Ponteio nº1 para violão de Adelaide Pereira da Silva: uma análise estética

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Transcrição:

Ponteio nº1 para violão de Adelaide Pereira da Silva: uma análise estética Mayara Amaral 1 UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS/EMAC SIMPOM: Performance/ Teoria e Prática da Execução Musical mayara.violao@gmail.com Resumo: A presença das mulheres na composição nacional é notavelmente inferior à de homens, e essa desigualdade de gêneros possui fatores demasiadamente complexos, que vem sendo estudados, nos últimos anos para uma melhor compreensão deste contexto e para a ressignificação de estereótipos sobre a imagem do compositor erudito. O presente artigo tem como objetivo levantar aspectos da escrita da obra Ponteio n. 1, da compositora paulista Adelaide Pereira da Silva, através de análise estética, comprometendo-se a demonstrar que se trata de uma obra de vertente específica do nacionalismo da música brasileira. Desse modo, utilizamo-nos de embasamento que contribua para relacionar tal obra com o nacionalismo defendido por Mario de Andrade e posto em prática por Camargo Guarnieri, e propomos uma reflexão sobre este tipo de abordagem composicional ao violão, comentando os aspectos idiomáticos encontrados na obra, na realização de nossa análise. Sendo esta uma estética pouco visitada no âmbito da composição nacional violonística, acreditamos contribuir, com este escrito, para ampliar a discussão sobre este tipo de estética composicional, que tanto representa a música brasileira em seu período pós Villa-Lobos e que faz parte de um conjunto de obras reconhecidas em todo o mundo como representativos de nossa arte. Além disso, vemos ser pouco citado o nome de Adelaide, o que nos motiva a elaborar esse estudo para melhor visualização e compreensão da presença da mulher na composição erudita brasileira, associando a isso o violão, que também é representativo de identidade nacional. Palavras-chave: Música e Gênero; Repertório Violonístico; Música Brasileira; Violão. Ponteio n. 1 for Guitar from Adelaide Pereira da Silva: An Aesthetics Analysis Abstract: The presence of women in national composition is remarkably lower than mens, and that gender inequality has too complex factors that have been studied in recent years, for a better understanding of this context and the redefinition of stereotypes about image the classical composer. This article aims to indicate the written aspects of the work Ponteio n. 1 of the composer Adelaide Pereira da Silva, through aesthetic analysis, engaged to demonstrate that it is a work of specific section of nationalism in Brazilian music. Thus, we use in the foundation that contributes to relate this work with nationalism defended by Mario de Andrade and implemented by Camargo Guarnieri, and propose a reflection on this type of compositional approach to the guitar, commenting on the idioms found in the work, in conducting our analysis. This being an aesthetic little visited within the guitaristic national 1 Mestranda em música pela Emac-UFG e bolsista pela CAPES; Orientador: Professor Doutor Eduardo Meirinhos.

1321 composition, we believe contribute, with this article, to broaden the discussion about this kind of compositional aesthetic that so much represent Brazilian music in his period after Villa- Lobos and is part of a group of works recognized worldwide as representative of our art. Furthermore, we see barely mentioned the name of Adelaide, which motivates us to draw up this study to better view and understanding of women's presence in national scholarly composition, associating to the guitar, which is also representative of national identity. Keywords: Music and Gender; Guitar Repertoire; Brazilian Music; Guitar. 1. Introdução A busca e investigação de obras de compositores brasileiros têm constituído os objetos de pesquisa de muitos acadêmicos na área de música no Brasil, como temos visto nos encontros e congressos realizados nos últimos anos. Entre os estudantes de violão, percebemos que muitas obras de compositores brasileiros não chegam com facilidade ao alcance dos alunos, por diversos motivos, seja pelo interesse estrito em obras do repertório tradicional do violão, ou mesmo por entrarem no esquecimento de quem chegou a ter acesso a estas obras, permanecendo engavetadas. Considerando ainda as obras de mulheres compositoras, sabe-se que estas são pouco difundidas no repertório de concerto nacional, fator que nos instigou a questionar o porquê deste desequilíbrio e contribuir para uma melhor compreensão deste contexto, que felizmente está mudando por ter recentemente ganhado o interesse de muitos investigadores da área. Com o intuito de colaborar com estes três setores da pesquisa em música atual a difusão de obras brasileiras; obras de linguagem pouco explorada no violão; participação de compositoras no cenário violonístico brasileiro encontramos a peça Ponteio n. 1 (1971) de Adelaide Pereira da Silva para nossa análise estética. Trata-se de uma obra que faz parte de um contingente de linha nacionalista, ao modo da escola guarnieriana de composição, o que nos levou a dar um olhar de maior destaque para esta peça. Para tanto, utilizamos uma análise que busca elementos nesta obra que confirmem se tratar de parte do repertório brasileiro com linguagem da estética nacionalista marioandradiana, ou seja, uma proposta musical que permeou a produção de importantes compositores da história nacional, como Camargo Guarnieri, Osvaldo Lacerda, entre outros. Ao longo de nossa análise constatamos que esta obra se destaca por apresentar tais elementos, como contraponto, linhas melódicas de caráter mais lírico, harmonias que servem de suporte à melodia e inspirações dramáticas no andamento.

1322 O papel da mulher na história tem sido revisto nos últimos vinte anos, constituindo um novo campo de estudos chamado estudos de gênero. Na música, estes estudos têm levantado as biografias de mulheres compositoras e intérpretes, destacando suas obras e suas atuações. Ou seja, relatar o papel de mulheres na produção musical é dar um olhar mais abrangente para a história, ampliando-o para novas fontes de pesquisa. Apesar da presença crescente da mulher no mundo da música na atualidade, inclusive no da composição musical, há necessidade de se recuperar a memória da atuação feminina em períodos anteriores, trazendo-a para o presente, em busca de melhor compreender nossa própria história (não só a história das mulheres musicistas, mas também a história da música no Brasil, da qual ela faz parte). (FREIRE, PORTELA, 2013, p. 22.) Sabemos que o número de mulheres na composição musical ainda é muito inferior ao dos homens tratando-se das citações na bibliografia especializada. Acreditamos ser a origem dessa desigualdade significativamente complexa, fato que tem demandado vários estudos a respeito da relação entre gênero e música, especialmente na composição musical. Os trabalhos que mais tem colaborado para suprir essa desigualdade de informações a respeito de mulheres compositoras tratam do levantamento de obras e biografias de compositoras, juntamente com a difusão dessas obras por meio audiovisual. Diversos congressos e encontros têm contribuído para esse tipo de estudo e estamos vendo um aumento significativo no contingente de pesquisadores que se dedicam a este tipo de abordagem. No que se refere especificamente às obras para violão, ainda são poucas as tentativas e aprofundamentos sobre esse tema. O presente artigo faz parte de uma dissertação de mestrado em andamento que reúne a obra de cinco compositoras brasileiras, abrangendo especificamente a década de 1970, e tem o objetivo não só de elencar as mulheres ativas e suas obras nesse período, mas principalmente, através de análise e reflexão, procurar compreender como elas dialogam com as vertentes estéticas do período. As análises servem de fundamentação para estabelecer esse diálogo e demonstrar o que estas obras representam para o repertório violonístico brasileiro, que é preterido muitas vezes pelos estudantes e violonistas. Para o foco desta comunicação escolhemos a obra de Adelaide Pereira da Silva, Ponteio n. 1, que foi composta em 1971. A escolha desta obra específica deve-se ao seu caráter nacionalista, pouso usual nas obras para violão do período, bem como, considerando a

1323 sua propriedade artística, o merecimento de maior visibilidade no cenário violonístico. É a única obra para violão da compositora que foi editada. 2 Adelaide Pereira da Silva Adelaide Pereira da Silva é natural de Rio Claro, interior do estado de São Paulo, nascida em 1928. Entre seus professores de piano estão Nair de Souza, Dinorá de Carvalho e Hans Bruch. Estudou análise, harmonia e contraponto com Osvaldo Lacerda e composição com Camargo Guarnieri. Desenvolveu intensa atividade como pianista, passando depois a dedicar-se ao ensino, lecionando harmonia, literatura, prosódia e estruturas musicais nas cidades de São Paulo e Pindamonhangaba (BARONCELLI, 1987, p. 246). Realizamos uma entrevista com a compositora, que reside na capital paulista, tendo como objetivo o levantamento de informações sobre sua obra para violão. Tal entrevista foi fundamental para responder algumas questões sobre seu trabalho para o instrumento e decisiva para as escolhas que tomamos em nossa análise. As perguntas da entrevista foram estruturadas conforme linhas de assunto, de âmbito cultural, composicional, estético e instrumental. Questionamos ainda sobre suas visões estéticas sobre a composição musical, sobre a música brasileira, sobre os possíveis problemas que enfrentou para adequar sua linguagem composicional ao violão, e como ela enquadra a sua obra para o instrumento no contexto de toda sua obra e na cultura musical brasileira. Sobre sua atividade como compositora, ela afirmou que sempre esteve escrevendo alguma coisa, ou seja, suas obras não foram algo que começou depois das atividades de pianista e professora, mas em conjunto. Adelaide afirmou que continua sua atividade composicional até os dias de hoje, diariamente. A compositora possui premiações em concursos de composição em abrangência nacional, e já foi homenageada em diversos festivais dentre os quais podemos citar: Concurso de Composição da Associação Brasileira de Folclore e Jornal A Gazeta com a obra Três canções sobre temas do folclore brasileiro (1963), primeiro prêmio; Concurso Nacional de Composição Cidade de Santos com a canção É tão pouco o que desejo (1966), segundo prêmio. Sobre seu contato com o violão, em entrevista ela afirmou que desde criança havia encontros em sua casa onde se realizavam apresentações musicais sempre com a 2 Até o momento da concepção deste artigo não tínhamos notícia de outras obras para violão de Adelaide, pois esta não se recordava se havia escrito mais obras. Porém após uma segunda visita à compositora, que muito cordialmente nos recebeu, esta nos disponibilizou mais duas obras suas para violão solo que estão em manuscrito. São elas: Choro, de 2004 e Chorinho composta em 2001.

1324 presença do violão, canto e piano. Sua mãe foi quem lhe ensinou as primeiras notas, e segundo ela, todos arranhavam um pouco de violão em casa, mas quem tocava muito bem o instrumento era o seu irmão. Ponteio n. 1 A palavra ponteio é utilizada por diversos compositores, para designar uma peça instrumental de curta duração, com características formais livres. Remete ao ato de pontear viola, praticado pelos cantores caipiras brasileiros antes de cantar uma canção a fim de conferir a afinação de sua viola (MATSCHULAT, 2011, p. 28). Camargo Guarnieri descreve a escolha deste título para suas peças da seguinte forma: Na verdade [os ponteios] são prelúdios que tem caráter clara e definitivamente brasileiro. Achei melhor utilizar uma palavra diferente de prelúdio para expressar este caráter brasileiro (GUARNIERI apud VERHAALEN, 2001, p. 128). A obra Ponteio n. 1, dedicada ao violonista Isaías Sávio, foi editada pela Ricordi, mas nunca foi gravada. Até o momento de nossa entrevista a compositora tinha sequer ouvido a sua obra sendo executada. Porém ela nos relatou a intenção de compor uma continuação de outros ponteios. Trata-se de uma peça curta, possuindo apenas duas páginas. Sobre este aspecto já podemos inferir a semelhança e relação com os ponteios de Camargo Guarnieri, pois estes também são curtos e com característica de prelúdio. Em uma abordagem contrapontística, a obra inicia-se com o acorde de lá menor arpejado. Depois seguem-se melodias em contraponto, procedimento que caracteriza toda a textura da peça. Este tipo de contraponto nacionalista isto é, que possui melodias com elementos específicos é uma prática que tem como característica principal a busca pelo nacional, possuindo um lirismo seresteiro intrínseco à melodia. Nesta entrevista, a compositora afirmou que a peça deve ser entendida em sua estrutura para que seja bem executada. Ressaltou também que em sua obra como um todo ela valoriza muito a melodia e que a harmonia é uma forma de roupagem dessa melodia. O nacionalismo em sua obra pode ser percebido nestes materiais melódicos que ela utiliza, sempre optando pela condução melódica como representativa do discurso musical, conforme a escola guarnieriana de composição. Sob o aspecto rítmico, a obra começa com colcheias e acordes arpejados, que na verdade delineiam toda a obra, tendo momentos de mais velocidade proporcionados por tercinas e semicolcheias. Temos na primeira frase da obra, compassos 1,2 e 3, o sobe e desce

1325 das melodias em contraponto. Ao longo da peça a compositora desenvolve o contraponto, mas com notas mais longas nos baixos, como podemos ver também neste início. Fig. 1: Compassos 1 e 2. Pode-se dizer que existe um motivo temático melódico com três notas em grau conjunto que delineia a peça, formando o contraponto sempre com ritmo de colcheias, até o compasso 13, ora ascendente, ora descendente. No compasso 6 temos o uso de duas melodias que seguem um pequeno espaço em quartas, o que nos leva a perceber a preocupação da compositora com a coerência em relação ao idiomatismo do violão. Fig. 2: Compasso 6. A partir do compasso 12 temos uma passagem mais dramática, onde encontramos uma melodia intermediária que não chega a se desenvolver plenamente. Quanto ao manejo da forma em Guarnieri, Verhaalen observa em análise dos Ponteios para piano os seguintes parâmetros: Com relação à forma, Guarnieri dizia que considerava quase todos os Ponteios monotemáticos, com exposição seguida por reexposição. Devido à estrutura irregular das frases, da diferença em extensão, da textura polifônica, das elisões e do encadeamento dos fragmentos, em muitos deles é bastante difícil distinguir onde se localiza, se existe uma seção central, ou se de fato há apenas uma continuação do material principal. Com frequência um movimento harmônico mais ativo anuncia o clímax da peça e a reexposição do tema. Em geral a melodia inicial reaparece no Ponteio, como uma pequena coda. A brevidade da maioria das peças também torna difícil analisá-las formalmente como escritas em três partes, pois cada qual pode ter apenas algumas frases. (VERHAALEN, 2001, p. 128.) Desta mesma maneira entendemos este Ponteio de Adelaide. Uma construção formal monotemática, com uma cisão em que se encontra a harmonia apregoada ao acorde de dominante e uma segunda parte onde é reexposto o material do início.

1326 Podemos afirmar que a peça está dividida em duas partes com um meio de transição, até retomar a tempo e repetir os motivos melódicos do início da obra. Há apenas uma pequena troca de registro no primeiro motivo. No compasso 13 inicia-se uma parte com mais velocidade com o uso de semicolcheias, que serve como uma transição até retomar o motivo inicial e iniciar a segunda parte. Fig. 3: Compasso 13. Velocidade maior devido às semicolcheias, dando início a um caráter mais dramático. Nesse momento (Figura 4), o ritmo natural da música leva para um aceleramento do andamento através das semicolcheias que aparecem pela primeira vez. Para que sejam enfatizados os pontos de notas mais agudas, todos os acordes devem ser arpejados. Fig. 4: Compassos 16, 17 e 18. Arpejo dos acordes enfatizando a melodia descendente na parte mais aguda, construindo assim um caráter de lirismo. Do compasso 19 ao 22 temos uma seção de transição, onde o andamento é desacelerado e há duas melodias que iniciam-se na mesma nota, mas vão para direções opostas em movimento cromático, enfatizado por um poco rall. A partir do compasso 23 inicia-se o retorno ao tema do começo. Classificamos essa como parte B, ou reexposição. No compasso 31 caminha-se para o final da peça, com a culminância de uma parte mais dramática no compasso 35 (abaixo), com o acorde de Mi arpejado. Fig. 5: Compasso 35. Arpejo no acorde de mi menor, fazendo uma cesura natural para os compassos finais.

1327 A compositora especificou alguns pontos com alterações no andamento com caráter expressivo, principalmente no final. Idiomatismo Apesar de não parecer idiomática à primeira vista, esta obra lida com a ressonância natural de uma maneira muito interessante. Sob o aspecto técnico-instrumental a escolha da tonalidade de Lá menor favorece o uso de cordas soltas nos revelando a preocupação da compositora com a este aspecto. Apesar disso, deparamo-nos com questões técnicas que exigem relativo preparo do instrumentista, como algumas aberturas de mão esquerda. É importante ressaltar que se deve ter um cuidado especial para conduzir as melodias, mantendo o caráter lírico e seresteiro. Desta forma, esta obra integra o contingente de peças para violão escritas em um estilo nacionalista contrapontístico. À parte da obra de Camargo Guarnieri, que compôs um conjunto de seis peças para violão solo neste estilo nacionalista, temos poucas obras que agregaram esta estética para o repertório violonístico do período. Citamos aqui duas, a Valsachôro de Sérgio Vasconcellos-Corrêa e o Ponteio de Osvaldo Lacerda. Lacerda é um exemplo de aluno de Guarnieri que possui obras estilisticamente em acordo com este tipo de nacionalismo: contraponto rigoroso, linhas severas, colisão vertical das linhas horizontais cromaticamente alteradas e uso de politonalismo (ZANON, 2007). Vale lembrar que este também foi professor de Adelaide por muitos anos e deixou uma marca forte em seu estilo de escrita. Osvaldo Lacerda foi profundamente influenciado pelas idéias e obras de Mário de Andrade, especialmente no apego à busca de uma música de caráter nacional, onde seus elementos constitutivos mais genuínos fossem encontrados no sentimento, na poesia e na música do povo (BARROS, 2007, p. 7.) Entre as características desta linha nacionalista está a aversão ao exotismo e a tendência ao cromatismo, ou seja, o compositor deve buscar a expansão do tonalismo, mas sem seguir uma determinada linha de vanguarda, utilizando assim recursos de cromatismos, harmonias em quartas, acordes que polarizam tonalidades, entre outros. Esta linha estética de composição representa a estética nacionalista proposta por Mario de Andrade, como a última fase da Arte Nacionalista, onde existe a inconsciência do elemento nacionalista, sem regionalismos, onde o nacional flui pela obra sem citações de produtos exóticos que esperam a curiosidade europeia (ANDRADE, 1972, p. 14). Essa proposta não buscava apenas impressionar, nem poderia flertar com a música ligeira e, sobretudo não poderia cair no exótico, pois se tratava da representação do

1328 nacional. Ela demandava compositores com boa formação técnica, que trabalhassem de forma mais intelectual e reflexiva e que fossem criteriosos na escolha dos materiais empregados (PEREIRA, 2011 p. 17.) Conclusões Portanto, o que podemos perceber nesta obra quanto ao estilo nacionalista marioandradiano/guarnieriano de composição são algumas características que marcam este estilo mais enigmático de demonstrar os elementos nacionais na música. Entre essas características, podemos elencar nesta obras as seguintes: utilizações de marcações diferentes de fórmulas de compasso, o que indica uma maior preocupação com as inflexões melódicas do que com o ritmo propriamente; o contraponto com melodias curtas, de caráter seresteiro, que se encontra em maior parte em uma textura de duas vozes; clímax da peça com lirismo, proporcionado pelo uso de tercinas e semicolcheias até se chegar às notas mais agudas; acordes arpejados com indicação na partitura destacando as notas mais agudas; cromatismo nas melodias, formando dissonâncias entre as vozes. Acreditamos, assim, que esta é uma obra de êxito no sentido técnico instrumental e que pode ser mais visitada por intérpretes, destacando as capacidades do violão, principalmente no que diz respeito a este estilo contrapontístico. Ao mesmo tempo desafiadora e repleta de maneirismos nacionalistas, a obra Ponteio n. 1, da compositora Adelaide Pereira da Silva, tem muito a somar para o repertório violonístico nacional. Referências ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. 3ª ed. São Paulo: Vila Rica; Brasília: INL, 1972. BARONCELLI, Nilceia Cleide da Silva. Mulheres compositoras: Elenco e repertório. São Paulo: Roswitha Kempf, 1987. BARROS, Fernando P. C. de. As canções de Osvaldo Lacerda com textos de Manuel Bandeira. Dissertação (Mestrado). Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás. Goiânia, 2007. FREIRE, Vanda L. B., PORTELA, Ângela C. H. Mulheres compositoras: da invisibilidade à projeção internacional. In: Estudos de Gênero, Corpo e Música: abordagens metodológicas. ANPPOM, 2013.

1329 MATSCHULAT, Josias. Gestos musicais no Ponteio n. 49 de Camargo Guarnieri: análise e comparação de gravações. Dissertação (Mestrado) Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011. PEREIRA, Marcelo F. A contribuição de Camargo Guarnieri para o repertório violinístico. Tese (Doutorado em musicologia) Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. VERHAALEN, Marion. Camargo Guarnieri: expressões de uma vida. Trad. Vera Silva Camargo Guarnieri. São Paulo: EDUSP; Imprensa Oficial, 2001. ZANON, Fábio. Programa violão com Fábio Zanon. N. 154: Osvaldo Lacerda, Eunice Katunda e Sérgio Vasconcelos Correa. São Paulo: Rádio Cultura FM, 2007. Disponível em: <HTTP://vcfz.blogspot.com/>.