V O L U M E I I N Ú M E R O V I Julho - Setembro 2003

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Transcrição:

V O L U M E I I N Ú M E R O V I Julho - Setembro 2003 A R T I G O I V O gênero do português e suas relações morfo-semânticas. Prof. M. A. Mauro José Rocha do Nascimento Prof. de Língua Portuguesa da UNIGRANRIO 1. INTRODUÇÃO Cada língua organiza o seu léxico segundo categorias próprias. Os verbos do português, por exemplo, distribuem-se em três conjugações distintas: a primeira, com terminação em -ar, a segunda, com terminação em -er, e a terceira, com terminação em -ir. Similarmente, os substantivos distribuem-se em dois gêneros: o masculino e o feminino. Segundo Câmara Jr., essa distribuição caracteriza-se pela "falta de lógica, no sentido científico do termo"[1]. Realmente, para o conjunto dos substantivos do português, como um todo, a distribuição dos gêneros não é passível de uma sistematização regular e coerente. O gênero, como categoria nominal, pode seguir diversos critérios de classificação, de acordo com a língua que o organiza. Câmara Jr. registra, como exemplo, a língua malaia, que distribui o seu léxico, segundo o gênero, na classe dos seres humanos, na dos bichos de cauda, na dos frutos (que inclui os navios, as ilhas e os lagos), na dos grãos com todos os objetos redondos, etc.[2] O fato de os navios, entre outras palavras, estarem incluídos na classe dos "frutos" mostra a precariedade que pode estar presente nos critérios de distribuição das palavras de uma língua em classes mórficas. Segundo Lyons, (...) o grau de correspondência entre a classificação dos substantivos num gênero gramatical e a classificação das pessoas e dos objetos por ele denotados de acordo com propriedades "naturais" relevantes varia consideravelmente de língua para língua.[3] Essa precariedade apresenta-se também no gênero das línguas do tronco indo-europeu. O latim e o grego clássicos, por exemplo, distribuíam seus nomes em três gêneros distintos: o masculino, o feminino e o neutro. O critério que norteia essa classificação tem claramente a sua referencialidade centrada no sexo dos seres; os gêneros masculino e feminino deveriam referir-se a indivíduos desses mesmos sexos, respectivamente, e o gênero neutro aos seres inanimados. Entretanto, já nessas línguas a sistematização mostrava-se incoerente, já que inúmeras palavras relativas a seres inanimados pertenciam a um dos dois gêneros relativos a seres animados. Já nas línguas românicas, com a extinção do neutro e remanescência apenas do masculino e do feminino, foi forçada uma acomodação de todas as palavras originariamente neutras a um daqueles gêneros. Isso fez com que a associação entre gênero e sexo ficasse ainda mais frágil, já que há um número enorme de palavras que se referem a seres inanimados, e, portanto, destituídos de sexo. 2. POSSIBILIDADES DE sistematização DO GÊNERO Não é possível sistematizar coerentemente a categoria de gênero de forma a abranger todos os substantivos da língua. Alguns recortes feitos a partir de traços semânticos, entretanto, possibilitam uma sistematização que, mesmo não sendo completamente regular, dá conta de um grande número de casos. Podemos dividir os substantivos da língua, primeiramente, em dois grandes grupos; o grupo dos que portam o traço [-animado] e o grupo dos que portam o traço [+animado]. Para o primeiro grupo, não é possível estabelecer nenhum critério semântico na distribuição dos gêneros. Não há nenhum dado extralingüístico que explique a atribuição do gênero masculino a chão, por exemplo, ou feminino a imensidão. Nessa classe de substantivos, o gênero é um dado puramente arbitrário, existe "por força da

tradição e obra da convenção"[4]. Alguns autores, dentre os quais Câmara Jr., que foi o primeiro a propor uma sistematização dos gêneros do português, defendem a idéia de que mesmo entre os seres inanimados é possível haver uma regularidade semântica entre os dois gêneros. Isso no caso dos substantivos do tipo barco/barca, poço/poça, jarro/jarra. Segundo Câmara Jr., (...) em referência ao gênero, do ponto de vista semântico, (...) o masculino é uma forma geral, nãomarcada, e o feminino indica umas especialização qualquer (jarra é uma espécie de "jarro", barca um tipo especial de "barco", como ursa é a fêmea do animal chamado urso, e menina uma mulher em crescimento na idade dos seres humanos denominados como a de "menino").[5] Na verdade, como salientou Pereira[6], a relação geral/específico entre os pares desse tipo não é de forma alguma regular. Verificando no dicionário o significado desses pares, constata-se que, na maioria das vezes, essa relação semântica não se dá. Não podemos estabelecer uma regra que não apresenta nenhuma previsibilidade, como é o caso desses pares. Conhecendo-se o significado dos termos barco (geral) e barca (específico), não se consegue intuir de forma alguma qual seria o significado de poça, partindo de poço, ou de mata, partindo de mato, já que esses dois últimos pares citados não seguem a regra geral/específico. Concluímos, portanto, que o gênero dos substantivos portadores do traço [-animado], incluindo o dos pares como os comentados acima, não pode ser relacionado com nenhum fator semântico, mas tãosomente com a arbitrariedade do signo. Para o segundo grupo, o dos substantivos portadores do traço [+animado], a situação é diferente. A flexão em gênero, que somente ocorre nos substantivos desse grupo, é semanticamente motivada pelo fator extralingüístico do sexo. Ou seja, no caso dos substantivos referentes a seres animados (e tãosomente nesse caso) as categorias gramaticais de gênero, que são puramente lingüísticas, se relacionam com a característica biológica, e portanto extralingüística, da diferença dos sexos. Como dissemos antes, porém, essa regularidade é relativa. Há inúmeros casos de substantivos referentes a seres animados que não são flexionáveis em gênero, como, por exemplo, mariposa ou tubarão. Essas palavras, quer se refiram a indivíduos do sexo masculino, quer se refiram a indivíduos do sexo feminino, vão apresentar sempre a mesma forma e o mesmo gênero. Há também, dentro do grupo dos substantivos portadores do traço [+animado], um subgrupo de palavras não-flexionáveis, mas das quais se pode dizer que possuem gênero motivado pelo sexo do referente. São, por exemplo, égua e mulher, que se referem sempre a indivíduos do sexo feminino, ao lado de cavalo e homem, que têm como referentes indivíduos daquelas mesmas espécies, só que do sexo masculino. Os pares do tipo homem/mulher, cavalo/égua, são costumeiramente designados pares heteronímicos. Outro subgrupo seria dos substantivos femininos formados por derivação a partir do masculino, como galo/galinha, conde/condessa, sacerdote/sacerdotisa. Em uma nova divisão, podemos ainda separar os substantivos referentes a seres animados em dois subgrupos, o dos portadores do traço [-humano] e o dos portadores do traço [+humano]. Dentre os seres animados humanos, a regularidade na identificação entre gênero e sexo é ainda maior, podendose inclusive dizer que a não-ocorrência dessa relação constitui um caso de exceção. Os substantivos que possuem gênero apenas gramatical, sem referência no fator extralingüístico do sexo dos indivíduos, são classificados, no caso dos animados não-humanos, como epicenos, e no caso dos animados humanos, sobrecomuns. Os primeiros são bastante recorrentes na língua; já os segundos são muito raros, podendo inclusive ser listados com facilidade. 3. A PROPOSTA DE CÂMARA JR. Em relação à flexão, muitos autores ainda hoje consideram que, em português, as marcas morfológicas

relativas ao gênero dos seres animados são -a para o feminino e -o para masculino, constituindo exceções todos os casos em que isso não ocorra. Câmara Jr.[7] demonstrou que essa interpretação do sistema flexional não é descritivamente econômica, pois segrega um grande número de pares, tais como cantor/cantora, mestre/mestra. A solução proposta é que somente a forma -a seja considerada desinência de gênero; a forma masculina seria considerada uma forma não marcada morfologicamente. Essa proposta englobaria um grande número de formas de masculino, antes relegadas às listas de exceções, tais como português, professor, peru, parente. Essas formas seriam não-marcadas morfologicamente, a exemplo do singular do português. Assim, a presença da desinência -a indicaria gênero feminino; a ausência dessa desinência indicaria gênero masculino. Até mesmo gramáticos, como Lima, adotam essa descrição[8]. Por outro lado, há quem discorde da descrição de Câmara Jr., como por exemplo o lingüista Kehdi. Esse autor argumenta que (...) quando se acrescenta a uma palavra feminina uma terminação que contenha -o, essa palavra passa a masculina: mulher (fem.) / mulheraço (masc.) cabeça (fem.) / cabeçalho (masc.) Lembremos, ainda, que o povo, em sua linguagem espontânea, cria formas masculinas sempre em -o; p. ex., faz-se corresponder ao feminino coisa o masculino coiso, inexistente na língua culta. São também dignas de nota formas como corujo, crianço, madrasto.[9] Baseando-se nesses fatos, o autor considera que a flexão de gênero não se reduz a uma oposição -Æ / -a, e sim a uma oposição -o / -a. Não é que uma descrição esteja errada e outra esteja certa. Ambas têm sua coerência e pertinência; a questão é: qual das duas seria mais econômica, teria um número de exceções e contra-exemplos menor? Certamente a feita por Câmara Jr., com a qual concordamos em quase todos os pontos. O fato de a linguagem popular criar, esporadicamente, masculinos em -o (masculinos esses raramente consignados pela norma de quaisquer grupos lingüísticos) não desabona a pertinência da descrição feita por Câmara Jr. Quanto ao argumento de que terminações -o fazem com que palavras femininas se tornem masculinas, é fácil encontrar uma série de outros exemplos em que isso não se dá: imenso/imensidão (fem.), especializar/especialização (fem.), e inúmeros outros. Na verdade, o que acontece é que, de modo geral, os sufixos formadores de substantivos do português, da mesma forma que os próprios substantivos, têm gêneros intrínsecos. Há os sufixos que só formam palavras femininas, os que só formam masculinas, os que formam palavras comuns-de-dois-gêneros e os que formam palavras flexionáveis. No primeiro caso, temos os sufixos -agem (embalagem, hospedagem, folhagem, engrenagem); -ção (congregação, coroação, formação, imaginação); -dão (imensidão, gratidão, mansidão, vermelhidão); -dade (crueldade, barbaridade, ansiedade, masculinidade); -ura (formosura, abertura, bravura, brancura); -ia (alegria, advocacia, filosofia, promotoria); -ez (viuvez, estupidez, altivez, sensatez); -ite (pleurite, faringite, otite, sinusite) etc. No caso dos sufixos que formam somente palavras masculinas, temos -ão (mulherão, paredão, facão, mesão); -al (laranjal, pinheiral, lamaçal, coqueiral); -ema (fonema, morfema, lexema, semantema); -ismo (catolicismo, socialismo, espiritismo, heroísmo); -mento (salvamento, esquecimento, aquecimento, ensinamento) etc. Os que formam substantivos comuns-de-dois-gêneros são -ista (motorista, dentista, cientista, artista) e -

nte (pedinte, ouvinte, falante, estudante); por fim, os sufixos que formam substantivos flexionáveis são - eiro (brasileiro, brasileira, mineiro, mineira, costureiro, costureira, engenheiro, engenheira); -ndo (formando, formanda, doutorando, doutoranda, bacharelando, bacharelanda, vestibulando, vestibulanda); -or/-tor/-dor (cantor, cantora, inspetor, inspetora, pescador, pescadora, tradutor, tradutora). Os sufixos diminutivos seguem, via de regra, o gênero da palavra primitiva. Já os sufixos formadores de adjetivos comportam-se como os próprios adjetivos: há os biformes (-oso: orgulhoso, orgulhosa; -ês: francês, francesa; -eiro: verdadeiro, verdadeira, -aico: judaico, judaica etc.) e os uniformes (-vel: desejável; -ense: cearense; -estre: campestre). 4. RELAÇÕES SEMÂNTICAS A proposta feita pelo Prof. Câmara Jr. é, a nosso ver, a mais acertada, porque, além de dar conta da descrição morfológica do fenômeno, também se presta a uma descrição semântica. De fato, pode-se verificar que as formas de masculino são não-marcadas não só morfologicamente, mas também semanticamente, como vemos nas frases a seguir: O coelho é capaz de se reproduzir várias vezes por ano. Os médicos do Rio de Janeiro estão em greve. Nessas frases, os substantivos coelho e médicos estão no masculino, mas seus referentes não são indivíduos exclusivamente do sexo masculino. Em casos como esse, em que se refere a um conjunto englobando vários indivíduos de ambos os sexos, o gênero masculino vai se comportar como um "arquigênero", segundo Azeredo[10]. Ou seja, quando não há oposição masculino/feminino, é do masculino que os falantes vão lançar mão para se exprimir. O texto a seguir, do jornalista Eduardo Martins (O Estado de São Paulo, 01.10.92), ilustra o caráter nãomarcado do gênero masculino, semântica e morfologicamente: Se nem essa questão é das mais simples, como proceder em relação aos candidatos a ou candidatas a? Em primeiro lugar, fique claro: há candidatos a vereador e candidatos a prefeito, e não candidatos a vereadores e a prefeitos. Eles disputam a função. É como se se dissesse: candidatos ao cargo de vereador, ao cargo de prefeito. Com as mulheres, a questão assume aspecto polêmico. Por um indício de machismo no idioma, no Rio, por exemplo, Cidinha Campos é candidata a prefeito. Por quê? Pela simples razão de que o cargo pode ser ocupado indistintamente por homens e mulheres. Da mesma forma, em São Paulo há muitas candidatas a vereador (e não a vereadora). No caso, a indicação do cargo ficaria no feminino apenas se a função se destinasse especificamente a mulheres. Em relação a funções, como a de vereador e de prefeito, usa-se a forma não-marcada do substantivo, ou seja, o masculino. Não cabe aqui discutir as causas que, historicamente, fizeram com que a forma do masculino assumisse a função de "arquigênero"; se isso se deu devido a uma estrutura machista de nossa sociedade ou não. O fato é que, no momento atual da língua, o único gênero que pode ser semanticamente não-marcado é o masculino. Em casos como este, em que nos referimos a uma função, o substantivo que a designar só será marcado semanticamente se essa função for ocupada exclusivamente por indivíduos de um mesmo sexo. Assim, por exemplo, se for aberto um concurso para lixeiros, o substantivo lixeiros, gênero masculino, é semanticamente marcado em relação ao sexo, já que somente homens, até o momento, ocupam essa função dentro da nossa sociedade. Outro exemplo de substantivo relativo a função e que é marcado semanticamente é quando, por exemplo, contratamos uma empregada doméstica. O próprio fato de o substantivo estar flexionado já restringe o referente em relação ao sexo. De fato, esse termo dificilmente poderia ser empregado referindo-se a um indivíduo do sexo masculino; para essa situação

normalmente utilizaríamos o termo caseiro, que é o homem (profissional) que executa tarefas domésticas. Dessa forma, a ex-deputada Cidinha Campos era candidata a prefeito (termo não-marcado semanticamente). Se tivesse sido eleita seria Cidinha Campos, a prefeita; como o vencedor foi César Maia, ele sim foi o prefeito. Nesses dois últimos casos, os termos foram marcados semanticamente, já que os referentes eram, respectivamente, um indivíduo do sexo feminino e um do sexo masculino. 5. RELAÇÕES MORFO-SEMÂNTICAS NOS PARES HETERONÍMICOS Até o momento, referimo-nos apenas aos substantivos flexionáveis como passíveis dessa distinção de uso para as formas do masculino. Entretanto, há outros substantivos não-flexionáveis que também obedecem a essas mesmas regras: são os pares heteronímicos. De modo geral, o comportamento funcional das formas masculinas desses pares é o mesmo das formas masculinas flexionáveis. Nas frases: O homem é um animal racional. João é criador de cavalos. os substantivos homem e cavalos não têm como referente somente os indivíduos do sexo masculino, mas sim os de ambos os sexos. São semanticamente não-marcadas em relação a essa característica, da mesma forma que prefeito e vereador na citação. Essa semelhança entre o comportamento das formas flexionáveis e dos pares heteronímicos faz com que alguns autores considerem ambos os casos como se fossem uma coisa só. Cunha e Cintra, por exemplo, dizem que "os substantivos que designam pessoas e animais costumam flexionar-se em gênero, isto é, têm geralmente uma forma para indicar os seres do sexo masculino e outras para indicar os seres do sexo feminino"[11]. Os exemplos fornecidos são, entre outros, homem/mulher, aluno/aluna, cantor/cantora, bode/cabra. Esse fato demonstra a grande confusão que fazem alguns autores em relação à separação dos critérios pelos quais um fenômeno é analisado. A flexão é um mecanismo morfológico, que não deve ser confundido com a sua contraparte semântica. Do ponto de vista estritamente morfológico, bode e cabra não têm nenhuma relação entre si. Cabra não é de maneira alguma a forma flexionada de bode; ambas são radicais autônomos. Do ponto de vista estritamente semântico, porém, se não utilizarmos a palavra flexão, podemos dizer, sem risco, que mulher é feminino de homem da mesma forma que gata é feminino de gato. A utilização como termo semanticamente não-marcado da forma masculina dos pares heteronímicos é exatamente igual à dos não-marcados semântica e morfologicamente. No caso dos substantivos referentes a seres animados não humanos, há algumas exceções em relação à forma não-marcada. Os termos raposo e zangão, por exemplo, são invariavelmente marcados semanticamente, ao contrário de seus pares raposa e abelha, que designam toda a espécie. Como regra geral, entretanto, abrangendo a grande maioria das ocorrências, temos as formas masculinas dos substantivos referentes a seres animados podendo comportar-se tanto como termos não-marcadas semanticamente em relação à distinção de sexos, quanto como termos marcados em relação a essa distinção. Já as formas femininas desses substantivos só podem ser utilizadas para marcar que o referente é constituído por um ou mais indivíduos do sexo feminino. CONCLUSÃO

A gramática de uma língua é dividida em partes não-autônomas que se articulam e se influenciam mutuamente. Fonologia, morfologia, sintaxe e semântica não são compartimentos estanques dentro dos estudos gramaticais. Entretanto, apesar de interagirem todo o tempo, essas disciplinas têm como matéria-prima substâncias distintas. Baseado nisso, alertamos para a grande mistura de critérios que muitos autores fazem em relação a muitos assuntos. O gênero flexional é uma categoria morfológica, naturalmente com as suas contrapartes semântica, sintática e fonológica; deve-se, entretanto, saber distinguir quando se está falando de uma coisa ou de outra. A mistura de critérios pode ser prejudicial para uma descrição lingüística exata. Referência Bibliográfica 1. AZEREDO, José Carlos de. A flexão nominal portuguesa: exame crítico da contribuição tradicional e da estruturalista. Dissertação de Mestrado. Mimeo. Rio de Janeiro, UFRJ, 1978. 2. CÂMARA Jr, Joaquim Mattoso. Princípios de Lingüística Geral. Rio de Janeiro, Livraria Acadêmica, 1972. 4 ed. 3.. "Considerações sobre o gênero em português". In: - - -. Dispersos. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1975. 2 ed. 4.. Dicionário de lingüística e gramática. Petrópolis, Vozes, 1986. 13 ed. 5.. Estrutura da língua portuguesa. Petrópolis, Vozes, 1989. 19 ed. 6. CUNHA, Celso Ferreira da, CINTRA, Luís Filipe Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985. 2 ed. 7. KEHDI, Walter. Morfemas do português. São Paulo, Ática, 1990. 8. LYONS, John. Introdução à lingüística teórica. Tradução de Rosa Virgínia Mattos e Silva e Hélio Pimentel. São Paulo, Companhia Editora Nacional/EDUSP, 1979. 9. PEREIRA, Maria Ângela Botelho. Gênero e número em português. Rio de Janeiro, Ed. da UFRJ, 1987. [1]. CÂMARA Jr, 1978, p. 45. [2]. Cf. CÂMARA Jr, 1972, p. 132. [3]. LYONS, 1979, p. 299. [4]. AZEREDO, 1978, p.45. [5]. CÂMARA Jr, 1989, p.88-89.

[6]. Cf. PEREIRA, 1987, p. 46 e ss. [7]. Cf. CÂMARA Jr, 1975 e 1989. [8] Cf. LIMA, 1994, p. 74. [9] KEHDI, 1990, p. 30. [10]. Cf. AZEREDO, 1978, p.46. [11]. CUNHA e CINTRA, 1985, p. 184.