns domínios da vida social, como, por exemplo, os fatos passíveis de serem considerados do mesmo modo que a linguagem. Nessa medida, almeja construir uma ciência dos signos e dos significados. Aproveitando-se também de modelos matemáticos e das contribuições de Mauss relativas à reciprocidade, Lévi-Strauss propõe inovadoras soluções para problemas clássicos da antropologia, como o da proibição do incesto e do totemismo (MERCIER, 1969: 144-145). O método estruturalista atinge a sua maior eficácia quando se aplica a um conjunto cultural relativamente homogêneo, ou no qual existiram culturas diversas construídas sobre fundamentos em grande parte comuns, podendo então seguir as transformações sofridas por um sistema, assinala Mercier (1969: 144), ressalvando que, por essa razão, esse método corre o risco de incidir em conjecturas inaceitáveis. Lévi-Strauss postula a existência de um limitado número de possíveis estruturações de elementos culturais, um restrito número de invariantes, como também finitas seriam as possibilidades de sua combinação no parentesco, na religião etc., a despeito de sua extraordinária variedade empírica. No primeiro parágrafo de Uma sociedade indígena e seu estilo, capítulo de Tristes trópicos (1958: 187), Lévi-Strauss expõe a convicção de que o conjunto de costumes de um povo é sempre marcado por um estilo: eles formam sistemas. Estou persuadido de que esses sistemas não existem em número ilimitado, e que as sociedades humanas, como os indivíduos nos seus jogos, seus sonhos e seus delírios, jamais criam de maneira absoluta, mas se limitam a escolher certas combinações num repertório ideal que seria possível reconstituir. Se fosse feito um inventário de todos os costumes observados, de todos os imaginados nos mitos, e também dos evocados nos jogos das crianças e dos adultos, dos sonhos dos indivíduos sãos ou doentes, e das condutas psicopatológicas, poder-se-ia estabelecer uma espécie de quadro periódico como o dos elementos químicos, em que todos os costumes reais ou simplesmente possíveis aparecessem agrupados em famílias, e no qual só nos restaria reconhecer os que as sociedades efetivamente adotaram. O estruturalismo realiza uma passagem do plano consciente para o inconsciente, do sentido para o sistema. O inconsciente da sociedade se manifesta por meio de leis derivadas do inconsciente estrutural, situado no ponto de encontro entre a natureza e a cultura. O estudo dos mitos e de outras manifestações pode levar ao desvelamento dessas leis. Ou seja, tanto para o estruturalismo quanto para a etnopsiquiatria (...) o sentido do que fazem os homens deve ser procurado menos no que dizem do que no que encobrem, menos no que as palavras expressam do que no que escondem (LAPLANTINE, 1988: 133). Fig. 2.2 Claude Lévi-Strauss / Fonte: CEPA

Tema 2 As tradições disciplinares do pensamento antropológico 17 Para finalizar este segmento, que oferece ao leitor uma síntese das principais tradições disciplinares da antropologia, cabem algumas palavras a respeito da antropologia interpretativa, orientação cujo nome mais expressivo é Clifford Geertz, de nacionalidade norte-americana. Sua obra, A interpretação das culturas, influenciou toda uma geração de antropólogos. O pensamento, tido como coisa social, é um elemento central nas concepções de Geertz, mas não o pensamento como algo exterior ao estudioso, pois requer uma interpretação e, por via da interpretação, essa coisa social é transcrita no horizonte do sujeito do conhecimento. No limite, o estudo comparativo não é mais do que uma tradução cultural, promovendo a pretendida transferência de sentido. A posição histórica do pesquisador adepto do interpretativismo jamais é anulada, mas interiorizada, resgatada como condição do conhecimento. Conhecimento que, abdicando de toda objetividade positivista, realiza-se no próprio ato da tradução' (OLIVEIRA, 1985: 199). Geertz elabora um conceito de cultura essencialmente semiótico: Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e sua análise. A antropologia, por consequência, deve ser encarada como uma ciência interpretativa, à procura do significado, e não como uma ciência natural, à procura de leis (GEERTZ, 1978: 15). O antropólogo surge aqui como aquele que, por meio de descrições densas, procura estabelecer uma leitura dos fatos investigados. As tradições disciplinares supramencionadas podem ser agrupadas em dois grandes tipos fundamentais: as de cunho empirista (esco- la britânica e histórico-cultural) e as feitio intelectualista (escola francesa e interpretativa). Contudo, a categoria tempo está nelas diferentemente contemplada: a escola francesa (racionalista e estruturalista), assim como a britânica (empiricista e estrutural-funcionalista) são marcadas por uma perspectiva sincrônica, atemporal. De outro lado, a antropologia interpretativa (hermenêutica) e a escola histórico-cultural (culturalista) caracterizam-se pela perspectiva diacrônica, temporal ou histórica (OLIVEIRA, 1985). Com o amadurecimento do saber antropológico, malogram antigas teses dos determinismos biológico, histórico e geográfico, acumulando-se evidências de que a cultura não reage mecanicamente às pressões do meio físico ou às predisposições genéticas dos humanos. Fig. 2.3 Clifford Geertz Na verdade, a cultura age seletivamente, e a história cultural do grupo constitui um filtro decisivo para suas ações (LARAIA, 1989). Esses avanços foram obtidos não apenas em razão do aprimoramento teórico da antropologia, mas também por meio das informações metodicamente recolhidas diretamente por antropólogos em suas pesquisas de campo. Agora que terminamos a leitura do Tema 2, vamos acessar a Aulaweb para revisar e aprofundar nossos conhecimentos por meio de vídeos, exercícios e autotestes, entre outros.