TROPICÁLIA, DITADURA MILITAR E VANGUARDA: DIMENSÕES POLÍTICAS E EXPERIMENTAIS DO DOCUMENTÁRIO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO

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Transcrição:

TROPICÁLIA, DITADURA MILITAR E VANGUARDA: DIMENSÕES POLÍTICAS E EXPERIMENTAIS DO DOCUMENTÁRIO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO Danieli dos Santos Pimentel danielipimentel@yahoo.com.br http://lattes.cnpq.br/1123785851133998 Luiz Guilherme dos Santos Júnior lguilherme1973@gmail.com http://lattes.cnpq.br/1266664476541392 RESUMO O artigo analisa as relações entre tropicalismo, ditadura militar e vanguarda, a partir do documentário Tropicália (2012), de Marcelo Machado. Desse modo, objetivamos demonstrar de que forma o presente documentário realiza, nesse diálogo entre o estético e o político, retomadas experimentais no campo das vanguardas, instaurando-se como um novo produto no contexto presente do audiovisual brasileiro. Palavras-chave: cinema; vanguarda; tropicalismo 1 Documentário musical: novas trilhas O documentário musical é um gênero que vem ganhando força no meio cinematográfico, por apresentar não somente a vida e a obra de determinado artista ou movimento musical, mas por englobar questões históricas e políticas, já que essa retomada fílmica abrange, na contemporaneidade, artistas que surgiram em períodos de censura e perseguições, como, por exemplo, na ditadura militar brasileira. A busca de contextualizar um movimento musical ou mesmo um determinado artista, não afastou esse documentário da tentativa de reconstruir um momento histórico por meio de materiais jornalísticos, filmes, fotografias e músicas de época. Tratando-se de música e, na maioria das vezes, contestação por meio de modos de vida, canções e atitudes, é evidente que os embates são inevitáveis, se for levado em consideração o fato de que os movimentos musicais sempre causaram grandes preocupações aos regimes totalitários, pois, criticam, politicamente e esteticamente, a atuação de governos, partidos, ideologias de esquerda e de direita. Nesse novo domínio do documentário contemporâneo, os diretores experimentam montagens que agregam uma poética não linear, evitando, criar uma lógica a partir do cinema clássico tradicional,

ou seja, a figuração perspectiva da imagem é atingida através de ritmos intensos de montagem ou pela manipulação digital (RAMOS, 2008, p. 69). Isso significa uma mudança quanto à forma do documentário captar o real, já que permite aos cineastas realizar apropriações e experimentações animadas com o uso de computadores, fora de uma pesquisa in loco. Tendo como base a música como coordenada das imagens, o documentário musical elabora-se seguindo roteiros bem definidos, cujo efeito regula as quebras e confluências sígnicas, a partir de uma poética visual. Ao mesmo tempo, o recurso da voz dos artistas mescla-se com outros recursos visuais, sem a autonomia usual comum aos documentários usuais. Desse modo, na contemporaneidade, essa forma de documentário vem ganhando espaço nas salas de cinema do país, principalmente, por trazer para as telas, a vida e a obra de artistas da música brasileira, ou de movimentos musicais. Entre os filmes mais experimentais e aclamados em Festivais de cinema, o documentário Tropicália, de 2012, dirigido por Marcelo Machado, pioneiro do vídeo experimental no Brasil, alcançou muita notoriedade entre os críticos, por reelaborar a história do tropicalismo por meio de uma montagem, com ênfase na técnica de colagem de outros filmes do mesmo período em que surgiu o movimento tropicalista. Em Tropicália, Marcelo Machado e sua equipe realizaram uma pesquisa abrangente no tocante às diversas artes que estiveram em contato direto e indireto com o movimento tropicalista. Além disso, a pesquisa trouxe para a montagem recortes de filmes, fotografias, programas televisivos para compor um imenso painel de época, e de como o tropicalismo criou novas formas musicais em diálogo com as artes plásticas, o cinema, o teatro e a poesia. O documentário tenciona retomar a história do movimento fundamentado em imagens históricas, músicas e depoimentos de artistas diversos, entre eles, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Arnaldo Baptista, Sérgio Dias, Rita Lee, Rogério Duarte e Tom Zé, com o objetivo de refletir e colocar em debate os impactos do Golpe Militar nas produções artísticas da época. Assim, o filme realizar uma reconfiguração do contexto histórico brasileiro entre os anos de 1967 e 1970, período em que o movimento tropicalista prosperou e que marca a ida de Caetano Veloso e Gilberto Gil para o exílio na Inglaterra,

quando a ditadura militar intensificou sua atuação repressiva através do AI-5, no ano de 1969 (governo Costa e Silva). Porém, diferente dos documentários produzidos sobre o tropicalismo e seus desdobramentos como Uma noite em 67 (2010), dirigido por Renato Terra e Ricardo Calil, e Futuro do pretérito: Tropicalismo now! (2012), de Ninho Moraes e Francisco César Filho, o filme realiza uma colagem poético-experimental a partir de uma montagem computacional, com o auxílio de imagens audiovisuais que mostram os primeiros debates sobre a música e a estética tropicalistas, embates políticos e ideológicos, relatos de tortura, e participações controversas em Festivais de música. As experiências estéticas presentes no documentário de Marcelo Machado apresentam os novos formatos que o gênero vem adquirindo, principalmente sob a retomada de estéticas do passado. Partindo dessa técnica, comum às vanguardas do início do século XX, o filme realiza uma antropofagia aos moldes de Oswald de Andrade, porém com uso de diversos filmes e outros recortes impressos. Essa técnica de colagem de uso de outros filmes para criar um novo produto fílmico foi usada por diretores brasileiros como Marcelo Masagão, em Nós que aqui estamos por vós esperamos (1998) e Jean-Claude Bernardet em São Paulo - Sinfonia e Cacofonia (1995). Bernardet (2000, p. 31) explica que ao mesclar imagens de filmes diversos, a conexão entre as partes em confluência em novo roteiro fílmico permite o surgimento de novos significados. Isso quer dizer que ao criar um diálogo entre partes, esse encontro de imagens gera outras possibilidades semiológicas, dando ao filme uma autonomia no tocante às partes que foram incorporadas em sua estrutura. O diretor de Tropicália utiliza-se da mesma técnica, pois utiliza recortes de filmes importantes da cinematografia brasileira que vão do Cinema Novo ao Cinema Marginal, englobando ficção, documentários e musicais. Nessa perspectiva, pode-se afirmar que o documentário dialoga com propostas estéticas dadaístas na forma de ready-made e com a Pop Art. Percebe-se nessa proposta estética uma evidente retomada dos filmes vanguardistas do início do século XX, pois, de acordo com Martins (2008, p. 71), O que vai definir o cinema de vanguarda são as suas preocupações formais e estéticas e as suas condições de produção e difusão. Em relação aos seus aspectos formais, a unidade básica da sintaxe do filme, não é

mais o plano, mas o fotograma, que recebe todo tipo de intervenções (riscos e pinturas feitas diretamente na película, colagem e sobreposição de materiais, manipulação do foco, fusões, alterações de velocidade e exposição de luz). No âmbito da dramaturgia, o documentário funde em seu roteiro passagens da peça de teatro O Rei da Vela, transformada em espetáculo, em 1967, pelo dramaturgo José Celso Martinez, numa franca referência ao poeta modernista Oswald de Andrade, autor do Manifesto Antropófago, que trazia como síntese a proposta de devoração do legado artístico-cultural estrangeiro (FAVARETTO, 2007). Em Tropicália, é possível notar uma conexão intersemiótica entre cinema, artes plásticas, música, fotografia e teatro, construindo um diálogo experimental que projeta fotogramas descontínuos, choques cromáticos, impactos visuais, em que se mesclam diversas mídias num tipo de montagem vertiginosa, com recursos da videoarte, alternada por depoimentos sobre as dificuldades vividas nos anos de chumbo da ditadura, técnicas muito próximas do documentário animado, na acepção de Martins (2008, p. 85): Quase sempre apresenta a valorização de aspectos subjetivos das situações a partir da representação de personagens e cenários. Esta valorização de aspectos subjetivos determina uma narrativa que concentra em cada elemento de sua estrutura: personagem, ação, ambiente, espaço e tempo, possibilidades de interpretação. Afirma-se, nesse sentido, que a montagem elaborada pelo diretor do filme herda das vanguardas artísticas e do cinema marginal dos anos 60 o uso da colagem e da estética do lixo. Segundo Xavier (2012, p. 58), um certo cinema de citações veio para ficar. Os anos 70 e 80 mostraram os múltiplos caminhos dos programas intertextuais, com a própria indústria adaptando a si outras experiências da arte contemporânea. O documentário inicia-se em Lisboa, Portugal, em 04 de agosto de 1969, com Gil e Caetano no palco cantando juntos. Em seguida, eles decretam o fim do movimento tropicalista. Praticamente, os dois artistas já estão vivendo exilados do Brasil e sem qualquer perspectiva de retorno ao país. No entanto, o foco principal do filme é, justamente, problematizar o choque causado pelo Tropicalismo no universo político e cultural vivido pelos artistas no período compreendido pelo governo de Costa e Silva e o advento do AI-5. Desse modo, o filme se volta para o ano de 1967. Num programa de televisão, onde aparecem Brasília e bandeiras brasileiras enfileiradas, os militares surgem

na tela cumprimentando Costa e Silva pela posse da presidência. Por essa tela, alternamse imagens de militares marchando e armados, carros, metralhadoras, ônibus sendo fiscalizados. Os militares pedem documentos dos passageiros, enquanto uma trilha de festival cantada por Sidney Miller e Nara Leão inaugura a trajetória da tropicália. A montagem inicia-se com a incorporação de filmes que constituem um material expressivo para o documentário, perdendo apenas para as canções da trilha sonora. Inicialmente, Maria Bethânia, cantora baiana, dramatiza no teatro a música Carcará, que desnuda a situação da seca no Nordeste. Em seguida, a película molda-se com passagens de filmes com passeatas nacionalistas gritando Abaixo o imperialismo. Em meio ao fluxo de imagens, Caetano, em entrevista, afirma que não era partidário desse tipo de discurso extremista, pois não rechaçava a cultura americana e também não entendia o porquê de tais radicalismos. Depois, rompe-se a tela com entrada de Terra em Transe, de Glauber Rocha. Vêse numa praia a chegada dos Portugueses no Brasil, em pleno século XVI. Nesse momento, a música-manifesto dos tropicalistas (Tropicália) funde-se com a película de Glauber, que demonstra as ligações entre o movimento e as problemáticas suscitadas pelo Cinema Novo. Numa tela de TV, Glauber dá um depoimento sobre o tropicalismo, explicando que tal estética se aproximava do teatro de José Celso Martinez. Depois, escuta-se a voz a Martinez falando da contribuição indubitável de Oswald de Andrade para a formação de um teatro revolucionário e transformador. O teatro, nesse contexto, foi uma das artes mais perseguidas pela ditadura, principalmente por seu caráter aglutinador de ideologias que tocavam diretamente seu público. O ponto central que a ditadura queria atacar, no que diz respeito ao teatro, era evitar que os grupos se alinhassem com as classes populares, conscientizando-as da situação do país. Por isso, fazia-se necessário quebrar essa conexão fechando o cerco para os centros populares de cultura e movimentos similares (NAPOLITANO, 2014). No transcorrer do filme, a Tropicália perfaz grande parte da montagem, o que demonstra a sutileza da construção estética do filme elaborada pelo seu diretor, pois, se o filme trabalha com a colagem de filmes e de outras mídias, a música que abre o disco de 1967, de Caetano Veloso, é a síntese maior desse projeto em forma de retalhos de coisas, temas, espaços, acontecimentos, estéticas e elementos díspares. Além disso, a

trilha reflete o estilhaçamento do filme composto de mosaicos de imagens sobrepostas, surrealistas e entrecortadas, próximo das técnicas do dadaísmo e do próprio surrealismo. Para Sant Anna (1977, p. 240), a música Tropicália é uma extensa paródia. Há aí um texto que comenta outros textos. Seu autor está manipulando os dados de sua cultura criticamente. Já para Campos (1978, p. 164), todo o texto será marcado por esse confronto entre o sério e o derrisivo, esse contraste entre a miragem revolucionária e a carnavalesca molecagem nacional. No diálogo do tropicalismo com as diversas artes, o cinema representava, naquele momento do surgimento de uma nova vanguarda brasileira, um espaço marcado pela maneira de pensar os limites entre as artes. Segundo Badiou (2002, p. 104) em Pequeno Manual de Inestética, é de fato impossível pensar o cinema fora de uma espécie de espaço geral onde apreende sua conexão com as outras artes. De acordo com o estudioso, o cinema tem a capacidade de agir sobre diversas artes, apropriando-se e subtraindo atributos estéticos variados. Nesse sentido, a busca de uma síntese artística, naquele período de confluências estéticas, estava presente, sobretudo, na proposta marginal cinematográfica de Rogério Sganzerla. Por isso, a colagem de uma cena do filme O Bandido da Luz Vermelha em colorido na tela anuncia a carnavalização da cultura brasileira feita de retalhos da cultura de massa importada. Ainda em forma de mosaico, o filme, num recorte televisivo, traz ao espectador Hélio Oiticica, autor de intervenções artistas que visavam uma nova forma de produzir arte nos espaços urbanos. Oiticia fala que elaborou uma obra de arte chamada Tropicália entre os anos de 1966 e 1967. Em paralelo à voz do artista plástico, o filme HO, de Ivan Cardoso, apresenta o movimento dos parangolés em frente a uma bandeira do Brasil. Para Oiticica, tropicália era um posicionamento estético, algo bem mais amplo sobre a arte dos anos 60. Nesse movimento, ele fala de sua participação no filme Câncer, de Glauber Rocha, que perfaz um retrato do Brasil da época. Em seguida, o documentário chega ao ano de 1968, com cenas de protesto, espancamento de ativistas e prisões. Mostra-se a cena em que o estudante Edson Luis aparece morto no Rio de Janeiro, fato que intensificou os protestos no Brasil contra a ditadura. Rogério Duarte fala de sua prisão durante a missa de 7º dia do estudante morto.

Jornais noticiam a força da tortura e as prisões realizadas pelo Dops. Trechos do enterro do jovem mostram a força dos estudantes em protesto. O documentário apresenta ainda a marcha dos 100 mil que teve grande força e repercussão nacional em plena ditadura. A marcha pedia liberdade aos presos políticos e se posicionava contra a censura. Caetano e outros artistas do cinema e do teatro aparecem nas passeatas. Gilberto Gil fala de seu grande receio de ser perseguido e preso pela ditadura. Na cena seguinte, Caetano, Gil e Os Mutantes cantam no Festival Internacional da Canção, realizado no teatro da PUC-SP, a canção É proibido proibir, como um deboche à classe universitária de esquerda e ao mesmo tempo como um grito de liberdade em meio à ditadura. Os universitários vaiaram a canção, porém, receberam críticas mordazes de Caetano que dizia: mas é isso que é a juventude que quer tomar o poder?. Em meio a esse turbilhão de imagens, vozes e da trilha sonora de É proibido proibir, uma voz radiofônica anuncia o temido AI-5. O congresso entra em recesso e Juscelino Kubichek é preso, noticia o Jornal da Tarde de O Estado de São Paulo. Decreta-se o recesso do Congresso Nacional. Gilberto Gil explica, em depoimento, que a ditadura militar era hostil diante de todo e qualquer tipo de manifestação, ou seja, o movimento tropicalista estava na mira da censura. Isso se explica se for levado em consideração que a música de protesto, dentro de Festivais de música, eram toleráveis, até certo ponto, pelo governo militar, contudo, os órgãos de censura precisavam desestabilizar qualquer possibilidade dessas músicas trazerem qualquer tipo de conscientização revolucionária às classes populares (NAPOLIANO, 2014). Desse modo, fazia-se necessário barrar qualquer tipo de produção artística que se posicionasse contra o regime da ditadura. Caetano, voz importante no documentário, explica que após o lançamento do disco Tropicália, em 1967, chegando a dezembro de 1968, ele e Gil já estavam presos. Tom Zé, defendendo os posicionamentos de Caetano, diz que o projeto do artista baiano era bem mais arrojado, ou seja, era uma tentativa de fazer uma revolução armada em plena ditadura. Daí que as propostas do tropicalismo vinham como uma conscientização dos jovens para a ação direta. Tom Zé ainda diz que as letras de Caetano que pareciam inocentes traziam uma carga alegórica indireta, que precisava driblar a censura, mas que indicava uma consciência histórica do país. Segundo ele, no período ditatorial,

pensar era crime, por isso, tinha que se usar nas letras, certa malandragem para passar despercebidas pela censura musical. Nas cenas finais do documentário, os recortes de jornais noticiam as prisões de Gil e Caetano. Aparecem documentos timbrados do processo de ambos nos arquivos do Dops. Fotos revelam a prisão dos músicos. Segundo Caetano, os tropicalistas passaram dois meses na prisão de São Paulo, depois quatro meses presos em Salvador, e, finalmente, acabaram sendo deportados para Londres. 2 Considerações finais O documentário musical configura-se como um campo de pesquisa ainda pouco explorado no que diz respeito às suas possibilidades historiográficas. Apesar de se tratar de um gênero novo no âmbito da cinematografia brasileira, não é possível, de certa forma, abordar o surgimento de um movimento musical ou trajetória de um artista sem buscar informações no tocante ao contexto histórico em que estão inseridos, com o intuito de entender como determinado artista ou movimento foi recebido pela crítica musical, ou por um tipo de público específico. No caso de Tropicália, o filme contextualiza um dos períodos mais férteis, musicalmente, situado na transição de um período marcado, inicialmente, por certa liberdade artística (governo Castelo Branco), e uma radicalização seguinte no governo de Costa e Silva, com intensa perseguição e censura às produções cinematográficas, teatrais, musicais, entre outras formas artísticas, a partir do AI-5. O diretor do filme optou por uma estética documental que coloca em choque diversos materiais visuais e audiovisuais, numa dialética que envolve trilhas sonoras em confluências vertiginosas com momentos da história política do Brasil do final dos anos 60. A montagem em forma de mosaicos e colagens possibilita uma ressignificação dos materiais de arquivo, sejam cinematográficos ou televisivos, dando a estes, novas configurações no resultado final de Tropicália. Tal opção engendra-se esteticamente sob os parâmetros das vanguardas do início do século XX, mas também corresponde ao projeto de apropriação artística elaborado pela antropofagia de Oswald de Andrade. Desse modo, o documentário de Marcelo Machado desenvolve-se por meio de uma abertura audiovisual rompendo os limites e as fronteiras do cinema, na busca de estabelecer uma nova realidade, tomando como parâmetro, o próprio cinema (recortes de

filmes), na busca do que Badiou (2002) chama de depurar o visível, e recriá-lo no pensamento do espectador, como se o filme pudesse realizar sua própria leitura da história, sem necessariamente estar sujeito a uma cronologia estática. Logo, a montagem Tropicália seguindo uma poética do corte projeta uma releitura do tempo histórico que compreende os anos mais tortuosos da ditadura no Brasil. A articulação entre as imagens se configura como um ponto de vista do documentário, mas que não se fecha numa interpretação única, já que possibilita criar um envolvimento com o público, deixando que este crie seu próprio teatro mental no pensamento, como uma das maneiras de reconstituir ou mesmo visitar um tempo histórico que não fez parte de sua trajetória de vida. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BADIOU, Alain. Pequeno manual de inestética. Trad. Marina Appenzeller. São Paulo: Estação Liberdade, 2002. BERNADET, Jean-Claude. A subjetividade e as imagens alheias: ressignificação. In: BARTUCCI, Giovanna (Org.). Psicanálise, cinema e estéticas de subjetivação. Rio de Janeiro: Imago, 2000. CAMPOS, Augusto de. Balanço da Bossa e ouras bossas. São Paulo: Perspectiva, 1978. FAVARETTO, Celso. Tropicália, alegoria, alegria. 4. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2007. MARTINS, Índia Mara. Documentário animado: tecnologia e Experimentação. In: Doc On-line, n.04, Agosto 2008. Disponível em: <http://www.doc.ubi.pt/04/artigo_india_martins.pdf> Acesso em 27 set 2014.. O documentário animado de Chris Landreth: experimentação e tecnologia. In: Moisés de Lemos Martins & Manuel Pinto (Orgs.) (2008) Comunicação e Cidadania Actas do 5º Congresso da Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação, Braga: Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (Universidade do Minho). NAPOLITANO, Marcos. 1964: História do Regime Militar Brasileiro. São Paulo: Contexto, 2014. RAMOS, Fernão Pessoa. Mas afinal... o que é documentário? São Paulo: Senac, 2008. SANTA NNA, Affonso Romano de. Música Popular e moderna poesia brasileira. Petrópolis: Vozes, 1977. XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo, cinema marginal. Cosac Naify: São Paulo: 2012. SOBRE OS AUTORES:

Danieli dos Santos Pimentel Doutoranda em Letras com ênfase em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com bolsa CAPES integral. Possui Mestrado em Educação pela Universidade do Estado do Pará (2012) com bolsa CAPES. Concluiu o mestrado sanduíche no Programa de Pós-graduação em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2011) em convênio com o Programa de Cooperação Acadêmica (PROCAD) entre a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e a Universidade do Estado do Pará. Participa dos grupos de pesquisa: Cultura e Memórias da Amazônia (CUMA-UEPA) e Diálogos de saberes: processos educativos e práticas docentes em convênio com o (PROCAD-UEPA). Luiz Guilherme dos Santos Júnior Doutorando em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com Bolsa Capes/Fapespa. Possui Mestrado em Teoria Literária (UFPA). É Licenciado pleno em Letras pela Universidade Federal do Pará (UFPA - 2003); Especialista em Língua Portuguesa: uma abordagem textual (UFPA). Integra o Núcleo de Pesquisa Cultura e Memórias Amazônicas (CUMA-UEPA), na Linha de Pesquisa de Audiovisual. Integra o grupo de pesquisa Cinema e Audiovisual: comunicação, estética e política (PUCRS). Pesquisa atualmente a representação do Corpo no cinema brasileiro contemporâneo, a partir da composição visual e estética da mise-en-scène, com base em teorias francesas que versam sobre o cinema.