Latusa digital ano 6 N 37 junho de Objetos só letra: de Lacan a Freud *

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Transcrição:

Latusa digital ano 6 N 37 junho de 2009 Objetos só letra: de Lacan a Freud * Jaime Araújo Oliveira ** A influência do positivismo sobre o contexto teórico e cultural em que a psicanálise foi criada obrigou Lacan, ao contrário dos pós-freudianos, a interpretar Freud, a extrair de seus ditos o que é da ordem de um dizer. Sobre isso, comenta Jacques-Alain Miller: É inclusive o que nos obriga a distinguir e opor, como faz Lacan os remeto a O aturdito [...] o dizer de Freud a seus ditos. Assim, podemos precisar o retorno de Lacan a Freud como um retorno ao dizer de Freud, e, às vezes, contra alguns de seus ditos. 1 A citação acima mostra que Lacan, para realizar essa operação sobre Freud, essa operação de lógica, como a designa Miller, é levado a jogar Freud contra Freud. Para tanto, Lacan localiza ditos frequentemente contraditórios de Freud e os articula a outros ditos extraídos de outras passagens da obra de Freud. Assim, por exemplo, Freud, em Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), utiliza significantes tomados da biologia para falar das pulsões e de seus objetos. Mas, nos anos 20, ele já indica o caráter meramente metafórico dessas formulações. Como, por exemplo, no artigo A organização genital infantil, * Este artigo dá continuidade ao artigo do autor publicado em Latusa digital n 32, ano 5, maio de 2008. ** Aderente da EBP. 1 MILLER, J.-A. Los signos del goce (1986-1987). Buenos Aires: Paidós, 1998, p. 206. A referência de Miller ao texto O aturdito de Lacan, 1973, remete aparentemente às páginas 456-7 em Outros escritos.

2 cujo subtítulo, uma interpolação à teoria da sexualidade, sugere exatamente uma espécie de autocrítica aos Três ensaios. Queremos referir-nos a uma passagem que foi incompreendida e desconsiderada pelos pós-freudianos, mas, ao contrário, extremamente valorizada por Lacan: o que está presente, portanto, não é uma primazia dos órgãos genitais, mas uma primazia do falo. 2 Os pós-freudianos passaram ao largo dessa distinção, mantendo a sinonímia da linguagem corrente entre pênis e falo, entre o órgão anatômico e seu símbolo, entre o que é da ordem do real do organismo e o que é da ordem do simbólico. Com isso, desconsideraram a originalidade e a importância do conceito de falo fornecida por seu caráter simbólico, tal como nos rituais religiosos da antiguidade grega. Como indica Lacan, a ausência dessa distinção foi a fonte da incompreensão, por parte dos analistas ditos feministas, das formulações de Freud a respeito da sexualidade feminina, originando a famosa e intensa querela sobre o falo dos anos 30. Lacan, ao contrário, acentua a importância da distinção entre o que é da ordem da biologia e o que é da ordem do simbólico. 3 Outro exemplo fundamental também diz respeito ao conceito de pulsão, visto que nos Três ensaios, Freud utiliza, quanto ao objeto da pulsão, uma maneira de pensar extraída das ciências da natureza, no que diz respeito à temporalidade: a temporalidade cronológica. Freud fala aí de estágios ou fases de desenvolvimento da organização sexual (oral, anal, genital), o que sugere a ideia de sucessão temporal, e databilidade. A esse respeito, diz Miller: O notamos, por exemplo, no que supõe a vontade de inscrever a psicanálise nas ciências da natureza, e quando se trata do desenvolvimento do ser vivo. Uma psicanálise inscrita nas ciências da 2 FREUD, S. A organização genital infantil: uma interpolação na teoria da sexualidade. Em: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1977, p. 180. 3 LACAN, J. O Seminário, livro 4: a relação de objeto (1956-1957). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995. A significação do falo (1958). Em: Escritos, op. cit., 1998.

3 natureza só pode tomar como base, até como princípio de sua exploração, o desenvolvimento do ser vivo. Só pode reduzir a anamnese analítica a uma regressão, quer dizer, a um percurso inverso desse desenvolvimento. É certo que Freud não vamos negar isto o toma como referente 4 (grifos nossos). Miller cita, a esse respeito, o exemplo de Abraham 5 como um discípulo de Freud que toma ao pé da letra essas formulações e as desenvolve formalizando-as e enrijecendo-as: Pensem, por exemplo, na impressionante construção de Karl Abraham, que apresenta, com efeito, uma clínica diferencial inteiramente ordenada pelo desenvolvimento e pelas distintas fixações desse desenvolvimento. É algo que pareceu impressionante a seus contemporâneos, freudianos antes de tudo. Abraham oferecia uma ordenação do que parecia haver sido apresentado por Freud de forma desordenada. Em certa medida, Freud não podia deixar de reconhecêlo como seu. Por um lado era fiel a alguns de seus ditos em sua coerência 6 (grifo nosso). Lacan se dá conta de que, no entanto, em outras várias passagens de sua obra, Freud indica um tipo de temporalidade distinta da cronológica: uma temporalidade a posteriori, expressa por um significante um dito que insiste na sua pena, e que Lacan torna famoso: nachträglich. Noção que está presente desde os primeiros textos de Freud, por exemplo, para explicar o porquê de a natureza sexual e infantil restringir o âmbito do trauma charcotiano; até textos mais tardios, para tratar, por exemplo, da ameaça de castração em Hans. 7 Com o nachträglich, trata-se de uma temporalidade estranha e inusitada, na qual a causa sucede o efeito, e exatamente por isso é incompatível com as 4 MILLER, J.-A. Los signos del goce, op. cit. 5 ABRAHAM, K. Teoria psicanalítica da libido: sobre o caráter e o desenvolvimento da libido (1927). Rio de Janeiro: Imago, 1970. 6 MILLER, J.-A., op. cit., p. 207. 7 FREUD, S. História de uma neurose infantil (1918), op. cit.

4 ciências da natureza. Portanto, essa noção é externa aos marcos do positivismo. Provavelmente, isso explica o fato de que os discípulos imediatos de Freud, simplesmente, não a levassem em consideração e, ao que parece, sequer a notassem, já que não se vê aquilo que não faz sentido num dado contexto cultural. Sobre isso, diz Miller: Só que nele [Freud] a cronologia que supõe este desenvolvimento cronologia inegável é continuamente refutada por outros ditos que implicam, desta vez, a ação retroativa, a retroação. Então, por um lado, é inegável que há desenvolvimento e que a construção freudiana se apóia em seu estudo desenvolvimento da criança escandido segundo as idades, mas, por outro lado, e de maneira inversa esta cronologia poderia ser simples e continuamente desfeita, quase corroída pelo efeito da retroação 8 (grifos nossos). Ocorre que essa forma de temporalidade, que Lacan chama de lógica, é estranha à biologia, pois não se aplica à ordem do organismo. No entanto, como a linguística demonstra, ela vigora no âmbito do simbólico, da linguagem humana falada, uma vez que o significante só adquire seu significado a posteriori, a partir da pontuação, do final da frase. É o que Lacan expressa com a noção de ponto de estofo que ilustra a noção saussureana de valor do signo. Agora, este efeito retroativo só vale na dimensão significante, e é impensável em um estrito sistema positivista naturalista, porque supõe que o depois já está atuando sobre o presente, que quem amanhã será amo governa desde hoje. Para o positivismo naturalista é impensável, é um sonho 9 (grifo nosso). Acrescido, por exemplo, ao conceito de falo, e a teoria dos sonhos, esse é um dos motivos que levou Lacan a situar Freud como alguém que descobre a problemática do simbólico, senão anterior, pelo menos contemporaneamente, mas de qualquer forma independentemente da lingüística estrutural saussureana, e assim independentemente do estruturalismo que dela deriva. 8 MILLER, J.-A, op. cit., p. 206. 9 Idem, ibidem.

5 A questão é que Freud, enquanto descobridor de uma nova disciplina, de um campo novo, parece tatear no escuro. Por um lado, precisa partir de um contexto positivista, biologista, mas, por outro, encontra, em descobertas como a temporalidade a posteriori e em conceitos novos que utiliza, como o de falo, os caminhos para dar conta da originalidade do campo que descobre. Lacan: o objeto a No que diz respeito aos significantes tomados por Freud da biologia e à leitura ao pé da letra que deles fizeram os pós-freudianos, Lacan mostra que essa leitura levou seus autores a pensar os objetos em jogo na psicanálise como objetos reais, cuja falta, portanto, é sempre imaginária 10. Assim, eles veem o que chamam de frustração do seio materno real, ou das fezes reais na educação esfincteriana como a base das patologias ao estilo de Abraham, ou de Anna Freud 11. Eles também entendem literalmente o conceito freudiano central de castração como algo supostamente relativo ao pênis real da criança. Lacan ao substituir, no Seminário 4, a teoria da relação de objeto pósfreudiana (M. Balint, A. Balint, M. Bouvet) por sua teoria da falta de objeto, e distinguir, com isso, três formas de falta de objeto frustração, castração, privação, esclarece, ou melhor, interpreta, a noção freudiana central de castração e introduz o conceito de privação para dar conta da até então incompreendida questão da castração feminina. Em ambos os casos o objeto em questão não é um objeto real, o pênis, e sim o falo: imaginário (φ) na castração, e simbólico (Φ) na privação, cujas faltas são, respectivamente, simbólica e real. 10 LACAN, J. O Seminário, livro 4: a relação de objeto, op. cit. 11 FREUD, A. Introdução à técnica da análise de crianças (1926). Em: O tratamento psicanalítico de crianças. Rio de Janeiro: Imago, 1971.

6 Com isso, seguindo Freud, em Organização genital infantil, temos, no lugar de órgãos anatômicos, o falo como referência para pensar o que é da ordem do objeto na psicanálise. Mas, o que é o falo? No Seminário 5, ao interpretar magistralmente a noção freudiana de complexo de Édipo, com seus três tempos do Édipo, Lacan mostra outra vez, agora por outra via, que o conceito freudiano de castração nada tem a ver com o pastiche que dele fizeram os pós-freudianos, ou seja, algo como a perda do pênis real da criança. A castração, assim como a privação, entram em jogo no segundo tempo do Édipo quando a mãe olha para o outro lado, para o Nome-do-Pai, mostrando assim à criança que ela, a mãe, é castrada, que não tem o falo (simbólico, Φ, privação), e que a criança não é o falo (imaginário, φ, castração) ao contrário da forma como ambos se interpretavam, respectivamente, no primeiro tempo do Édipo. A noção freudiana de falo revela, com isso, sua natureza: a de objeto do desejo da mãe. Mas este objeto não é um objeto real, no sentido de realidade, ou R2, como o chama Miller 12, mas apenas simbólico ou imaginário. Portanto, ele não existe, somente ex-siste 13 como lei, como lei do desejo, do desejo do homem enquanto desejo do Outro. Só é real como resto, R3 conforme Miller, para além do simbólico, um resto foracluido universalmente do simbólico, para o qual Lacan escreve S( A ) no seu grafo do desejo 14. Portanto, o falo é inefável, só conotado por sua falta, o que leva Lacan a escrevê-lo como (- φ). 12 MILLER, J.-A, op. cit., p. 143. 13 LACAN, J. O aturdito (1973). Em: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 451. 14 LACAN, J. O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente (1957-1958). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. O Seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação (1958-1959). Inédito. Subversão do sujeito e a dialética do desejo no inconsciente freudiano (1960). Em: Escritos, op. cit.

7 Para lidar com o falo a criança precisa atribuir-lhe um sentido, como num mito 15. Esse processo é apreendido por Lacan com o recurso à noção de fantasia, a partir da noção de fantasia primordial de Freud 16, a qual Lacan matemiza pela primeira vez na construção do grafo do desejo, como $ a. Matema onde a letra a perde sua significação anterior, de pequeno outro imaginário 17 no esquema L, para representar o que está no núcleo agalmático deste: o suposto objeto do gozo do Outro. 18 Assim, o objeto a, como Lacan nomeará a partir do Seminário 10, é a única forma possível de representação do falo, e da castração do Outro materno, (a/-φ), que ele visa tamponar. O que leva Miller a falar para surpresa de sua platéia da função significante de a. 19 Como tal, o objeto a se torna o objeto da pulsão, que, nunca o encontrando, apenas contorna seus semblantes, i(a), num circuito interminável 20, como uma konstant kraf, maneira pela qual Freud definiu a pulsão. 21 Com isso, a noção de pulsão perde, em Lacan, a conotação supostamente orgânica, para ser reinterpretada no plano simbólico como a relação do sujeito com aquilo que media sua relação com o Outro, a saber: a demanda, e seus significantes. O que leva Lacan a matemizá-la no grafo do desejo como $ D. 15 LACAN, J. O mito individual do neurótico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008. 16 FREUD, S. Uma criança é espancada (1919), op. cit. 17 LACAN, J. O Seminário, livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (1954-1955). Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. 18 LACAN, J. O Seminário, livro 8: a transferência (1960-1961), op. cit., 1992. 19 MILLER, J.-A., op. cit., p. 165 e a seção a função significante. 20 LACAN, J. O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. 21 FREUD, S. Os instintos e suas vicissitudes (1915), op. cit.

8 Assim, as pulsões parciais freudianas (oral e anal) são reinterpretadas como formas de demanda 22, respectivamente, a demanda ao Outro, que encontra no seio o objeto adequado para representá-la para a criança, e a demanda do Outro, que faz o mesmo com as fezes a partir da educação esfincteriana. Lacan acrescenta a pulsão visual (objeto olhar) e a pulsão invocante (objeto voz), completando o elenco dos objetos soletrados no corpo, como os chamou Miller. 23 Com isso, esses objetos deixam de ser compreendidos como relativos a fases ou estágios sucessivos, pelos quais passariam todos os sujeitos, universalmente, em um suposto desenvolvimento, ao estilo de Abraham. Eles passam a ser vistos como o resultado de interpretações singulares, ou pelo menos particulares, da estrutura (da relação do sujeito com o Outro), das quais resulta o que Freud chama de escolha da neurose, termo que soava, até então, como tantos outros, enigmático. No lugar de fases, cabe aqui, portanto, o termo organizações, que Freud também usou prudentemente. Quanto à questão da temporalidade, é evidente que a escolha de um objeto pré-genital como representação do falo para um dado sujeito, só é feita a posteriori, a partir do genital infantil freudiano, da organização fálica, e do que resulta daí: o confronto com a castração. Assim conclui Miller: Tomemos as coisas deste modo: este ponto de vista [de Abraham] conduz a fazer do genital um estágio, quando o segredo da questão é que a castração não é um estágio mas sim um princípio de organização do desenvolvimento; é o a posteriori do desenvolvimento, enquanto que o determina em cada um de seus momentos. Por isso, Lacan não fez da libido um duplo do desenvolvimento. Em Abraham o desenvolvimento está ordenado pela libido, e se tratará então de saber se ela vai fixar-se ou seguir sua rota até seu estágio adulto. Lacan não ordena a libido a partir do desenvolvimento, mas sim da castração como lugar, ou seja, a partir da estrutura. É como sabem o que escreve (-φ). Menos phi é um dado de origem, o da 22 LACAN, J. O Seminário, livro 8: a transferência, op. cit. 23 MILLER, J.-A AMP 2008 Os objetos a na experiência analítica. Em: Opção Lacaniana n 46. São Paulo: Eolia, 2006, p. 32.

9 perda que, ao ser remetida a esta ordem de causalidade [a posteriori] que mencionava, adquire o valor de castração 24 (grifos nossos). No Seminário 17, com a teoria dos discursos, a letra a recebe outra designação: plus de jouir, mais-de-gozar ou a mais de gozo 25. Trata-se de um sintagma construído a partir da noção marxista de mais valia para designar o que está para além do valor de uso aparente, consciente, de qualquer objeto em jogo na vida do sujeito, como a produção inconsciente. Mais-de-gozar que o sujeito visa obter, de fato, em seus laços sociais. Dessa forma, o conceito de objeto a se universaliza para além de certo naturalismo do objeto que ainda estava presente no Seminário 10. No Seminário 22, o objeto a ocupa a posição central no nó borromeano, articulando os três registros da experiência humana : R, S e I 26. Papel que será desempenhado, no seminário seguinte, pelo sinthoma como um quarto elo. 27 A guisa de conclusão Os positivistas supuseram, como disse Durkheim, que os fatos sociais podem ser tratados como coisas. Parodiando-o, podemos dizer que os pósfreudianos, também positivistas, supuseram, ao tomar Freud ao pé da letra, que os laços sociais podem ser tratados como coisas [reais]. Coube a Lacan interpretar Freud, extrair de seus ditos o que é da ordem do dizer, mostrando que Freud descobriu outro registro, outra dit-mension que é 24 MILLER, J.-A, op. cit., p. 207. 25 LACAN, J. O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (1969-70). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992. 26 LACAN, J. O Seminário, livro 22: R.S.I. (1974-1975). Inédito. 27 LACAN, J. O Seminário, livro 23: o sinthoma (1975-76). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007.

10 específica do falante 28. Com isso, a psicanálise, situando-se, apesar de não ser uma ciência, no campo das Geisteswissenchaften, não pode ser reduzida a uma ciência da natureza, como pregava o programa de Comte e, por extensão, o programa do primeiro Freud e o dos pós-freudianos. 28 LACAN, J. O aturdito, op. cit., p. 451.