José Theodoro Mascarenhas Menck



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José Theodoro Mascarenhas Menck Doutor em História das Relações Internacionais pela UnB; Mestre em História Social, pela UnB; pós-graduação em Direito Romano pela Primeira universidade de Roma La Sapienza. Consultor legislativo da Câmara dos Deputados, Área I Direito Constitucional, Eleitoral, Municipal, Administrativo, Processo legislativo e Poder Judiciário. A Crise Política de 1868 e a Gênese do Manifesto Republicano de 1870 32

Resumo Palavras-Chave Abstract Keywords O artigo discute a crise política do 2 o reinado que, em 1868, resultou na queda do gabinete liberal comandado por Zacarias de Gois e Vasconcelos, como fato fundamental da história brasileira, na medida em que ensejou, nas palavras de Sérgio Buarque de Hollanda, o crescimento da onda que iria derrubar a monarquia, abrindo espaço para a articulação do grupo político republicano. Elucida, ainda, a autoria do Manifesto Republicano de 1870 e a proveniência de alguns de seus mais importantes signatários. Crise política; gabinete liberal; conservadores; perda de credibilidade do regime; declínio da monarquia; propaganda republicana; Manifesto Republicano. The article discusses the political crisis that, in 1868, resulted in the collapse of the liberal cabinet led by Zacarias de Goes e Vasconcelos. The episode made possible the articulation of the Republican political group, contributing to the wave that, in the words of Sergio Buarque de Hollanda, would overthrow the monarchy two decades later. The text also elucidates the authorship of the Republican Manifesto of 1870, and briefly comments on the background of some of its most important signatories. Political crisis; liberal cabinet; conservative cabinet; loss of credibility of the regime; decline of the monarchy; republican propaganda; Republican Manifesto. 33

Introdução O ano de 1868, com a queda do gabinete liberal de 3 de agosto1, comandado por Zacarias de Gois e Vasconcelos, e com a conseqüente ascensão dos conservadores, deveria ser lembrado como uma data fundamental nos fastos da história política brasileira. Naquele ano, forçado pelas circunstâncias, D. Pedro II sacrificou definitivamente a credibilidade do regime político que, árdua e tenazmente, havia sido construído ao longo de todo o seu reinado por duas gerações de estadistas brilhantes. Regime político que havia garantido, em meio ao caos latino-americano, não apenas a estabilidade do país, mas a própria alternância do poder. Como já foi dito por Sérgio Buarque de Holanda, naquele momento, com aquela substituição do gabinete de 3 de agosto pelo de 16 de julho, começa a crescer a onda que vai derrubar a instituição monárquica. Ela viveria ainda alguns anos, às vezes até com o antigo brilho. Os homens mais lúcidos, no entanto, sabiam que o Império estava condenado. Em 1869 começa o seu declínio até chegar o queda em 1889. Ela já revelara seu potencial, o que tinha de positivo e negativo. Agora ia viver quase vegetativamente, pois eram sabidos os seus limites. A data de 1868 encerra o período do esplendor e abre o das crises que levarão à sua ruína.2 Embora pudessem então existir dúvidas sobre o seu real significado, ninguém, a começar pelo próprio Imperador, se iludia quanto aos riscos assumidos com a súbita mudança de política. O presidente do conselho que subia ao poder, o Visconde de Itaboraí, quando chamado a organizar o novo ministério, tinha ciência das dificuldades de que teria pela frente, tanto que, no programa com que se apresentou à câmara, chega mesmo a incluir a expressão: tarefa perigosa para definir sua missão. Mas, por que a substituição de um gabinete por outro, algo já então corriqueiro na vida política brasileira de então, se mostrou tão temerário? Quais foram as circunstâncias que levaram D Pedro a um ato que se revelou tão ominoso A primeira espada do Império e o terceiro gabinete Zacarias EEm 1868 estava em marcha a Guerra do Paraguai, o Marquês de Caxias se encontrava no comando do exército e, após debelar as invasões paraguaias no 1 No Império os gabinetes ministeriais eram conhecidos pela data em que eram nomeados. 2 História Geral da Civilização Brasileira, t. 2. O Brasil Monárquico, 3 o vol., Reações e Transações, pág. 107 e segs. 34 Cadernos ASLEGIS 37 maio/agosto 2009

sul do Brasil, o Comandante-em-chefe estava organizando e adestrando o exército brasileiro. Em verdade, Caxias estava dando forma e construindo o exército brasileiro. Nesta época, diversos jornais do Rio de Janeiro, inconformados com a aparente inatividade das tropas, passaram a criticar o comando de Caxias. Incomodado pelo que chamou de guerra de alfinetes, e atribuindo tal campanha de descrédito que dizia sofrer ao gabinete liberal do Conselheiro Zacarias, Caxias escreveu diretamente ao Imperador, impondo-lhe uma opção: ou se demitiria ele, alegando doença, para não parecer que pressionava o governo, ou se demitia o gabinete presidido por Zacarias. O Imperador ouviu o Conselho de Estado que, por maioria, opinou no sentido de se manter o princípio da hierarquia constitucional, por mais necessários, relevantes e indispensáveis que fossem os serviços do marquês. A autoridade civil do Presidente do Conselho de Ministros não podia ser coagida pelo poder da espada, nem mesmo pelo da primeira espada do Império. D. Pedro, entretanto, diante das difíceis circunstâncias criadas pela guerra, e da própria desorganização do exército, julgou altamente inconveniente a troca de comando das tropas. Julgou mesmo imprescindível a permanência do comandante-em-chefe, em cujo trabalho tinha plena confiança. O conselheiro Zacarias superava o marquês em ilustração e inteligência; no entanto, Caxias superava largamente o político bahiano em serviços prestados ao país e ao regime. Ademais, certas afinidades de temperamento parecem ter sido fatores que criaram, entre o general e o monarca, uma mútua confiança, que parece ter sido uma marca da relação dos dois. Se ao general faltava a curiosidade erudita e dispersiva que foi a característica principal do Imperador, teve, de sobra, a mesma prudência, a mesma paciência, a mesma moderação, e, até mesmo, poderíamos dizer, a mesma morosidade nas reações. O certo é que, o general e o Imperador, mutuamente se admiravam. A troca de gabinetes e a iracunda reação da Câmara dos Deputados Todos os pormenores da crise de 1869, inclusive a intransigente defesa da autoridade civil por parte do Conselho de Estado, encontram-se relatados nas atas do Conselho Pleno daquele conselho, publicada pelo Senado, em 19783. Diante da intransigência do general, senador conservador, Zacarias, o presidente do conselho liberal, não só optou por ceder, em face da necessidade da manutenção dos 3 Atas do Conselho de Estado; Brasília, Senado Federal, 1978, vol. VIII. Direção geral, organização e introdução de José Honório Rodrigues, prefácio de Pedro Calmon. Vide especialmente, atas de 2 a 30 de julho de 1868. Artigos & Ensaios 35

serviços de Caxias para o país, que enfrentava uma duríssima conjuntura de fazer a guerra depois de grave crise financeira, como se dispôs a dar à sua renúncia a aparência de uma dissensão do Gabinete com o Monarca, exatamente para caracterizar a obediência às praxes do regime. Esse pretexto veio com a escolha, pelo Imperador, de Sales Torres-Homem, o Visconde de Inhomirim, então um conservador convertido, para o Senado. Zacarias alegou não só a incompatibilidade política com o escolhido, mas também a mentira eleitoral. Ambas as razões, como pretextos, eram falsas, sem dúvida, mas salvavam o princípio do sistema parlamentar perante a face da Nação. Conhecendo a verdade, a Câmara, de maioria liberal, reagiu com inusitada violência. Primeiro, aprovou a moção redigida por José Bonifácio, o Moço, que é uma terrível arremetida contra a não observância dos usos parlamentares, chegando a comparar o Gabinete que substituiu o de Zacarias, a um bandido que, na calada da noite, penetra numa casa para saqueá-la. E, em seguida, passou a negar, a despeito das vicissitudes da guerra em que o país estava empenhado, até mesmo os créditos pedidos pelo Ministério para a continuação da luta, o que terminou provocando a sua dissolução. Os termos de moção dizem bem da indignação causada pela farsa montada para resguardar a aparência de normalidade da retirada do Gabinete, sem que fosse suscitada qualquer questão parlamentar: A Câmara vê com profunda mágoa e geral surpresa, o estranho aparecimento desse Ministério gerado fora de seu seio e simbolizando uma política nova, sem que uma questão parlamentar houvesse gerado a perda de seu predecessor. Deplorando esta circunstância singular, e ligada por sincera amizade ao sistema parlamentar à monarquia constitucional, a Câmara não tinha nem pode ter confiança em tal Gabinete. Em outro trecho a mesma moção declara: Hoje, do dia para a noite, um ministério cai no meio de numerosa maioria parlamentar e inopinadamente surgem ministrar como hóspedes inoportunos que batem fora de horas e pedem agasalho em casa desconhecida. A desmoralização do regime O ministério do Visconde de Itaborai se apresentou à Câmara no dia 16 de julho; no dia seguinte, 17 de julho, a Câmara aprova, por larguíssima diferença 36 Cadernos ASLEGIS 37 maio/agosto 2009

85 votos contra 10 a moção de desconfiança ao gabinete. Constitucionalmente segue-se, a 18 de julho, sessão do Conselho de Estado, especialmente convocado. Quando no dia 19, um domingo, sai o decreto de dissolução da Câmara, a notícia já não surpreende a ninguém. A manhã imediata oferece à corte o aspecto de uma praça de guerra, com grande concentração de tropa armada nas vizinhanças do Poço da cidade, contíguo à cadeia velha, sede da Câmara dos Deputados. A gravidade dos sucessos que acabavam de sacudir o país, tomando aparências de golpe de Estado, fazia-os matéria de todas as conversações e era motivo de críticas mordazes à monarquia e ao monarca. Um político liberal, já em vésperas de tornar-se republicano, Joaquim Saldanha Marinho, falou a propósito em estelionato político. Até mesmo alguns observadores estrangeiros, os mais familiarizados com o cenário do país, fizeram críticas acerbas ao rumo tomado pela nova situação política. Sérgio Buarque de Holanda 4 nos lembra que o irlandês William Scully que nas palavra do célebre historiador, tinha seu talher no orçamento do ministério decaído, e a quem coube papel nada irrelevante no desencadear da crise, quando publicamente desconceituou em seu jornal, o Anglo-Brazilian Times, a primeira espada do Império, fez coro com os órgãos mais iracundos da imprensa liberal, que viram na mudança política um mau agouro para o regime. Por sua vez, o plenipotenciário norte-americano James Watson Webb, que não hesitara pouco antes em polemizar com homens públicos brasileiros na mesma folha, apressava-se, num despacho para o Secretário de Estado em Washington, em dar como inevitável a próxima queda da monarquia brasileira. Chegava mesmo a insinuar mais tarde irá sustentá-la resolutamente a teoria de que ele, Webb, fora personagem fundamental no desfecho da situação, devido a sua atitude varonil no caso da canhoneira Wasp que, devendo ir tirar de Assunção o encarregado de negócios dos Estados Unidos, teve grande dificuldade para atravessar as linhas aliadas. Segundo essa curiosa explicação, resgatada do olvido por Sérgio Buarque de Holanda, 5 o Conselheiro Zacarias de Gois e Vasconcelos se tinha empenhado vivamente em evitar uma ruptura com Washington, mas esbarrara na oposição pessoal de D. Pedro II, que obstinadamente se decidira a sustentar Caxias, sem querer medir as conseqüências possíveis da teimosia. Uma coisa, porém, era certa, conforme o belicoso diplomata, e geral: um terceiro ocupante jamais se 4 História Geral da Civilização Brasileira, t. 2. O Brasil Monárquico, 5 o vol., Do Império à República, pág. 8. 5 História Geral da Civilização Brasileira, t. 2. O Brasil Monárquico, 5º vol., Do Império à República, pág. 8. Artigos & Ensaios 37

sentaria no trono de D. Pedro II. Animo-me a uma profecia, ajunta, não darei 10 anos para que o Brasil se torne república 6 Exagerava o general (e exagerará ainda mais logo depois, quando admite que não se surpreenderia se a reviravolta acontecesse nos próximos 10 meses), mas só exagerava pela metade: estaria mais certo se alongasse para 20 anos o prazo fatal. Foi nesta época que tomou alenta o que Oliveira Lima disse ter sido a campanha demolidora do Império, quando passou a ser moda os políticos, de ambos os grêmios políticos, quando apeados do poder, investirem, com toda a eloqüência e furor de suas verves, contra o lápis fatal, contra o poder pessoal onipotente do Imperador. Octaciano Nogueira, ao comentar o Os Ataques ao Poder Pessoal 7 relembra-nos que o célebre discurso do senador liberal José Thomaz Nabuco de Araújo, denunciando a fraude do sistema eleitoral, foi pronunciado no Senado justamente no dia 17 de julho de 1868, comentando a ascensão do gabinete conservador do dia anterior. Discurso que entrou na história política nacional sob a denominação dos sorites, in verbis: Senhor Presidente, sou chamado à Tribuna por um motivo que, em minha consciência (talvez esteja errado), é muito imperioso. Este motivo, Senhores, é que tenho apreensões de um governo absoluto; não de um governo absoluto de direito, porque não é possível neste país que está na América, mas de um governo absoluto de fato.(...) Segundo uma expressão que em outros anos eu repetira, quando ascendeu ao poder o Ministério de 24 de maio, eu direi: Não é aqui que se fazem ou desfazem os Ministérios! (...) Senhores, havia no Parlamento uma maioria liberal, constituída pela vontade nacional; uma maioria tão legítima, tão legal, como têm sido todas as maiorias que temos tido no país... (...) Essa maioria tendia, por conseqüência, a crescer; o Ministério que a representava, decaiu, não por uma vicissitude do sistema representativo, não porque uma minoria se tornasse maioria, mas por diferenças que houve nas relações da Coroa com os seus Ministros. 6 General James W. Webb to the Honorable William H. Seward, Rio de Janeiro, July 22th 1868, MS. The National Archives, Washington, D. C.: Despatches from United States Ministers to Brazil. Micr. 121, Roll 35. 7 A Constituição de 1824, Constituições do Brasil, Brasília, Universidade de Brasília, 1987, vol. I, pág. 26. 38 Cadernos ASLEGIS 37 maio/agosto 2009

Dizei-me: o que é que aconselhava o sistema representativo? O que é que aconselhava o respeito à vontade nacional? Sem dúvida que outro Ministério fosse tirado dessa maioria. Mas fez-se isto? Não, Senhores, e devo dizer, foi uma fatalidade para as nossas instituições; Chamou-se um Ministério de uma política contrária, adversa à política dominante, à política estabelecida pela vontade nacional: foi chamada ao Ministério uma política vencida nas urnas, que tinham produzido a maioria que se acha vigente e poderosa no Parlamento. Isto, Senhores, é sistema representativo? Não. Segundo os preceitos mais comezinhos do regime constitucional, os Ministérios sobem por uma maioria, como hão de descer por outra maioria; o poder Moderador não tem o direito de despachar Ministros como despacha empregados, delegados e subdelegados de polícia; há de cingir-se, para organizar Ministérios, de princípio dominante do sistema representativo, que é o princípio da maioria. Pois sem dúvida, Senhores, vós não podeis levar a tanto a atribuição que a Constituição confere à Coroa de nomear livremente os seus ministros; não podeis ir até o ponto de querer que nessa faculdade se envolva o direito de fazer política sem a intervenção nacional, o direito de substituir situações como lhe aprouver. Ora, dizei-me: não é isto uma farsa? Não é isto um verdadeiro absolutismo, no estado em que se acham as eleições no nosso país? Vede este sorites fatal, este sorites que acaba com a existência do sistema representativo: O Poder Moderador pode chamar a quem quiser na hora de organizar Ministérios, esta pessoa faz a eleição, porque há de fazê-la, esta eleição faz a maioria. Eis, aí está o sistema representativo do nosso país. O Manifesto Republicano de 1870 Evaristo de Moraes 8 com a autoridade de quem foi não apenas republicano histórico, mas ativo membro da Propaganda Republicana, ao relembrar as mais remotas origens do movimento republicano no Brasil não das idéias republicanas, cujas primeiras manifestações são encontráveis ainda na colônia, mas do movimento republicano organizado, declarou que foi a frustração que a inopinada troca de gabinetes em 1869, com o completo desrespeito das regras 8 Da Monarquia para a República (1870 1889), 2º ed. Brasília, Ed. UnB, 1985, pág. 15. Artigos & Ensaios 39

então vigentes, impôs aos membros mais radicais do partido liberal que levou à cisão do mesmo, dando origem tanto ao partido liberal radical quanto ao partido republicano. As regras do jogo foram quebradas pelo monarca, o regime havia perdido sua credibilidade. Dos eventos de 1868 derivou não somente o largo programa dos liberaisradicais, que propunham o avanço do regime monárquico até os extremos do liberalismo democrático. Nasceu também a oportunidade para a organização política dos republicanos, até então dispersos e por consequência não levados a sério. Logo no ano seguinte, 1869, Joaquim Saldanha Marinho, influente político liberal, homem de confiança do regime, já que havia presidido duas importantes províncias em diferentes governos Minas Gerais e São Paulo, além de ter sido diversas vezes eleito deputado por Pernambuco. Despregando-se dos liberais, em companhia de Quintino Bocaiuva e de Salvador de Mendonça, cogitou da fundação de um clube republicano. Com esse objetivo, realizou Quintino várias conferências, transmitindo a impressão do que sentira nos Estados Unidos e na Argentina. Em 1870, fundase o clube, inicialmente com quinze sócios. Ocorre a idéia de um órgão de publicidade, e, efetivamente, a 3 de dezembro, surge A República, destinada a sair três vezes por semana. Nele, publica-se o Manifesto Republicano. Quanto à promessa de futuras transformações sociais, não vai o manifesto muito além do programa dos liberais- radicais. Muito se discutiu sobre a autoria do Manifesto Republicano de 1870. Evaristo de Moraes, em seu já citado livro 9, o atribui a Quintino Bocaiuva, segundo a constante afirmação dele e o testemunho dos seus companheiros mais chegados. Sérgio Buarque de Holanda se declara contrário à tese da redação do Manifesto por Quintino. No entanto, hodiernamente, como realça Evaristo de Moraes Filho no prefácio à segunda edição do livro de seu pai 10, parece desfeita qualquer dúvida, diante do documento que se encontra na Coleção Otoni, pertencente hoje à Biblioteca Nacional. Diz a anotação, do punho do próprio Cristiano terceiro signatário do Manifesto: O Clube Republicano foi fundado a 3 de novembro de 1870, à rua do Ouvidor n o 29, sobrado. O manifesto é feito pela pena de Quintino Bocaiuva. O debate, porém, é de somenos importância, já que importa somente o Manifesto como um todo ideológico. Em 1885, ao reimprimir o seu folheto 9 Idem, pág. 15. 10 Ibidem, pág. 8. 40 Cadernos ASLEGIS 37 maio/agosto 2009

sobre o Rei e o Partido Liberal, de 1869, assim se manifestou Saldanha Marinho sobre o Manifesto Republicano de 1870: Tratamos de nos desempenharmos de tão melindrosa tarefa e, coadjuvados eficazmente pelos talentosos e distintos jornalistas Quintino Bocaiuva e Salvador Mendonça, confeccionamos este manifesto, o qual, apresentado ao Clube em sessão solene, foi unanimemente aprovado, e com aplauso geral. E em confissão de Salvador de Mendonça: Quintino ditou o manifesto por inteiro e eu o escrevi, exceção feita do artigo A Verdade Democrática. Este artigo foi meu. 11 Dos signatários do Manifesto Republicano de 1870, muitos vinham do desempenho de cargos legislativos e executivos importantes, como, por exemplo, o próprio Saldanha Marinho; Aristides da Silveira Lobo; e Cristiano Benedito Otoni. Outros, mesmo já tendo ocupado cargos importantes, continuariam sua ascensão, ainda no regime monárquico, como, por exemplo, Lafayette Rodrigues Pereira, que em 1870 já havia sido presidente das províncias do Ceará e do Maranhão, mas que viria a ser presidente do conselho de ministros do gabinete de 24 de maio de 1883. Ocasião em que renegaria a necessidade de mudar o regime para poder avançar as instituições. Muitos outros terão de esperar o novo regime, para poderem ocupar cargos de destaques, como Quintino Bocaiuva, Ferreira Viana, Salvador de Mendonça, Rangel Pestana, e Flávio Farnese. A maioria, no entanto, mergulharia em um quase anonimato. 11 Ibidem, pág. 8. Artigos & Ensaios 41