UNIFORMIZAÇÃO de JURISPRUDÊNCIA ( 1 )

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Transcrição:

UNIFORMIZAÇÃO de JURISPRUDÊNCIA ( 1 ) 1. A uniformização de jurisprudência pelo Supremo Tribunal de Justiça pode ser encarada sob duas perspectivas diversas que se interpenetram: a) Por um lado, enquanto um dos objectivos da actividade do Supremo; b) Por outro lado, enquanto instrumento mobilizador ou moderador dessa actividade. Em cada uma dessas perspectivas sobressai sempre a posição que o Supremo Tribunal de Justiça ocupa no sistema judiciário de tipo piramidal em que, pertencendo às instâncias, praticamente em exclusivo, a apreciação da matéria de facto, ao Supremo são atribuídas essencialmente competências ligadas à identificação, interpretação e aplicação de normas jurídicas. No nosso sistema, como na maioria dos sistemas europeus, o Supremo não é, ou não é essencialmente, um tribunal de cassação que se limite a sindicar a matéria de direito, deixando para as instâncias a sua aplicação ao caso concreto. Longe disso, numa larga percentagem de situações, o Supremo desempenha funções de substituição que implicam que repercuta directa e imediatamente nos casos concretos o resultado da sua função essencial no campo jurídico (arts. 682º e 684º do NCPC). Seja como for, vem ganhando cada vez mais relevo a função que estatutariamente está prevista na LOSJ (art. 53º, al. c)) e que o CPC se limita a concretizar em matéria de uniformização de jurisprudência, como expoente máximo da actividade judicativa de um tribunal de revista (arts. 686º e 687º e arts. 688º e segs.). É claro que, ao invés do que ocorria com os Assentos que o art. 2º do CC de 1966 integrava nas fontes normativas, os Acórdãos de Uniformização de Jurisprudência (AcUJ) não gozam de força vinculativa a não ser no âmbito do processo em que são proferidos (art. 4º, nº 1, da LOSJ). Ainda assim, o sistema 1 Texto que serviria de base à intervenção programada no Colóquio realizado no Supremo Tribunal de Justiça, no dia 25-6-15. Escusado é dizê-lo, mas o texto enuncia simplesmente a opinião do signatário. 1

tem convivido de forma salutar com a força persuasiva de tais arestos que é projectada pela conjugação de diversos factores: a solenidade do julgamento (Pleno das Secções Cíveis), a qualidade dos seus protagonistas e a valia da fundamentação, o que é demonstrado pelo generalizado respeito que as instâncias vêm demonstrando pelas soluções uniformizadoras que acabam por impor-se às polémicas jurisprudenciais que as precedem ou que procuram prevenir. 2. A uniformização de jurisprudência constitui uma função histórica do Supremo Tribunal de Justiça. Sem necessidade de recuar no tempo em demasia, basta notar que, aquando da reforma processual de 1995, vigorava um regime processual em que essa função uniformizadora era de cariz para-legislativo, ao ponto de os Assentos constituírem fonte imediata de lei (art. 2º do CC) e não apenas fonte mediata, como ocorre com a jurisprudência em geral. Abolida a figura dos Assentos, nem assim foi desprezada a função de uniformização, a qual prosseguiu (ou deveria ter prosseguido) através da regulamentação do julgamento ampliado da revista e do agravo em 2ª instância, nos termos que ficaram consagrados no CPC de 1961 (arts. 732º-A, 732º-B e 762º, nº 3). Sem embargo das críticas que foram dirigidas a uma tal opção, a qual não constituía sequer uma imposição decorrente da declaração de inconstitucionalidade que incidiu sobre o texto do art. 2º do CC, e sem embargo da admissibilidade de outra alternativa que mantivesse o regime da obrigatoriedade dos Assentos nos limites da ordem dos Tribunais Judiciais, aquela solução foi acompanhada da revogação das normas que previam o recurso para o Pleno que já então funcionava, na prática, como um quarto grau de jurisdição nos casos em que existia contradição jurisprudencial entre um acórdão do Supremo e outro acórdão do Supremo relativamente à mesma questão de direito que se tivesse revelado decisiva para a resolução do caso concreto. A imediata sujeição do julgamento a um colégio de juízes mais alargado que decorria da previsão do julgamento ampliado da revista ou do agravo tinha potencialidades não apenas para sanar eventuais contradições jurisprudenciais, que eram em número alargado, como ainda para impedir a consumação dessas contradições, obviando aos efeitos negativos que tais contradições determinavam nos valores da certeza e da segurança jurídica e no princípio da igualdade de todos perante a lei assim interpretada (art. 8º, nº 3, do CC). 2

Acresce ainda que, no sistema que foi instituído em 1995, a intervenção do Pleno com função uniformizadora não constituía um procedimento dependente da pura iniciativa das partes, antes um mecanismo que colocava o Supremo no centro nevrálgico da decisão, conferindo-se ao respectivo Presidente a função de seleccionar, de entre as questões jurídicas controversas, aquelas que eram merecedoras de uma resposta uniformizadora, mediante a formulação de um juízo de razoabilidade sobre a necessidade ou conveniência dessa uniformização. Assim, embora a convocação do Pleno para o julgamento ampliado da revista ou do agravo pudesse ser promovida pelas partes, pelo relator, pelos adjuntos, pelo Presidente da secção ou pelo Ministério Público, também podia ser determinada oficiosamente pelo Presidente do Supremo que, em qualquer dos casos, reservava para si o poder/dever de determinar essa forma solene de julgamento, ponderando os aspectos atinentes à necessidade ou à conveniência da intervenção do Pleno. Verificou-se, porém, que a um tal instrumento de natureza processual foi dado um uso que terá ficado aquém das expectativas do legislador, continuando a persistir em relação a numerosas questões jurídicas divergências interpretativas que punham em causa os valores anteriormente referidos. Se porventura algumas dessas divergências ainda poderiam ser racionalmente sustentadas em face das nuances de cada situação ou imputadas a diferenças circunstanciais de cada um dos casos que foi objecto de apreciação, o certo é que não era nem é facilmente compreensível a sustentação de um sistema em que floresçam, sem a suficiente intervenção moderadora, decisões de sentido perfeitamente inverso a respeito da mesma realidade. 3. Terá sido a apreciação dos resultados da aplicação do regime aprovado em 1995 que levou o legislador de 2007 a reintroduzir, na prática, o anterior recurso para o Pleno, como modalidade de recurso extraordinário, visando a uniformização de jurisprudência, mas com reflexos também no acórdão recorrido. Tendo sido transposto tal mecanismo processual para o NCPC (arts. 688º e segs.), o mesmo convive com a manutenção do julgamento ampliado da revista, verificando-se, assim, uma dupla possibilidade de alcançar do Supremo um acórdão uniformizador de jurisprudência. 3

Sendo comum ao julgamento ampliado da revista e ao recurso extraordinário o objectivo de alcançar a uniformização jurisprudencial, diferenciam-se, contudo, sob diversos aspectos: a) O julgamento ampliado da revista constitui simplesmente uma forma mais solene de se efectuar o julgamento da revista; já o recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência pressupõe a anterior existência de um acórdão do Supremo, transitado em julgado, proferido no âmbito da revista, traduzindo a reabertura do julgamento; b) O julgamento ampliado da revista mantém os graus de jurisdição, ao passo que o recurso extraordinário constitui, na realidade, um 4º grau de jurisdição que pode redundar na revogação, modificação ou confirmação do acórdão recorrido; c) O julgamento ampliado da revista pode ser promovido pelas partes e por outros intervenientes processuais, mas a sua admissibilidade constitui reserva do Presidente do Supremo, ao abrigo de poderes quase discricionários; já o recurso extraordinário constitui um instrumento que apenas pode ser mobilizado pela parte vencida (e pelo Ministério Público, nos casos do art. 691º) e cuja admissibilidade e apreciação depende unicamente de factores de ordem objectiva ligados à verificação de uma efectiva contradição jurisprudencial relevante, sendo a sua admissão atribuída ao relator, com eventual reclamação para a respectiva conferência; d) O julgamento ampliado da revista visa a obtenção de um acórdão de uniformização, mas não pressupõe a verificação de uma contradição já existente (ainda que a prática não revele o uso desta função preventiva), ao invés do que se passa com o recurso extraordinário da revista que depende necessariamente da verificação dessa contradição; e) O julgamento ampliado da revista tem como objecto, em regra, um acórdão da Relação (sem embargo do recurso per saltum previsto no art. 678º), enquanto o recurso extraordinário incide sobre um anterior acórdão do próprio Supremo já transitado em julgado; f) O julgamento ampliado da revista repercute-se necessariamente no caso concreto, porém, o recurso extraordinário pode ser mobilizado também pelo Ministério Público no interesse exclusivo da lei, sem interferência no caso concreto. 4

Em suma, o recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência reintroduzido em 2007 e transposto para o actual CPC vem constituindo um mecanismo que permite a reabertura do processo judicial, depois de ter transitado em julgado o acórdão do Supremo, perturbando a estabilidade das decisões judiciais emergente do caso julgado formado, com prejuízo para os objectivos da celeridade e da eficácia do sistema judiciário. Posto que a sua admissibilidade esteja submetida a requisitos que são e não poderiam deixar de ser rigorosos na sua previsão e aplicação, a verdade é que a simples previsão da possibilidade de accionamento desse mecanismo extraordinário de impugnação determina inconvenientes que não me parecem superados pelas vantagens alcançadas no campo da uniformização, além de induzir o definhamento ainda mais nítido dos dispositivos legais que regulam o julgamento ampliado da revista. Efectivamente, creio que não se justificava a reintrodução desse mecanismo extraordinário, no pressuposto, porém, de que internamente o Supremo Tribunal de Justiça não deixaria de fazer uso ponderado do julgamento ampliado da revista, optando-se por esta forma de julgamento sempre que realmente fosse percepcionada a necessidade ou a conveniência de uniformizar jurisprudência, com o objectivo de pôr termo a inúteis e incompreensíveis conflitos jurisprudenciais ou de prevenir a sua ocorrência ao menos ao nível do Supremo. 4. A prolação de acórdãos de uniformização jurisprudencial constitui ainda um instrumento moderador ou impulsionador da actividade do próprio Supremo. É como instrumento impulsionador que é encarada a uniformização de jurisprudência quando se verifica que o seu desrespeito confere à parte vencida a possibilidade de interposição de recurso, em qualquer das instâncias, independentemente do valor da alçada, do valor da sucumbência ou de qualquer outro impedimento geral, nos termos previstos no art. 629º, nº 2, al. c). Com efeito, malgrado a ausência de um efeito vinculativo extraprocessual, não seria coerente um sistema em que, admitindo uma tão solene forma de julgamento, não previsse mecanismos que lhe atribuíssem, ao menos, um carácter persuasivo. Assim, ante a publicitação de uma solução uniformizadora emanada do Supremo, sem embargo de situações-limite em que outra solução seja justificada 5

pelas circunstâncias, só uma incompreensível teimosia poderá justificar, na generalidade dos casos, o não acolhimento pelas instâncias da jurisprudência fixada. A previsão da recorribilidade da decisão independentemente da verificação dos demais requisitos de recorribilidade constitui a solução que permite repor os valores da certeza e da segurança jurídica, funcionando simultaneamente como factor dissuasor de divergências jurisprudenciais malgrado a anterior publicitação de acórdão uniformizador. Esse mesmo efeito persuasivo deve repercutir-se, por maioria de razão, no próprio Supremo, de tal modo que se houver motivos conjunturais que impliquem uma alteração da solução uniformizadora, o relator ou qualquer dos adjuntos deve impulsionar junto do Presidente a convocação do Pleno para reapreciação da questão jurídica, nos termos do art. 686º, nº 3, não sendo compreensível de modo algum que, em tais circunstâncias, se assuma uma resposta divergente no âmbito do julgamento da revista nos termos gerais. A única diferença de tratamento em relação às instâncias é que, não havendo em tal eventualidade a possibilidade de interposição de recurso ordinário do acórdão que, contra aquela directriz, tenha desacatado a anterior uniformização, resta à parte vencida o accionamento do recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência. 5. Mas é já como elemento moderador que a uniformização é encarada noutros preceitos que limitam o acesso ao Supremo precisamente em casos em que o Tribunal a quo tenha aderido à uniformização jurisprudencial Assim ocorre na situação regulada no art. 629º, nº 2, al. d): a impugnação do acórdão da Relação que contrarie outro acórdão da Relação (ou mesmo do Supremo) e de que não caiba recurso, por motivo alheio ao valor da alçada ou da sucumbência, é impedida quando a Relação se tenha limitado a aderir a jurisprudência uniformizada. O mesmo se verifica em face do art. 671º, nº 2, al. b), estando excluída a recorribilidade de acórdão intercalar da Relação que contrarie acórdão do Supremo, mas que esteja em conformidade com acórdão de uniformização. Solução similar está prevista no art. 672º, nº 1, al. c), sobre a admissibilidade da revista excepcional. Também esta revista reservada para situações de dupla 6

conforme, acaba por ser impedida, com fundamento em contradição jurisprudencial, quando a Relação, no acórdão recorrido, tenha aderido ao entendimento anteriormente uniformizado pelo Supremo. E, finalmente, o desenvolvimento da vertente uniformizadora na actividade do Supremo acaba por se repercutir positivamente na redução das possibilidades de interposição de recursos extraordinários para uniformização de jurisprudência nos casos em que o Supremo, ao apreciar anteriormente a revista nos termos gerais, se tenha limitado a acatar, como é expectável, a jurisprudência anteriormente firmada (art. 688º, nº 3. 6. Enfim, ponderando estas duas vertentes da uniformização de jurisprudência, verifica-se que a uma redução das revistas normais decorrente da introdução da figura da dupla conforme (e também da elevação do valor da alçada da Relação), acaba por corresponder o desenvolvimento da função uniformizadora do Supremo, quer por solicitação das partes, quer por via do accionamento de mecanismos internos. Saindo beneficiados com a resolução ou prevenção de querelas jurisprudenciais os valores da segurança e certeza do direito e também o princípio da igualdade perante a lei interpretanda, o incremento dessa actividade judicativa repercutirse-á também, em termos mediatos, na redução da litigância, ante a perspectiva da previsível resposta a determinada questão jurídica que tenha sido objecto de uniformização jurisprudencial. Também não devem ser desconsiderados os efeitos positivos na valorização da actividade do próprio Supremo no sistema judiciário e na sua visibilidade perante a sociedade. Através da uniformização de jurisprudência sai valorizada a competência que exclusivamente é atribuída ao Supremo Tribual de Justiça, enquanto tribunal de revista, traduzida através de acórdãos com valor para-legislativo, ao mesmo tempo que, sanando ou prevenindo polémicas jurisprudenciais, potencia os factores da segurança e da certeza na aplicação do direito, contribuindo também para a maior eficácia e celeridade do sistema judiciário. António Santos Abrantes Geraldes (Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça) 7