Mariana Estellita Lins Silva. Universidade Federal do Rio de Janeiro

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Transcrição:

A arte contemporânea e o museu: desafios da preservação para além do objeto Mariana Estellita Lins Silva Universidade Federal do Rio de Janeiro Versión digital en : http://www.uam.es/mikel.asensio Resumo: Esta pesquisa busca analisar as estratégias desenvolvidas pelos museus de arte contemporânea para lidar com a efemeridade e a imaterialidade das obras de arte. No âmbito da Arte Contemporânea surgem novas linguagens e categorias artísticas, que, no momento em que problematizam o objeto de arte, impõe às instituições museológicas uma reavaliação de sua prática. Existem estratégias utilizadas pontualmente por instituições e pelos próprios artistas, com o intuito de viabilizar a preservação desses acervos, a saber: os registros, os projetos e as réplicas. Os registros (fotográficos, filmográficos ou sonoros) se aplicam às obras efêmeras, perecíveis ou que de alguma maneira se desenvolvem no tempo. Os projetos (ou os roteiros) são utilizados pelos próprios artistas, que desenvolvem um planejamento da obra, descrevendo seu processo de montagem ou de acontecimento, tal como uma receita, permitindo sua remontagem por outras pessoas com outros materiais idênticos. Já as réplicas (ou substituições) se adequam às necessidades das obras relacionais, que demandam a manipulação do público, ou simplesmente objetos que sofreram ação do tempo e podem ser substituídos, no todo ou em partes, sem perda simbólica. Estes mecanismos são articuláveis entre si, sendo possível realizar réplicas a partir de projetos, fazer registros a partir de roteiros ou réplicas a partir registros. Palavras Chave: Museu, Museologia, Arte Contemporânea. Abstract: This research analyzes the strategies developed by the contemporary art museums to deal with ephemeral and the immaterial artworks. In the realm of contemporary art emerge new languages and artistic categories, which problematize the art object and requires the museum a reappraisal of your practice. There are strategies used occasionally by institutions and artists, in order to enable the preservation of these collections: records, projects and replicas. The records (photographs, filmographies or sound) are applied to ephemeral or perishable works, or that ones in some way develop over the time. Projects (or scripts) are used by the artists themselves, developing a plan of work, describing [41]

his assembly process or event as a revenue, allowing their reassembly by others with other identical materials. Replicas (or replacements) suit the relational art, works that require the manipulation of public, or simply objects that have time action and can be replaced, in whole or in part, without symbolic loss for the work. These mechanisms are articulated among themselves: replicas can be made from projects, records from scripts and replicas from records. Key Words: Museum, Museology, Contemporary Art Até a Arte Moderna as obras de arte eram concebidas como objetos únicos, produtos da expressão do artista, como a concretização de um momento singular de criação. A materialidade da obra é o elemento que une o ato criativo do artista ao momento de contemplação do espectador. Esta relação é trabalhada por Walter Benjamin a partir do conceito de aura, onde a obra é um signo que remete ao tempo histórico no qual foi concebida, como testemunho de uma tradição. Em seu suporte acumulam-se vestígios da passagem do tempo, que, agregados a elementos simbólicos, lhe conferem valor de culto. Neste contexto, os museus são compreendidos como espaços sagrados de contemplação. Ao longo dos corredores, os visitantes posicionam-se enquanto observadores de um conjunto de objetos dispostos no espaço, onde o silêncio e a distância das obras devem ser mantidos, garantindo o conforto contemplativo do público e a segurança do acervo. A partir do século XX, paralelamente às categorias de obras tradicionalmente existentes, surgem no âmbito da arte contemporânea, objetos relacionais, obras perecíveis, efêmeras, entre outras tipologias que problematizam a função do objeto no processo artístico. A arte passa a ser vista como um dispositivo de interatividade entre o artista, o espaço social e o espectador, e não mais como um suporte estático a ser contemplado. As obras podem se desenvolver através da relação com o tempo, com o espaço e por intermédio de quaisquer dos cinco sentidos, não sendo passíveis de geração de significado apenas por meio da contemplação. A obra de arte se constitui então como relação. Ao se transformar em processo, não só precisa ser vista, mas vivenciada, para que haja produção de novos significados. [42]

Esta nova concepção torna-se problemática para o museu de arte, que, originalmente, teve sua área de atuação desenvolvida em função do objeto material. Surge então a questão: Como manter o potencial de comunicação das obras de arte contemporâneas e ao mesmo tempo preservá-las como documento para as gerações futuras? A melhor forma de garantir o poder comunicacional de cada obra deve ser definida pela instituição museológica a partir da compreensão da proposta elaborada pelo artista. Ao privar o público de manipular obras táteis, limitar as obras relacionais à observação, ou retirar o movimento de obras cinéticas, o museu inviabiliza a relação que deveria ser desenvolvida com o espectador. Se, devido à conservação, essas obras estão restritas à contemplação visual, elas não provocam a articulação de novos significados, e, portanto, não se completam enquanto processo informacional. A incompreensão da proposta do artista, por parte da instituição museológica, desencadeia, portanto, uma desarticulação do processo informacional da obra. O recorte conceitual da pesquisa baseia-se, em primeiro lugar, no conceito de obra relacional trabalhado por Nicolas Bourriaud. O autor caracteriza a obra de arte contemporânea como um dispositivo capaz de articular novas relações, e não mais como o produto final do processo criativo do artista. Segundo ele, as obras são proposições, que criam uma coletividade instantânea, convidando o público, outrora apenas observador, a tornar-se participante, a completar a obra e participar da elaboração de seu sentido (BOURRIAUD, 2009 a: 82). Neste contexto, a exposição é fundamental para a constituição da obra de arte. O museu não se destina mais a mostrar resultados de um processo, mas se caracteriza como um local de produção, já que é nele que acontece a interação. Há, portanto, a necessidade de sistematização de uma prática museológica que viabilize o processo artístico. Diversos autores defendem que as transformações conceituais da arte não foram acompanhadas nem técnica, nem filosoficamente pelo museu. Para Mario Chagas, as novas concepções artísticas, acentuadas no Brasil na década de 1970, colocam-se como questionadoras para o modelo clássico de museu, fazendo com que as instituições se reposicionem diante do novo paradigma. As experiências que nos anos 70 opunham-se teórica e praticamente ao caminho adotado pelos museus clássicos, de caráter enciclopédico, desaguaram caudalosas nos anos 80, permitindo a construção de veredas alternativas e a busca de sistematização teórico-experimental. (CHAGAS, 2002: 57) [43]

Em consonância, Cristina Freire defende a idéia de que a alteração do conceito de obra de arte é uma transformação epistemológica. Neste cenário, o contraste com o modelo moderno da instituição museológica é maior, sendo necessário não só uma reavaliação técnica, mas uma mudança de mentalidade. [...] o paradigma moderno dos museus já não se adéqua às políticas artísticas há algumas décadas. Uma alteração do que chamamos obra de arte vem ocorrendo desde, pelo menos, a segunda metade do século XX. Não se trata aqui de uma simples alteração semântica, mas sim epistemológica; ou seja, não apenas o objeto de arte, mas, sobretudo o objeto da arte deve ser reconsiderado. O que implica, necessariamente, uma crítica às instituições que pavimentam o caminho à legitimação das narrativas. E a tarefa que se nos apresenta é bastante complexa e exige ainda uma mudança de mentalidades. (FREIRE, 1999: 169-170) Em uma perspectiva mais técnica, a autora descreve situações práticas de instituições dentro e fora do país onde há um descompasso em relação à proposta do artista, causando perda de sentido à obra de arte, evidenciando a necessidade de discussão e reformulação do sistema museológico. Neste sentido, Freire nos traz um exemplo ocorrido no MoMA: Joseph Kosuth (EUA, 1945), um dos mais importantes artistas conceituais norte-americanos, apresentou no MoMA de Nova York o trabalho One and Three Chairs (1965) onde justapôs a cadeira real às suas representações (definição de cadeira do dicionário e fotografia de cadeira). Apesar de ter sido adquirido pelo MoMA, essa obra foi destruída ao ser incorporada à coleção do museu, uma vez que a cadeira foi encaminhada ao Departamento de Design, a foto ao Departamento de Fotografia e a fotocópia da definição de cadeira à biblioteca. (FREIRE, 1999: 45-46) A teoria museológica tem trabalhado com o conceito de museu voltado para o desenvolvimento da sociedade no presente. A partir da definição de museu utilizada pelo Instituto Brasileiro de Museus IBRAM em que O museu é uma instituição com personalidade jurídica própria ou vinculada a outra instituição com personalidade jurídica, aberta ao público, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento (...) (grifo nosso), é possível perceber a preocupação com que os museus não constituam entraves às transformações culturais. Atualmente, os museus são vistos como locais de construção de valores, extrapolando a concepção tradicional voltada para a conservação e disposição [44]

de objetos no espaço. Entretanto, existe uma questão, que precisa ser permanentemente reavaliada: a relação entre a preservação da memória e as constantes transformações da sociedade contemporânea. Nas palavras de Mario Chagas: Operando com objetos herdados ou construídos, materiais ou nãomateriais, os museus trabalham sempre com o já feito e já realizado, sem que isso seja, pelo menos em tese, obstáculo para a conexão com o presente. Essa assertiva é válida tanto para os museus de arte contemporânea, quanto para os ecomuseus envolvidos com processos de desenvolvimento comunitário. (CHAGAS, 2002: 55) A arte contemporânea impõe às instituições museológicas uma reavaliação de sua prática. A conservação exercida pelos museus eficiente até a arte moderna não se mostra adequada aos acervos de arte contemporânea, limitando as possibilidades de interação propostas pelos artistas. Não há ainda uma discussão estabelecida entre o campo da arte e da museologia que aponte soluções estratégicas para a preservação dos acervos em expansão. Enquanto isso, por ausência de uma normatização, a forma com que a obra será exposta fica a critério de cada instituição e ao gosto dos profissionais envolvidos. Isso leva a uma fragilização do potencial comunicacional do acervo, e compromete a percepção que o público tem das obras. Esta pesquisa tem como foco central a dinâmica que a obra de arte relacional estabelece com a instituição museológica. Para isso serão entrecruzados conceitos e aspectos da museologia contemporânea com a percepção e a prática de artistas e curadores. Do ponto de vista museológico, houve, no âmbito da museologia contemporânea, uma mudança de paradigma, da conservação para a preservação. A conservação se refere à manutenção da integridade física dos objetos, como o controle de temperatura e umidade, higienização e acondicionamento das peças etc. Já a preservação é um conjunto de práticas que, além da conservação, incluem a documentação, a divulgação do acervo, e todas as ações possíveis para viabilizar o processo de comunicação das obras, tendo como foco não puramente o objeto, mas a relação estabelecida com o público. Por outro lado, os artistas e curadores, que não são diretamente responsáveis pela atividade de preservação das obras, trabalham a arte contemporânea apenas [45]

do ponto de vista das propostas e dos conceitos, e não do ponto de vista dos suportes. Entretanto, dentro do conceito de preservação, eles desempenham papel fundamental, visto que, sem outras preocupações além da própria obra, eles elaboram artifícios para viabilizar a exposição (e a re-exposição) de obras relacionais. Estes artifícios que são utilizados pontualmente em algumas obras, sem qualquer pensamento estratégico de preservação de acervos, serão analisados nesta pesquisa como possíveis ferramentas para a sistematização de tratamento desse tipo de acervo. Esses artifícios são: os registros, os projetos e as réplicas. Os registros (fotográficos, filmográficos ou sonoros) se aplicam às obras efêmeras, perecíveis ou que de alguma maneira se desenvolvem no tempo. Os projetos (ou roteiros) são utilizados pelos próprios artistas, que desenvolvem um planejamento da obra, descrevendo seu processo de montagem ou de acontecimento, tal como uma receita, permitindo sua remontagem por outras pessoas com outros materiais idênticos. Já as réplicas (ou substituições) se adequam às necessidades dos objetos relacionais, de obras que demandam a manipulação do público ou simplesmente objetos que sofreram ação do tempo e podem ser substituídos, no todo ou em partes, sem perda simbólica para a obra. Estes mecanismos são articuláveis entre si, sendo possível realizar réplicas a partir de projetos, fazer registros a partir de roteiros etc. [46]

Referencias Bibliográficas. BELTING, Hans. O fim da história da arte: uma revisão dez anos depois. São Paulo: Cosac Naify, 2006. BENJAMIN, Walter. A Obra de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica. In: Obras Escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1987. BENSE, Max. Pequena Estética. São Paulo, Perspectiva, 1971. BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009 a.. Pós-produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2009 b. CAUQUELIN, Anne. Frequentar os incorporais: contribuição a uma teoria da artecontemporânea. Tradução: Marcos Marcionilo. São Paulo: Martins, 2008. CHAGAS, Mario de Souza. Memória e Poder: dois movimentos. Cadernos de Sociomuseologia. Nº19 - ULHT, Lisboa, 2002. DANTO, Arthur. Após o fim da arte: A arte contemporânea e os limites da história. São Paulo: Odysseus, Edusp, 2006. FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília. (orgs.). Escritos de artistas - anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. FERREZ, Helena Dodd. Documentação museológica: teoria para uma boa prática. Caderno de Ensaios, Rio de Janeiro, nº 2, p.65-74, 1994. FREIRE, Cristina. Poéticas do processo: arte conceitual no museu. São Paulo, Iluminuras, 1999. Sistema Brasileiro de Museus Disponível em: http://www.museus.gov.br/ (acesso em 25 set 2010) [47]