SOBRE ESPELHOS Viviane Jacques Sapiro [...] espia a barriga, espia a barriga estufada dos meninos, a barriga cheia de vazio, de Deus sabes o quê.[...] (Favelário Nacional, p.116- As Contradições do Corpo. Novos Poemas-Carlos Drummond de Andrade) Quando se trabalha em hospital é difícil permanecer indiferente à presença do câncer. Mais ainda quando aparece em crianças pequenas, de poucos meses de vida até menos de cinco anos com a frequência imposta pelo ambiente da oncologia pediátrica. É comum circularem pelos corredores mães com seus filhos ao colo,alguns cuja massa tumoral é tão grande que a presença se impõe ostensivamente ao olhar.por ser comum mas não banal,perguntamos o porquê disso. Tentarei hoje, pela psicanálise, acercar-me de uma dessas crianças: o menino Renan, de dois anos, e sua mãe, Geneci.
Geneci queria muito ter um filho. Sem esse filho, dizia ela, não era ninguém. Assim, quis engravidar logo que casou; e que alegria sentiu quando pôde sustentar, orgulhosa, sua barriga grávida. Dessa gravidez nasceu Renan. Logo após o parto, o médico esqueceu a placenta no interior do seu corpo. Ela não percebeu, ele tampouco. O fato é que, passadas algumas semanas, sua barriga continuava grande, inchada, crescida, como se Renan, diz Geneci, ainda permanecesse ali... Foi então que uma infecção a obrigou a retornar ao médico para retirar a placenta, porque o corpo resolveu agir (sic). Enquanto isso, Renan crescia e Geneci engordava. Quando se deu conta, seus quilos a mais somavam aos quase dez de seu bebê Renan... Estava barrigudinho como ela. E ele ganhou esse apelido: barrigudinho. Na revisão mensal, o pediatra pensou que barrigudinho poderia estar com vermes. Mas, aos oitos meses, é-se muito pequeno para tomar vermífugos. E Geneci acomodou-se a esse diagnóstico, enquanto a vida prosseguia. Passados alguns meses, o mesmo pediatra notou que algo de estranho havia na barriga de Renan. E esta estranheza do pediatra fez com que fosse buscado outro diagnóstico, que logo veio. Era um hepatoblastoma, um câncer no fígado. A partir daí, seguiu-se uma ida a Porto Alegre, pois Geneci e Renan são do interior do Rio Grande do Sul. Muitos exames e o tratamento propriamente dito para diminuir o tumor. A estratégia foi tentar retirá-lo cirurgicamente e, caso não fosse assim eliminado, partir para a quimioterapia e
tentar salvar a criança. Mas Geneci, de repente, sem saber explicar porque, retornou ao interior e lá permaneceu durante um ano, sem realizar os procedimentos médicos a ela esclarecidos e disponibilizados pela equipe médica que iniciou o tratamento em Renan. Durante este tempo o tumor cresceu e se propagou ao pulmão, agravando a situação. Agora, nada ou muito pouco se tem a fazer para salvar Renan. E Geneci ama seu filho. Jamais o deixa. Se angustia de vê-lo sujo ou mal alimentado, e canta canções de ninar para que ele adormeça. No entanto, não conseguiu trazê-lo para tratamento. A Geneci anterior à gravidez de Renan diz que sem um filho não é ninguém. Geneci confere ao filho o ser alguém: ser ela enquanto sujeito. Sem o filho nada lhe resta além de sua falta... Esperando um filho, assim se completa. Estabelece imaginariamente sua plenitude narcísica. Renan filho-falo, restituído da infância do qual não pode abdicar. Após o parto, retém dentro do útero o resto da matéria que foi um dia Geneci-Renan. Do lado de fora do útero, Renan, cria humana de Geneci. Ele se enxerga diante do espelho, se vê, e o que ele vê do outro lado é Geneci. No volume 1 do Seminário, (Lacan, J. (1953-4): Os Escritos Técnicos de Freud.p96 Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986). Lacan fala que ao passar por essa experiência o infans se vê, se reflete e se concebe como um outro, que não ele mesmo, o que tem um caráter estruturante para toda a sua vida de fantasia (1986,p86). Renan, o infans, via Geneci ao se mirar no espelho. Diria que ela, Geneci, antes em falta, sozinha diante do espelho, compartilha do campo visual
com Renan. Ele participa de um jogo identificatório, sujeita-se para ser sujeito, identificando-se com o desejo da mãe. E qual é o desejo da mãe? O desejo da mãe é o falo. Renan deve ser para satisfazê-la. Falo-barriga. Então que seja o barrigudinho nessa busca de ser, assim, pleno do desejo dela. Pois, antes de ser sujeito, ele está preso, retido no desejo da mãe; como preso está o buquê-filho ao jarro útero-mãe, no modelo óptico de espelhos plano e côncavo, que Lacan nos apresenta. No texto onde comenta o relatório de Daniel Lagache,de 1960, Lacan recorre ao modelo ótico de Bouasse L Óptique et photométrie dites géometriques. Lacan observa que é no nível da imagem real do esquema que se situa o primeiro narcisismo, que dá forma e unidade ao sujeito e corresponde ao tempo em que o corpo próprio é tomado como objeto libidinal. No esquema, o espelho plano faz alusão ao campo do Outro, e a reflexão da imagem real produzida pelo espelho côncavo nesse espelho plano demonstra o desdobramento de um segundo narcisismo i'(a), onde situa a identificação com o outro. No segundo narcisismo a identificação ao outro, o semelhante, é o
que permitirá situar sua relação imaginária e libidinal com o mundo e seus objetos se o sujeito obter o acesso ao mundo em um terceiro momento, para além do espelho. Onde o virtual se associa ao simbólico. Colocam-se assim duas funções do eu: por um lado, tem o papel essencial de estruturação da realidade e, por outro, comporta uma alienação fundamental que constitui a imagem refletida de si mesmo. É no plano da alienação fundamental que vamos nos deter: Espelho côncavo. Espelho mãe. Como se em uma certa con-cavidade dela, um insuportável vazio se apoderasse, obrigando-a a se preencher, a reter no interior de si mesma, a placenta, o que lhe cai no estômago e lhe engorda e Renan... Renan, em tratamento médico, retido no interior. Palavra cujo duplo significado nos remete a sertão, a parte interna um país ou estado como também nos aponta para aquilo que está por dentro, no espaço compreendido entre os limites de um corpo. A Geneci-Gênese, formadora de seres, há que precisar como precisas são as imagens da convexidade, como convexo é o espelho que se encaixa ao côncavo. Há que precisar da convexidade túmida, saliente e dilatada
de um tumor. A imagem no espelho é jubilatória. A imagem no espelho é lógica: ddddddddd G R G R *Geneci Intersecção Renan *Geneci União Renan
GÊNESE=RENASCER Partindo das asserções R e G uma terceira asserção: se G, então R, cujo valor lógico é assim definido: R <--> G. Renan é barrigudinho se, e somente se Geneci é barrigudinha. A multiplicação veloz de células está para o tumor de Renan, assim como a multiplicação veloz das células está para a gravidez de Geneci. A mãe de Renan diz-se agora novamente grávida. Inverte-se o espelho? É agora a mãe que se prende ao imaginário do filho buscando na barriga deste o formato de sua gravidez? A lógica e a coerência escondem o horror. O que aliena o menino que não sabe que a morte o espreita no que de maligno tem o tumor? O que aliena o menino que não sabe que na imagem côncava, cava a cova? Maligno, o Demônio, Diabo, Mephisto... Na obra de Thomas Mann (Mann,Thomas-DoutorFausto Editora NovaFronteira Rio de Janeiro,1984)Doutor Faustus, o Maligno faz um pacto com o músico Adrian Leverkun, seduzindo-o com a promessa de uma vida jubilosa. Mas em troca o Maligno se apodera de sua alma... O tumor maligno denuncia o engano da unidade perfeita e, como um pacto com o Demônio, o preço é a morte. Os doze meses de silêncio são o som da pulsão de morte: Os instintos de morte parecem efetuar seu trabalho discretamente. O princípio de prazer parece, na realidade, servir à pulsão de
morte., diz Freud em Além do princípio do prazer (Freud.., Sigmund Obras Completas-O mal-estar na Cultura (Vol. 21, pp. 81-177). Imago Editora, 1986 Rio de Janeiro.). A indiferenciação narcísica também está na morte. A indiferenciação conduz a vida ao nada. Implacável é o destino de Narciso: As células das neoplasias malignas que destroem o organismo também devem ser descritas como narcisistas, diz Freud em Além do princípio do prazer. (Freud.., Sigmund Obras Completas-Além do Princípio do Prazer vol. XVIII cap. I, II, III Imago Editora, 1986, Rio de Janeiro). A mãe que não quer abdicar do filho enquanto complemento narcisista, a mãe que não admite o corte pode supor: antes a morte do que a separação...