A LEI DO FEMINICÍDIO COMO DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS DA MULHER ABSTRACT

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Transcrição:

A LEI DO FEMINICÍDIO COMO DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS DA MULHER Amanda Viana de Amorim Teixeira 1 RESUMO Este artigo tem como objetivo demonstrar, através da análise histórica, a naturalização dos processos socioculturais que levam a submissão da mulher no contexto da sociedade contemporânea. A partir da análise bibliográfica de renomados autores, demonstraremos como a inferioridade da mulher se torna natural e a função que ela exerce na reprodução do modo de produção capitalista. Além disso, realizaremos uma breve análise de como essa submissão leva a violência, chegando até ao feminicídio. Palavras-chave: Propriedade privada. Gênero. Patriarcado. Feminicídio. ABSTRACT This article aims to demonstrate through historical analysis, the naturalization of socio-cultural processes that lead to submission of women in contemporary society. From the literature review of renowned authors, demonstrate how the inferiority of women becomes natural and the role it plays in the reproduction of the capitalist mode of production. In addition, we will have a brief analysis of how this submission leads to violence, even to the femicide. Keyword: Private property. Gender. Patriarchy. Femicide. 1 Estudante de Pós-Graduação. Universidade Federal de Alagoas (UFAL). E-mail: amanda.vi82@bol.com.br

1. INTRODUÇÃO O presente estudo faz parte das reflexões realizadas enquanto aluna do mestrado em Serviço Social da Universidade Federal de Alagoas UFAL. Tem por objetivo a análise histórica dos processos sociais, econômicos e político que estão na base das relações sociais de produção e reprodução da sociedade de classes. No âmbito do desenvolvimento dessas sociedades, a desigualdade entre homens e mulheres, nos leva ao necessário entendimento da história do patriarcado. Ao mesmo passo que, a história do patriarcado não pode ser contada sem a devida relação com o surgimento da propriedade privada e da divisão social e sexual do trabalho. Trataremos de apresentar na primeira seção desta produção o debate existente sobre o conceito de gênero na sociedade brasileira, bem como, a identidade social da mulher é construída socialmente. Partimos da problematização teórica do determinismo biológico dado pelo sexo. Tal problematização assinala como se manifesta as diferentes atribuições dadas a homens e mulheres dentro da divisão social do trabalho, e os diferentes pressupostos que levaram a naturalização dos processos socioculturais dados como biológico. Assim, na segunda seção, trazemos para a discussão o surgimento da suposta inferioridade da mulher em relação ao homem, e como ela desempenha papel fundamental na reprodução do modo de produção presente. Na terceira e ultima seção, elencamos a discussão sobre a violência contra a mulher, bem como a nova abordagem dada pelo Sistema de Justiça Criminal brasileiro com a modificação do código penal, que ganha uma nova compreensão do crime de homicídio contra a mulher, caracterizando-o como crime hediondo. Assim, a análise que ora realizamos ganha relevância no tempo presente, ao permitir a compreensão crítica dos processos socioculturais, bem como, demonstra que a violência contra a mulher é construída socialmente e os instrumentos legais conquistados pela sociedade não conseguem acabar com os crimes, apenas minimizam os dados.

2. A Lei do feminicídio como defesa dos direitos humanos da mulher O debate acerca do conceito de gênero na sociedade brasileira é algo recente. Tem origem nos anos de 1960 e 1970 com a efervescência do movimento feminista e dos diálogos realizados entre intelectuais das diferentes áreas do conhecimento. A obra de Simone de Beauvoir O Segundo Sexo, de 1949, é considerada de grande relevância para a construção do conhecimento sobre gênero. Beauvoir apontava que ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Em outras palavras, a identidade social da mulher é construída socialmente. A partir da educação recebida, machos e fêmeas tornam-se homens e mulheres. Na sociedade brasileira homens e mulheres não realizam o mesmo papel. Essa característica não é específica do Brasil, contudo consideremos o contexto brasileiro para análise aqui realizada, uma vez que buscaremos nos deter nos avanços que a lei do feminicídio representa para a sociedade brasileira. A naturalização dos distintos papeis do homem e da mulher, é incentivada pelas necessidades inerentes a sociedade, considerando os âmbitos que cada categoria de sexo deve atuar no contexto social. O cuidado com os filhos é tradicionalmente tarefa feminina e permanece sendo mesmo quando a mulher realiza atividade remunerada extra lar. O máximo que se consegue é a atribuição dessa atividade a outrem expressamente assalariado para esta finalidade. Contudo, conforme Safiotti (1987, p. 8) esta permissão só se legitima verdadeiramente quando a mulher precisa ganhar seu próprio sustento e dos filhos ou ainda complementar o salário do marido. Assim torna-se evidente o papel atribuído a mulher de ser a responsável pelo cumprimento das atividades domésticas. Este aspecto é resultado da capacidade da mulher de ser mãe e converge para a afirmação do pensamento natural de que a mulher deve se dedicar as atividades domésticas. A compreensão de um fenômeno natural, ordenado de distintas maneiras por sociedades diferentes, estabelece a dimensão sociocultural de determinado fenômeno. Considerando a comunidade em que nasce, a mulher desempenha diferentes papeis, a depender de como recebem as primeiras orientações. Safiotti (1987, p. 10) explica que rigorosamente, os seres humanos nascem machos ou fêmeas. E através da educação que recebem que se tornam homens e mulheres. A identidade social é, portanto, socialmente construída. Se, diferentemente das mulheres de certas tribos indígenas brasileiras, a mulher moderna tem seus filhos geralmente em hospitais, e observa determinadas proibições, é porque a sociedade brasileira de hoje

construiu desta forma a maternidade. Assim, esta função natural sofreu uma elaboração social, como alias, ocorre com todos os fenômenos naturais. É próprio da espécie humana elaborar socialmente fenômenos naturais. A marca sociocultural é presente e naturalizada nas diferentes esferas da sociedade, e decantar a natureza do que socialmente sofreu intervenção humana é muito difícil, principalmente quando se refere a sociedade com o teor de desenvolvimento tecnológico muito avançado. Nesse sentido, do mesmo modo que nas sociedades com alto nível de desenvolvimento há evidentes traços da intervenção humana na natureza, consideremos a tendência crescente do fenômeno inverso, a naturalização dos processos socioculturais. Evidentemente que ao considerar o fato da mulher ser responsável pelo trabalho doméstico, estamos naturalizando um aspecto socialmente construído, bem como, fortalecendo a subserviência da mulher ao homem. O impacto desse fenômeno sociocultural suscita consequências desumanas para a mulher, que passa a ser responsabilizadas por campos de atuação que reforçam a inferioridade da mulher. É evidente que a identidade social do homem e da mulher é determinada historicamente e construída a partir do processo histórico-social do modo de produção vigente na sociedade. Os papeis sociais divididos, que suscitam relações de desigualdade entre as partes, mostram-nos que a relação que homens e mulheres exercem uma única finalidade, alimentar a reprodução do modo de produção a partir da divisão sexual do trabalho imprescindível a sua reprodução. Portanto, as relações entre homens e mulheres desempenham o papel de instrumentos de dominação e manutenção da ordem social vigente. Com a divisão do trabalho, na qual todas estas contradições estão dadas e que repousa, por sua vez, na divisão natural do trabalho na família e na separação da sociedade em diversas famílias opostas umas das outras, dá-se ao mesmo tempo a distribuição, e, com efeito, a distribuição desigual, tanto quantitativa como qualitativamente, do trabalho e de seus produtos. Ou seja, a propriedade, que já tem seu núcleo, sua primeira forma, na família, onde a mulher e os filhos são escravos do marido. (MARX E ENGELS, 1993, p. 46). Desse modo, o surgimento da propriedade privada determinou que a divisão sexual do trabalho se transformasse em instrumento de exploração e dominação da mulher. Contudo, essa divisão não definiu essa dominação. Dito de outra forma, com a emergência da propriedade privada a divisão sexual do trabalho é apropriada como instrumento de submissão da mulher ao homem, entretanto o que determinou a hierarquização entre os gêneros, sem dúvida, partiu do advento da propriedade privada. A identidade conferida socialmente à mulher, como também ao homem passa a ser estabelecida pelas atribuições distintas de papeis que são determinados pela divisão social do trabalho, desempenhando

papel fundamental na reprodução do modo de produção. Ou seja, ao realizarem o cumprimento das atividades cotidianas, delimitadas pela própria divisão social do trabalho, as diferentes categorias de sexos exercem papel fundamental na reprodução do modo de produção. A suposta inferioridade da mulher A força física da mulher é considerada como elemento decisivo na divisão sexual de tarefas. O cuidado com a casa e com os filhos constitui tradicionalmente tarefa feminina, e mesmo quando a mulher desempenha alguma atividade extra lar, essa é caracterizada como complemento a atividade do homem. Da mesma forma, o homem recebe a tarefa de desempenhar o sustento da família, e mesmo quando sua companheira realiza alguma atividade remunerada, essa passa apenas a desempenhar o papel de ajudante nas despesas domésticas. Contudo, as características físico-biológicas das mulheres servem para reforçar a ideia de que é natural a mulher realizar atividades domésticas, enquanto o homem seja o provedor do sustento familiar através do desempenho de atividades nos espaços públicos da sociedade. Acredita-se que o homem inicialmente dominou a mulher através da força, uma vez que esta é maior nos homens que nas mulheres. No entanto sabemos que existem exceções para toda a regra. Em sociedade que não apresentam um grau elevado de desenvolvimento tecnológico, a detenção da força é uma vantagem. Porém, nas sociedades atuais onde a máquina está presente nos diferentes espaços, ser detentor de força física não apresenta vantagens, visto que qualquer pessoa pode desempenhar a função. Assim, nesses tipos de sociedade, a desvantagem da força da mulher em relação a força do homem não deveria ser motivo de desvantagem e discriminação. Contudo, recorre-se com frequência a esse assunto, com o objetivo de discriminar as mulheres. Safiotti (1987) explica que o objetivo não é provar para a sociedade a suposta superioridade feminina ou masculina. O assunto só é trazido com o objetivo de mostrar que não existe ciência biológica que prove a inferioridade da mulher em relação ao homem. Busca-se com frequência a afirmação dessa inferioridade através do argumento de que as mulheres são menos inteligentes que os homens. Contudo, a ciência já provou que a inteligência não é uma dádiva de determinado sexo, mas ela é desenvolvida e estimulada nos diferentes espaços em que o indivíduo frequente desde a infância. Lógico que, se os homens apresentam mais estímulos que as mulheres, com oportunidades de estudar, trabalhar e de desenvolver o seu cognitivo, logicamente que a sua inteligência vai apresentar um potencial maior. Da mesma forma acontece com crianças que vivem nas ruas ou em orfanatos, o

estimulo que recebem é quase nenhum, e suas potencialidades acabam sendo esquecidas e pouco desenvolvidas. Dessa forma Safiotti (1987, p. 14) explica que nao é difícil concluir sobre as maiores probabilidades de se desenvolver a inteligência de uma pessoa que frequenta muitos ambientes, o que caracteriza a vida de homem, em relação a pessoas encerradas em casa durante grande parte do tempo, especificidade da vida de mulher. Aliás, o dito popular lugar de mulher e em casa é eloquente em termos de imposição da ideologia dominante. Em ficando em casa todo ou quase todo o tempo, a mulher tem menor número de possibilidades de ser estimulada a desenvolver suas potencialidades. E dentre estas encontra-se a inteligência. Nesse sentido, chegamos a conclusão de que a inferioridade feminina é algo socialmente construído, com o objetivos definidos de exploração e dominação. Busca-se cotidianamente reafirmar o que se encontra exposto no art. 5º da Constituição Federal de 1988: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Contudo, esses aspectos socioculturais não se transformam a partir de preceitos constitucionais, haja vista que é algo socialmente construído e enraizado sobre as bases de uma sociedade que exerce a autoridade patriarcal sobre as mulheres. A mulher passa a desempenhar o papel de reprodutora da força de trabalho, enquanto o homem ocupa-se dos espaços de produção. Assim, embora alguns avanços venham ocorrendo nos espaços de atuação da mulher no contexto extra lar, elas continuam exercendo a responsabilidade do espaço doméstico. Agora a jornada de trabalho da mulher passa a ser dividida entre o espaço doméstico e o espaço mercantil. (BRUSCHINI, 2000). A violência contra a mulher Como vimos, a naturalização de processos socioculturais leva submissão e exploração da mulher nos diversos âmbitos da vida em sociedade. Essa naturalização de processos biológicos dado como social, são construídas historicamente no seio da sociedade que tem o capitalismo e o patriarcado como alicerce. Só o fato da mulher ser considerada um ser humano, leva-nos a entender que toda dignidade deve ser conferida a ela. Ser considerada submissa ao sexo oposto, não dá o direito de ser tratadas com violência. No entanto, inúmeros casos de violência são registrados a todo o momento, e muitos outros nem sequer são registrados, o que leva ao desconhecimento da verdadeira estatística de quantas mulheres são violentadas ao ano. Safiotti (1987) explica que fatos naturais, como sexo e cor, intensificam a dominação e a exploração. Apenas a parcela da população que apresentam os traços de dominação, ou seja, aqueles machos, brancos,

adultos e ricos, apresentam possibilidade de aumento de riqueza. Contudo, a possibilidade de riqueza que essa parcela da população apresenta é apenas a riqueza material. O crescimento enquanto ser humano, conseguida através da relação do dar e do receber, não pode ser exercido por desiguais. Até mesmo os poderosos são ceifados dessa relação, eliminando as dimensões humanas da personalidade. Além de ser macho, branco, adulto e rico, o homem precisa ser também heterossexual. Dessa forma, a imagem do machão pertence à heterossexualidade, independente dos seus desejos mais secretos, sua educação será direcionada para esse modelo. No Brasil, os dispositivos legais buscam reduzir as desigualdade e proteger a parcela da população marginalizada. A desigualdade presente na sociedade levou a construção de um aparato jurídico que busca minimizar as injustiças sociais. As leis deveriam ser iguais para todos, contudo, como os membros da sociedade não apresentam as mesmas oportunidades, o aparato jurídico brasileiro seria injusto se apresentasse as mesmas respostas para um rico e um pobre. Tome-se, por exemplo, a questão da violência masculina contra a mulher. Dada sua formação de macho, o homem julga-se no direito de espancar sua mulher. Esta, educada que foi para submeter-se aos desejos masculinos, toma este destino como natural. A criação das Delegacias de Polícia de Defesa da Mulher resultou desta ideia de que pessoas consideradas desiguais pela sociedade não devem ser tratadas pelas mesmas leis. As delegacias especializadas no atendimento de mulheres vítimas de violência criaram condições para que estas vítimas denunciem seus algozes. Diferentemente de uma delegacia de polícia tradicional, as delegacias especializadas não admitem funcionários homens. Todas, desde as investigadoras, passando pelas escrivas, até a delegada titular, são mulheres. Só este fato já promove serias mudanças, que estimulam as vítimas de violência a denunciar os que, de uma maneira ou outra, lhes infligem sofrimentos físicos. Numa delegacia especializada, onde só trabalham mulheres, o ambiente é de solidariedade para com as vítimas, ao contrário do que ocorre nas delegacias comuns. Nestas, as vítimas, já grandemente fragilizadas pela violência sofrida, são objeto de chacotas com base na crença de que mulher gosta de apanhar ou mulher que apanha agiu incorretamente. O dito popular em briga de marido e mulher não se mete a colher mostra eloquentemente a atitude machista de não tocar na sagrada supremacia do macho. (SAFIOTTI, 1987, 79-80). O famoso dito popular não meter a colher em briga de marido e mulher gera condições para os homicídios. (SAFIOTTI, 1987). Inúmeros casos de mulheres que prestam denuncias, solicitando proteção policial, sem respostas, acabam sendo assassinadas pelos companheiros. Com a criação das delegacias especializadas, essa realidade passa a ser mudada e ganha uma nova abordagem no Brasil. Dada a força ideológica da classe dominante em reafirmar constantemente a submissão da mulher em relação ao homem, em muitos momentos a violência ainda é

utilizada. No Brasil, a violência masculina contra a mulher é extremamente alta, e esses números ainda aumentam se considerarmos a parcela da população que não denunciam a agressão. O crescimento do aparato legal relacionado à proteção da mulher trouxe uma nova perspectiva para o Sistema Jurídico Criminal brasileiro, que sempre se mostrou a favor dos mecanismos de dominação e reprodução das desigualdades de gênero e legitimação da ordem patriarcal. Contudo, sabemos que o crescimento das medidas relacionadas a proteção da violência de gênero, não eliminam tais injustiças, apenas conferem um sentido punitivo a tais crimes, como também, permitem melhores condições para que a classe dominada possa lutar mais radicalmente. (Safiotti, 1987). A Lei Maria da Penha, nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, apresenta-se como um dos maiores avanços no aparato legal brasileiro, onde cria condições para coibir a violência domestica e familiar contra a Mulher, conforme o 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. Além disso, ela dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar. Assim, a lei obriga o Estado e a sociedade a proteger as mulheres contra todo tipo de violência, seja ela: física, moral, psicológica, patrimonial e sexual. Em busca da proteção à violência contra a mulher, recentemente outro avanço no aparato legal brasileiro mostrou-se presente. A lei do feminicídio altera o Código Penal (art. 121 do Decreto-Lei 2.848) e transforma o crime de homicídio contra a mulher (feminicídio) em crime hediondo 2. É inegável o avanço que a lei proporciona a proteção da mulher, contudo, é importante a analise do vultoso atraso da modificação, ao levarmos em consideração a data do código penal brasileiro, mais precisamente datado no ano de 1940. Levamos cerca de sete décadas e meia para que a modificação fosse realizada, mesmo sabendo que inúmeras modificações foram feitas no código penal. Dado o considerável atraso para a modificação, não podemos deixar de analisar que mesmo tardiamente o Brasil avança com essa mudança. Entretanto, essa modificação não irá acabar com a morte de mulheres, apenas coibirá o fato. Nesse sentido, a implementação da lei do feminicídio, demonstra a urgência da medida, sendo uma estratégia para diminuir os números exorbitantes de mulheres assassinadas anualmente. A naturalização de processos biológicos em sociais acaba por conferir à mulher a posição de sexo frágil. 2 Conforme o dicionário técnico jurídico, crimes hediondos são aqueles cometidos com requinte de perversidade, para os quais não há fiança nem graça ou anistia, indulto. A pena deve ser cumprida inicialmente em regime fechado.

Assim, a força física torna-se elemento para sustentar a ideia de superioridade masculina. Na maioria das vezes o feminicídio é realizado por motivos fúteis, que são esquecidos e banalizados pela população. Tome-se, por exemplo, a morte de mulheres adulteras. A falta de lealdade num relacionamento não dá o direito de acabar com a vida de ninguém. Na tentativa de que as mulheres internalizem a inferioridade, muitas vezes, utiliza-se o argumento de que é uma traidora e mereceu morrer. A par deste panorama, não podemos deixar de considerar que a lei do feminicídio é um avanço no combate a violência doméstica e familiar contra a mulher, no sentido que oferece instrumentos jurídicos que protegem a mulher de uma sociedade machista. Contudo, a consciência da desigualdade entre homens e mulheres está muito longe de ser alcançada, uma vez a superioridade masculina é um processo naturalizado na sociedade. 3. CONCLUSÃO O que procuramos demonstrar neste trabalho são os avanços que a lei do feminicídio trouxe para a sociedade brasileira. Para compreender tal processo, torna-se necessário considerar as raízes históricas, econômicas e políticas que estão na base das relações sociais de produção e reprodução das sociedades de classes. No contexto histórico desta sociedade é imprescindível a análise da relação entre homens e mulheres na sociedade patriarcal, como também o surgimento e desenvolvimento da propriedade privada. O feminicídio é reflexo da naturalização dos processos socioculturais que leva a submissão e exploração da mulher nos diferentes contextos sociais. Como procuramos demonstrar, essa naturalização de processos biológicos, dado como social, são construídas historicamente no seio da sociedade que apresenta o capitalismo e o patriarcado como base. Além disso, a necessidade da força ideológica da classe dominante em reafirmar a submissão da mulher ao homem leva a agressão física. Os dispositivos legais presentes no Brasil, buscam reduzir as desigualdade e resguardar a população discriminada. O aumento de crimes contra a vida da mulher levou a construção de um aparato legal que objetiva minimizar as injustiças sociais, como é o caso da lei do feminicídio que altera o código penal brasileiro ao tratar do homicídio da mulher como crime hediondo. Assim, procuramos fazer uma análise de como surge essa submissão da mulher em relação ao homem, e a contribuição dos instrumentos legais conquistados pela sociedade brasileira no combate a violência contra a mulher.

4. REFERÊNCIAS BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do 8 o do art. 226 da Constituição Federal. BRUSCHINI, Cristina. Gênero e Trabalho no Brasil: Novas conquistas ou persistência da discriminação? In: ROCHA, Maria Isabel Baltar (org.). Trabalho e gênero: Mudanças, permanências e desafios. São Paulo: Editora 34, 2000. MARX, Karl. Para a Questão Judaica. São Paulo: Expressão Popular, 2009. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. In: Textos III. São Paulo: Edições Sociais, 1977. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: HUCITEC, 1993. SAFFIOTI, Heleieth. O poder do Macho. São Paulo: Moderna, 1987. TONET, Ivo. Sobre o Socialismo. Curitiba: Livros Editora, 2002.