AS CARTAS DE ALFORRIA E DE COMPRA E VENDA DE ESCRAVOS EM MORADA NOVA 1



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AS CARTAS DE ALFORRIA E DE COMPRA E VENDA DE ESCRAVOS EM MORADA NOVA 1 Maria Sângela de Sousa Santos Silva 2 Mãe Pátria (...) Ele procurava trabalho Mas de algum modo este sempre lhe escapava Da sua cama em Brixton Ele andava em círculos desde o raiar do sol, Se indagando onde oh onde nesta cidade Ele tocaria na mão de sua mãe pátria Pensando, em breve, Muito em breve agora ela deve me encontrar Deixaram-no varrer todos os assoalhos que poderia varrer para eles Não havia cana Na terra deles que ele pudesse cortar, E às vezes quando estava cansado Eles o olhavam e chamavam-no de preguiçoso Quatrocentos anos, Não foi tempo bastante para fazê-los compreender. 1. Alforria: sonho e luta pela conquista do direito de ser livre David Camppbell O livro de notas do Cartório Honorato registrou muitos negócios de compra e venda de uma mercadoria inusitada: o escravo. Um ser humano arrancado à força de sua terra, de sua família, e trazido para lugares distantes de tudo e de todos que conhecera no seu habitat, o continente africano. De nações, línguas, costumes e tradições diferentes, foram condenados a viverem sob trabalhos forçados, amordaçados, e separados de sua gente. Essa condição de cativo não o inibiu a resistir ao cativeiro, e resistiu, cotidianamente, até conseguir conquistar um direito primordial da existência humana: a liberdade. Segundo o historiador Geraldo da Silva Nobre 3, Morada Nova vivenciou momentos de vibração cívica, sendo notável a coincidência da realização, ali, de uma festa emancipacionista, no dia 13 de maio de 1883, 5 anos antes da assinatura da lei Áurea, sendo libertos 21 escravos. Os nomes de libertos foram enunciados pelo Jornal O Libertador: Josefa, de 15 anos, por Cap. Inácio Antonio Rodrigues Machado; João, 34 1 Pesquisa realizada em 2001 com os alunos do 3º. Ano da EEFM Egídia Cavalcante Chagas, e revisada para a apresentação no Seminário História, Cultura e Identidade indígena, negra e afro-brasileira em Morada Nova, realizado em setembro de 2011. 2 Doutoranda em História pela UNICAMP, Professora da rede estadual de ensino. 3 NOBRE, Geraldo da Silva. História de Morada Nova 1976-1976.

anos, por Joaquim Vitor Correia; Luisa, 47 anos, pelo mesmo; Maria, 34 anos, por Conrado Balbino da Silva Girão; Manuel, 50 anos, pelo Major Eduardo Henrique Girão; Antonio, 35 anos, pelo Tem. Henrique José Girão; Maria, 33 anos, pelo Cap. José Antonio Ferreira Nobre; Belmino, 35 anos, pelo Cap. Cicero Machado Girão; Sabina, 50 anos, por Fco. De Assis Mendonça; Cândido, pelo cap. Manuel Luis Rabelo Vieira, assim como Galdino, Marcelino, Bibiano, Clara, Felícia, Albino, e Maria; Teodoro, pelo cap. Matias Brito Pereira, que também libertou Manuel, Lázaro, Joaquina e Cosma. Maria, de 27 anos, por Joaquina de Paula Pessoa, como também Manuel de 18 anos, Félix de 22 anos, Firmino de 18 anos, Sabina de 12 anos; Agostinho de 22 anos por José Carneiro de Sousa, assim como Felismina de 20 anos; Bernardo, de 40 anos, por 26$000 de Antonia Francisca Bezerra. 4 Diante do enunciado, indagamos: porque os libertos não têm sobrenome? Porque os libertos são de diferentes idades? Porque resolveram libertar os escravos nessa data? Eles não tinham sobrenome porque não poderiam pertencer ou formar famílias. Somente após a abolição da escravatura em 1888 é que foram obrigados a se registrarem. Como não tinham sobrenomes colocaram nomes ligados à religião, como Santos, Jesus, Nascimento, Espírito Santo, dentre outros. Por este ano já haviam sido aprovada a Lei do Ventre livre, em 1871, que abolia a condição de escrava a partir do nascimento, para acabar gradativamente com a escravidão, criava o fundo de emancipação para comprar a liberdade, que ocorria anualmente, em cada vilarejo. Ainda dava permissão ao cativo para criar um pecúlio que lhe permitisse comprar a própria liberdade, bem como aceitar ajuda de terceiros para tal fim, como explica Sidney Chalhoub: as economias dos escravos eram práticas cotidianas. 5 Contudo, o fato da lei assegurar a compra da própria liberdade por parte do escravo, não lhe garantia a conquista de tal direito. Joseli Mendonça analisa as tensões na arena jurídica para determinar o preço da liberdade, primeira dificuldade colocada pelo Sr. Escravista, pois seu objetivo era protelar a conquista de tal direito. Logo, aumentar o preço do pecúlio era um artifício do senhor no momento da negociação, pois podia estabelecer um alto preço, inacessível ao 4 Jornal O Libertador, Fortaleza, 5 de julho de 1883. Acervo da Biblioteca Pública Estadual Gov. Menezes Pimentel. 5 CHALHOUB, Sidney. Visões de Liberdade: uma história das ultimas décadas da escravidão na corte. São Paulo, Companhia das Letras, 1990.

escravo. 6 A lei dava entrada para ambigüidades, e tal impasse chegava a ser resolvidos nas cortes, como ocorreu no Rio de Janeiro, bem relatado por Keila Grinberg, com recursos de apelação, por ambas as partes. 7 A nível local, possivelmente a Sociedade Criadora Espírito Santense criada em 1883 arrecadou fundos para libertos escravos, e como a arrecadação era pouco, porque o valor era dividido entre toda província, restando um valor diminuto para cada vila, consequentemente, acabava comprando de liberdade de poucos. Essa lei proibia a separação de mãe e filhos, possivelmente é uma explicação do fato de existir libertos de idades diferenciadas. Antes da citada lei, a alforria ocorria de acordo com interesse e boa vontade do escravocrata, e a partir dela passou a ter critérios legais que deveriam ser observados. Caso tivessem bom comportamento, poderia ser beneficiado com a alforria, contudo, continuava com o peso de servir ao seu senhor até a morte. Era uma situação constrangedora, como relata Funes, pois, se por um lado garantia ao escravo a condição de livre, por outro lado, dava ao senhor a garantia de não perder sua peça. 8 Quando nos deparamos com os documentos cartoriais, vislumbramos outros resquícios e cartas de alforria bem anteriores ao noticiado pelo Jornal O Libertador. É de 1872, e tem o seguinte teor: Aos 7 de fevereiro de 1873 me foi entregue por Angélica, preta escrava de Luiz José da Cunha Correa, um papel dizendo-me que era sua Carta de Liberdade e que eu escrivão lançasse em notas, a qual sendo por mim aceita a que passo a fazer um lançamento de teor seguinte: Digo eu abaixo assinado que entre as mais (ilegível)... que possuo... uma escrava... de nação Angola, de nome Angélica, idade de 50 anos, pouco mais ou menos, a qual houve por compra e porque sempre me tem servido a gosto e com toda a confiança concedo desde já sua Carta de Liberdade, para que goze de todos os... e regalias, que de um ato semelhante podem produzir, sem que por isso me tenha dadas as indenizações alguma, pois a faço gratuitamente, em alteração as horas serviçais que me tem prestado, em firmeza do que mandei fazer esta. Presente as testemunhas abaixo assinado... aos 15 de julho de 1872. Luis José da Cunha Correa. Como testemunhas Manuel Antonio Ferreira Nobre, Conrado Baldino da Silva Girão, Estava 6 MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. A arena jurídica e a luta pela liberdade. Apud Lilia Moritiz Schwarcz, Leticia Vidor de Sousa Reis (org.). Negras imagens: imagens sobre cultura e escravidão no Brasil. SP, Edusp. 77 GRINBERG, Keila. Liberata: a lei da ambigüidade: as ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX. RJ, Relume Dumará. 1994. 8 FUNES, Eurípedes. Os negros no Ceará. In SOUSA, Simone de. Uma nova história do Ceará. Fortaleza, Fundação Demócrito Rocha, 2000.

reconhecida as firmas e selada com compritentemente. Nada mais continha a dita carta de liberdade que eu, escrivão abaixo assinado, bem e fielmente... do próprio original AL qual me defronto,... neste povoação de Morada Nova, termo e comarca da cidade de São Bernardo de Russas, Província do Ceará, aos sete dias do mês de fevereiro de 1983. Em fé... Francisco Sabino Alves Barreto. 9 Esta carta de alforria provoca algumas reflexões: porque o Sr. Luiz José da Cunha Corrêa resolver libertar a escrava Angélica? Com a idade de aproximadamente 50 anos, (pois os escravos não tinham registros que comprovassem sua idade e naturalidade nem nomes completos), teria a escrava condições de adquirir emprego e viver dignamente? Em que condições de vida a ex-escrava sobrevivia? Teria o ex-proprietário indenizado de modo que lhe permitisse viver com condições mínimas? Possivelmente Angélica não recebera nenhum recurso para assegurar sua sobrevivência, e nem conseguira emprego. Talvez exercesse algum ofício, cozinheira, costureira, lavadora de roupas, engomadeiras, ou outras atividades, e assim com o próprio esforço conseguira manter-se viva. Essa condição de exercer alguma profissão também ajudou o escravo a arrecadar dinheiro, e assim poder comprar sua própria liberdade, pois havia senhores que permitiam seus escravos realizar trabalhos extras, fora de seu âmbito, para assim conseguir juntar algum recurso. Embora essa situação não fosse comum, pois muitos senhores não se agradavam da idéia do escravo ter seu próprio dinheiro, que pudesse lhe permitir a conquista da liberdade. A historiografia oficial cearense consagrou Redenção como a primeira cidade a libertar seus escravos. Algumas famílias do referido município se reuniram em 1883 e libertaram seus escravos em ato público. Contudo, um ano após o fato, em 1884, o Jornal O Libertador, de Fortaleza, publicou que ainda havia 115 escravos na cidade. Portanto, o fim da escravidão foi gradativo, como ocorreu em Morada Nova e em muitos lugares do Ceará. Por exemplo, em 1872 já havia registro de carta de alforria no Cartório local. Essas ações que parecem insignificantes tem que vir à tona, pois mostram os antepassados, nossas raízes, nossa identidade, e o legado dos negros africanos como povos resistentes, fortes, não se submetem passivamente à mazela do cativeiro, e a luta pela conquista da liberdade. Além do mais, como ressalta 9 Livro de notas do Cartório de 1º. Ofício, Manuel Honorato Cavalcante Neto, com registro inicial em 1863. Morada Nova-CE.

A estimativa do número de escravos era, em 1881, em Livramento, um dos nomes da antiga vila, tinha 267 escravos, mas só alforriava 60; e em 1884, tinha 367 escravos, e continuava libertando lentamente, pois o valor da quota era pouco, não dava para comprar mais liberdade. No ano anterior foi criada na cidade a Sociedade Libertadora Espírito Santense, tendo como Presidente o reverendo Antonio Ferreira Lima e Secretário Manoel Honorato Cavalcante. 10 Mas a liberdade não se restringe a um produto que pode ser comercializado, ela é um sentimento que se transforma em força e determinação de luta para conquistá-la. Daí a resistência individual e coletiva ao cativeiro e a luta cotidiana em conquistar, pelos próprios esforços, o sonho de ser livre. Ora fazendo economias e juntando recursos para a própria compra, ora fugindo e se refugiando nas matas ou em aglomerados quilombolas, como os existentes na então cidade de Russas. 11 Muitas outras cartas de alforria em Morada Nova foi relatada por Anny Chirley, que na maioria das cartas pesquisadas constatou a existência de alforrias com cláusulas de prestação de serviços, dando a entender o alto valor em adquirir tal direito, e as dificuldades dos escravos em juntar seu próprio dinheiro, restando apenas a submissão, como exemplo, em acompanhá-lo enquanto estivesse vivo. 12 Daí a condição de agregado da família, morador e criado, como lembra Eurípedes Funes. 13 Assim como toda estrutura declina, a condição de escravo decaiu e foi junto a condição de senhor, acabando com o poderio forçado e usurpador da condição humana. A escravidão e a escravatura caíram paulatinamente, com a luta e a resistência dos dominados, e emergiu um direito universal, a liberdade, embora sem cidadania, sem condições mínimas de sobrevivência digna na sociedade. 2. Escravo: mercadoria de compra e venda O tráfico de escravos era prática comum até 1850, quando foi proibido internacionalmente. Contudo, como não poderiam comprar escravos diretamente do continente africano, o tráfico interno entre as províncias tornou-se movimentado, 10 NOBRE, idem. 11 PINHEIRO, Francisco José (org.). Os debaixo resistem: as formas de resistência dos escravos no Ceará. Coleção Documentos Históricos. UFC, Departamento de História, 2002. 12 SOARES, Anny Chirley Silva. Liberdades condicionadas, preços negociados: as cartas de alforrias e as escrituras de compra e venda de escravos na Vila do Espírito Santo de Morada Nova (1975-1879). Monografia de conclusão do curso de História da UECE/FAFIDAM. Limoeiro do Norte, CE. 2008. 13 FUNES, Eurípedes. Os negros no Ceará. In SOUSA, Simone de. Uma nova história do Ceará. Fortaleza, Fundação Demócrito Rocha, 2000.

rendendo lucros consideráveis a quem vendia e a quem comprava. Esse contexto não está distante da história local, em Morada Nova, como existiam escravos, o tráfico e a compra e a venda também permeou as relações entre senhores, escravos e traficantes. O caso abaixo elucida alguns elementos desse contexto local: (...) Escritura de compra e venda de uma escravinha Rita, por morte de seu dono Joaquim Inácio Cavalcante, ficou para Capitão Antonio José Girão. No dia 30 de dezembro de 1893, na Povoação de Morada Nova de São Bernardo de Russas, Comarca de Aracati, Província do Ceará, tendo como vendedora Maria do Espírito Santo de São José e como comprador o Capitão Antonio José Girão Filho, todos do distrito de Morada Nova. Dona Maria era viúva de Joaquim Inácio Cavalcante, veio vender a escravinha de 12 anos, natural da freguesia das Russas, a qual declarou haver vendido em data de 15 de julho de 1863, para pagar as dívidas do casal, pelo preço de 600 mil réis. A vendedora não sabe escrever, por isso assina a rogo Manoel Inácio Cavalcante Júnior, que também é testemunha juntamente com José Antonio Cavalcante e Antonio José Girão Filho, natural da povoação, e Francisco Sabino Alves Barreto, escrivão interino (...). 14 Elucidar o comércio de escravos é emblemático. Essa escritura nos leva a pensar que possuir escravos significava ter status quo, em que as famílias adquiriam a mercadoria para usufruir prestígio na sociedade escravocrata. O documento dá indícios de que não precisavam de muitos recursos financeiros para comprar escravos, mesmo famílias mais humildes as possuíam, pois os donos da escrava Rita não dispunham de boa situação financeira, precisando vendê-la para pagar dívidas. Ainda observa-se o analfabetismo, é compreensível, pois a educação era privilégios de alguns homens com posses, sendo sinônimo de exclusão social. A pesquisa de Ivanira relata situações em que os escravos eram representados nos inventários como parte dos bens da família, e em caso de morte do proprietário, repassava como herança. 15 No livro de registros constam vários relatos de compra e venda, em alguns havia procuradores, sendo que neste caso o escrivão transcrevia a procuração na íntegra. O fato desses negócios serem pagos por ambas as partes, porque existiam as taxas e 14 Livro de notas do Cartório de 1º. Ofício, Manuel Honorato Cavalcante Neto, com registro inicial em 1863. Morada Nova-CE. 15 OLIVEIRA, Maria Ivanira de Castro. O escravo negro no baixo-jaguaribe. Dissertação de Mestrado. UNESP, Franca, 1996.

impostos peculiares à negociação, leva-nos a levantar a hipótese de que o número de escravos comercializados era bem maior do que o registrado, pois muitos preferiam confiar na palavra do outro, evitando assim despesas no Cartório. Outro indício esclarecido por Anny Chirley foi a existência de compra e venda de escravas menores de 15 anos separados da mãe, o que era proibida pela legislação de 1871. Porém, antes dessa data, em 1864, parecia ser comum tal negócio, como aconteceu com a escrava Isabel de 14 anos: (...) Escritura pública de compra e venda de uma escravinha de nome Isabel de Dona Fausta Juvita Saraiva, do distrito de Morada Nova... de 1864, aos 14 dias do mês de setembro, nesta Fazenda Saco, distrito de Morada Nova, termo da cidade de São Bernardo de Russas, comarca de Aracati... vendedora Dona Fausta Juvita Saraiva e como comprador João Agostinho de Sá Pereira, da Província do Pernambuco... De uma escravinha de nome Isabel de idade de 14 anos... pelo preço de 800 mil réis que confesso haver recebido da mão do comprador em moeda do Império... 16 Geralmente a idade dos escravos negociados era abaixo dos 20 anos, período que poderiam ser melhor aproveitados como força de trabalho, e valia um bom dinheiro. O valor do escravo aumentava se tivesse boas condições físicas, e se exercesse uma profissão. Da Província do Ceará para a Província do Pernambuco, que seria novamente contrabandeado para as províncias do sudeste, como São Paulo, como esclarece Robert Slenes e Conrad: o oeste paulista foi centro importador de grande número de escravos de outras províncias, sobretudo do Ceará que perdeu, entre 1873 e 1887, 37,6% de seus escravos, com idade variando entre 1 e 39 anos. 17 E assim continuou por décadas as práticas escravistas no país, pois São Paulo necessitava dessa mão-de-obra para desenvolver a cafeicultura e atender o mercado externo, e o Ceará o abasteceu com o tráfico interprovincial. As conseqüências para os escravos eram evidentes, a separação da mãe e dos membros da família, quando conseguiam formar, o rompimento brusco com o ambiente, as práticas religiosas e culturais, causava mal-estar e sofrimento. Adaptar-se em outro 16 Livro de notas do Cartório de 1º. Ofício, Manuel Honorato Cavalcante Neto, com registro inicial em 1863. Morada Nova - CE. 17 Robert Slenes e Conrad, Apud José Hilário Ferreira Sobrinho. O Ceará no tráfico interprovincial, 1850-1881. UFC, 2005, p.55. Apud Anny Chirley Silva Soares. Liberdades condicionadas, preços negociados: as cartas de alforrias e as escrituras de compra e venda de escravos na Vila do Espírito Santo de Morada Nova (1975-1879). Monografia de conclusão do curso de História da UECE/FAFIDAM. Limoeiro do Norte, CE. 2008.

lugar com outros costumes diferentes era mais um desafio para os escravos. Como lembra Anny Chirley: acostumados no Ceará com serviços nas pequenas fazendas de gado, bem como na agricultura, atividades econômicas desenvolvidas nesta província, o escravo cearense passaria a exercer outros tipos de atividades, cuja lógica de dominação era absolutamente diferente da que estava inserido, fosse no interior, fosse na capital da província, e Fortaleza. 18 A resistência dos escravos foi relatado por Ferreira, pois não ficaram passivos, não se curvaram à vontade dos senhores e negociantes, o que revela capacidade de ações de resistência. 19 A contestação do domínio senhorial por parte dos escravos colocou em risco a própria escravidão, que ocorreu paulatinamente no Estado do Ceará, como em Morada Nova. 18 SOARES, idem. 19 FERREIRA SOBRINHO, José Hilário. Catirina minha nega, teu sinhô ta te querendo vende, pero Rio de Janeiro, pro nunca mais ti vê, Amaru Manbirá: o Ceará no tráfico interprovincial 1850-1881. Dissertação de Mestrado em História Social UFC, Fortaleza, 2005.