Pe. Leomar Brustolin
A fé cristã entende que a revelação bíblica trata de forma indissociável Criação e Aliança. A Criação é o primeiro passo para entender a Aliança de Deus com seu povo eleito. Para além do conhecimento natural que todo homem pode ter do Criador, Deus revelou progressivamente a Israel o mistério da Criação. Ele, que escolheu os patriarcas, que fez Israel sair do Egito e que, ao escolher Israel, o criou e o formou, se revela como Aquele a quem pertencem todos os povos da Terra, e a terra inteira, como o único que "fez o céu e a terra" (Sl 115,15; 124,8; 134,3). Assim, o Catecismo da Igreja, nos números 287 e 288, resume a longa experiência de Israel desde a libertação do Egito, passando pelos profetas, para proclamar a fé no Deus criador
. É necessário, entretanto, considerar que o povo de Israel recebeu influências de povos circunvizinhos na Antiguidade para elaborar sua compreensão sobre as origens do universo. Mesmo que as versões de outros povos não tenham determinado a concepção do Gênesis, certamente há interessantes intercâmbios. podemos citar o mito babilônico de Enuma Elish, o relato mesopotâmico da Atrahasis e a epopeia de Gilgamesh
o Deus criador é único, não há outros deuses, e cria por total gratuidade, sem interesse ou necessidade; Deus não tem adversários nem precisa dar razões de suas obras; o ser humano é desejado como uma obra por excelência, não era um escravo ou um acidente da Criação; há uma realidade unitária entre matéria e espírito, entre o que é criado e a imagem e semelhança de Deus; e o humano é criado para ser feliz e participar da vida divina.
o Antigo Testamento quer referir-se àquela ação criadora que é específica e unicamente de Deus, usa o verbo bârah, presente 48 vezes. No fim de cada dia, o autor sagrado diz que o Criador viu que era boa a obra daquele dia, expressão que se repete sete vezes.
essas aparecem contidas em Gn 1,1 2,4a. Relato da criação em sete dias O texto de Gn 2,4b-3,24 Relato da criação homem e mulher Adão e Eva
Gênesis 1 Característica Gênesis 2 Sacerdotal autor Javista Século V ac data Século X ac Babilônia local Palestina Seis dias duração 1 jornada Plantas, astros, animais ordem homem, plantas Homem e mulher animais, mulher Universal: humano centro cenário Regional: humano do cosmos centro na família Sóbrio: Deus arquiteto antropomorfismo audaz: Deus Trabalhou jardineiro, alfaiate Transcendência Teologia imanência
Origina-se pelo confronto com as cosmogonias ambientais daquele tempo que colocavam em risco a fé de Israel. O escritor sagrado usará um relato mítico preexistente, limitando-se a corrigi-lo em alguns pontos, complementando-o com o contexto da História da Salvação. Pode-se dizer que esse relato é um mito? Se entendermos que mito é uma narração cujas descrições não se ajustam à realidade em todos os seus detalhes, então diremos que sim. O mesmo se dirá se pensarmos nos elementos míticos que se encontram na narração. Contudo, para a História das religiões o sentido de mito é diferente. Não se trata de informar sobre o passado, mas de iluminar o presente. A intenção hermenêutica explica uma das características do mito: sua falta de historicidade.
Podemos dizer, portanto, que o relato não é um mito se considerarmos que: não se pretende ser objetivo nos detalhes, mas na afirmação de que tudo procede de Deus; o material mítico se insere num contexto histórico, pois rompe com o presente contínuo e o tempo circular do mito; e na origem, o humano já fala do fim, a Criação começou e deverá chegar à sua perfeição.
: dia e noite; céu; terra; plantas; Sol e Lua; peixes e aves; animais e homens. Fez isso em seis dias e no sétimo descansou. Aqui o relato bíblico segue tradições babilônicas e mesopotâmicas sobre a criação do mundo: Deus disse: haja... Assim se fez... Viu Deus que era bom... Em Gn 1, 4a, Deus declara boa somente a luz (e não a treva). Diferentemente do javista, surge primeiro o espaço de vida e o alimento para os humanos.
o ser humano é criado à imagem e semelhança de Deus, isto é, conforme a linguagem do mundo oriental: como correspondência à vontade de Deus de que o homem torne-se responsável pelo bem da Criação. Deus cria e cuida! O homem e a mulher são criados por vontade expressa de Deus. A promessa de bênção é para animais e homens: fecundidade e multiplicação. No relato, é possível apreender a identidade existente entre o Deus que salva Israel, o Deus da Aliança e o Deus Criador do céu e da Terra. Consequentemente, há uma profissão no monoteísmo que dá exclusividade à autoria da Criação ao Deus único e verdadeiro. Não há deuses, nem lutas, nem outros elementos disputando a Criação. Tudo vem de Deus.
O sentido do repouso semanal indica realização, isto é, iniciado e concluído, porém deve ser aperfeiçoado (criação continuada). Para isso será preciso manter a Aliança entre Criador e criatura. Ao dizer que Deus descansou, o texto usa um antropomorfismo para indicar que o termo final da Criação está em Deus. O destino da Criação é Deus. Aqui se revela a perspectiva escatológica das origens.
A situação inicial não é o caos das águas, como no Capítulo 1, mas o caos desértico. A Terra é descrita como sendo seca e vazia. A ordem da Criação não segue o relato sacerdotal, pois a primeira criatura que aparece é o ser humano. Após a criação dos animais e das plantas, aparece, por fim, a criação da mulher que é descrita com a mesma dignidade daquela do homem, transcendendo as demais criaturas visíveis.
O homem é chamado Adão. No original hebraico, o texto revela um jogo de palavras requintado: do solo adamah é retirado um ser denominado Adam, homem. Por isso, o humano deve cultivar a terra e voltar a ser terra (pó) no fim de sua vida. Assim, o nome Adão, Adam, não designa necessariamente o nome do primeiro humano, mas a sua condição.
Gn 2, 4b-6 condições da Criação antes de ser criado o homem; Gn 2,5 não havia o cultivo; Gn 2,7 o homem é feito da terra cultivável; nele é insuflado o nefesh, o sopro vital; Gn 2,19 também os animais são feitos de terra cultivável; mas não são parceiros para o homem; e não é bom que o homem esteja só; é preciso Ezer, uma ajuda; e tirada da sela do homem (não da costela), elemento de construção, tábua, viga. Feita de carne e osso (Gn 2,21-24).
não há um modelo paralelo em outras tradições orientais que tratem da mulher como ato da Criação divina. Enquanto é ajuda para o homem, não significa prestação de serviços e sim como em 2,18 ajuda para sair da miséria e da solidão. A ação criadora de Deus é muito mais antropomórfica, e o centro da descrição é a queda do ser humano por meio do pecado. Esse consiste no fato de o ser humano desejar colocar-se no centro de tudo, rompendo a harmonia com Deus, com as demais criaturas e consigo mesmo.
Ambos os textos insinuam que a Criação é uma novidade feita do nada. Também expressam a transcendência de Deus em relação às criaturas. Destacam a dependência e a relação especial do ser humano com Deus. O humano é terra, mas é imagem de Deus, dotado de um espírito que Deus lhe soprou. Enfim, sublinha que a Criação não um ato isolado, pois é o início da História da salvação. A criação aponta para a Aliança, e essa culmina em Jesus Cristo.
revela a boa ordem da Criação de Deus; ensina que a desordem foi causada pela ação humana; não dá resposta sobre a origem do mal; espera o resgate de um dado original que estabeleça a ordem; e no fundo, quem mantém sua Criação é o próprio Deus. Os relatos da Criação contidos no Livro do Gênesis têm caráter religioso que não contradiz a ciência, pois têm outra perspectiva. Não seria possível, portanto, deduzir do texto bíblico alguma teoria de ordem biológica ou científica sobre a origem do mundo e do ser humano.
no centro da Criação não está o ser humano nem o povo de Israel, mas Jesus Cristo e seus discípulos (At 4, 24-30 e 1Pe 4, 19); nesse sentido, acrescenta-se a esperança de um novo céu e nova Terra, cuja meta é a nova Jerusalém que tem como lâmpada o Cordeiro (Ap 21, 1-8); e desenvolve-se a função de Cristo na Criação: ele é o princípio dinâmico da Criação e da recriação. Ele é o princípio e o fim de tudo. A meta final da Criação não é o ser humano, mas a recapitulação em Cristo para a glória da Trindade Santa. A pessoa humana é compreendida como imagem do Filho, somos filhos no Filho, de tal forma que o ser humano só se compreenderá a partir do mistério de Cristo (GS 22; RH 11).
O mundo não é o produto de uma necessidade qualquer, de um destino cego ou do acaso. Cremos que o mundo procede da vontade livre de Deus, que quis fazer com que as criaturas participassem de seu ser, de sua sabedoria e de sua bondade.
Deus não precisa de nada preexistente nem de nenhuma ajuda para criar. A Criação também não é uma emanação necessária da substância divina. Deus cria livremente do nada. A fé na Criação a partir "do nada" é atestada na Escritura como uma verdade cheia de promessa e de esperança. Assim, a mãe dos sete filhos os encoraja ao martírio: Eu te suplico, meu filho, contempla o céu e a terra e observa tudo o que neles existe. Reconhece que não foi de coisas existentes que Deus os fez, e que também o gênero humano surgiu da mesma forma. (2Mc 7,22-23.28).
Feita no e por meio do Verbo eterno, "imagem do Deus invisível" (Cl 1,15), a Criação está destinada, dirigida ao homem, imagem de Deus, chamado a uma relação pessoal com Ele. Nossa inteligência, que participa da luz do intelecto divino, pode entender o que Deus nos diz por meio de sua Criação, sem dúvida não sem grande esforço e com um espírito de humildade e de respeito diante do Criador e de sua obra.
Deus é infinitamente maior que todas as suas obras. Mas, por ser o criador soberano e livre, causa primeira de tudo o que existe, Ele está presente no mais íntimo das suas criaturas: "Nele vivemos, nos movemos e existimos." (At 17,28). Segundo as palavras de Santo Agostinho, Ele é "superior summo meo et interior intimo meo. [Maior do que o que há de maior em mim e mais íntimo do que o que há de mais íntimo em mim.] Confissões. III. 6,11.
"No princípio, Deus criou o céu e a Terra" (Gn 1,1). Três coisas são afirmadas nessas primeiras palavras da Escritura: o Deus eterno pôs um começo a tudo o que existe fora dele. Só ele é Criador (o verbo criar, em hebraico, bara, sempre tem como sujeito Deus). Tudo que existe (expresso pela fórmula "o céu e a Terra") depende daquele que lhe dá o ser.
"No princípio era o Verbo... e o Verbo era Deus... Tudo foi feito por ele, e sem ele nada foi feito" (Jo 1,1-3). O Novo Testamento revela que Deus criou tudo por meio do Verbo Eterno, seu Filho bem-amado. Nele foram criadas todas as coisas, nos céus e na terra... tudo foi criado por Ele e para Ele. Ele é antes de tudo e tudo nele subsiste." (Cl 1,16-17).
A fé da Igreja afirma, outrossim, a ação criadora do Espírito Santo: Ele é o "doador de vida", "o Espírito Criador" (Veni, Creator Spiritus). Insinuada no Antigo Testamento, revela, na Nova Aliança, a ação criadora do Filho e do Espírito, inseparavelmente una com o Pai e é claramente afirmada pela regra de fé da Igreja: Só existe um Deus...: ele é o Pai, e Deus é Criador, é o Autor, é o Ordenador. O Filho e o Espírito Santo são como que as duas mãos do Pai que tocam o ser humano para torná-lo sua imagem e semelhança
, não precisa completar-se e nem redimir sua solidão. Deus cria simplesmente por amor e gratuidade. As criaturas participam misteriosamente do jogo de comunicação de vida e amor trinitário. A meta da Criação é a trinitarização, isto é, a comunhão plena das criaturas com a trindade criadora. A Criação não se tornará Deus, nem Deus absorverá a obra criada, mas pela distinção existente entre Criador e Criatura, entrarão numa comunhão perfeita, quando Deus-Trindade será tudo em todos (1Cor 15, 28).
Problema:a ação criadora não é pontual. O mundo não foi criado pronto e em estado definitivo. A criatura depende sempre do Criador e deve sempre passar do não ser ao ser. Deus atua sempre naquele que Ele criou ( Santo Agostinho) Conservação manutenção: a contingência exige que o mundo se mantenha numa ação conservadora: ação de sustento Concurso Natural : conservação ativa: Meu Pai trabalha sempre e eu também trabalho (Jo 5,17). Criação permanente. Ele cria e sustenta tudo. A criatura participa desse ato criador de forma criatural. Sinergia:ação conjunta de Deus e da criatura. Providência divina ( veremos mais tarde)
Problema: por que Deus criou o mundo? Qual a finalidade? ( teleologia e escatologia) A felicidade da criatura Para partilhar seus bens com as criaturas Para comunicar sua bondade Porque o amor é saída de si Para a glória de Deus com a humanidade
"O mundo foi criado para a glória de Deus", diz o Concílio Vaticano I. Deus criou todas as coisas. Explica São Boaventura: Non propter gloriam augendam, sed propter gloriam manifestandam et propter gloriam suam communicandam. [Não para aumentar a glória, mas para manifestar a glória e para comunicar a sua glória.] Deus não tem outra razão para criar a não ser seu amor e sua bondade.
A glória de Deus consiste em que se realize essa manifestação de sua bondade em vista da qual o mundo foi criado. Fazer de nós "Filhos adotivos por Jesus Cristo: conforme o beneplácito de sua vontade para louvor à glória da sua graça" (Ef 1,5-6): "Pois a glória de Deus é o homem vivo, e a vida do homem é a visão de Deus." Adversus Haereses IV, 20, 7,
1. o mundo não tem fim em si mesmo senão em Deus 2. o fim último do mundo é o bem da criatura 3. Deus não se beneficia em nada da criação, nem busca nada nela 4. o fim da criação está no cristocentrismo 5. a criação inteira é autocomunicação de Deus : expressão do seu amor