A MARINHA DO BRASIL NOS ESCRITOS OITOCENTISTAS SOBRE A GUERRA DO PARAGUAI 1

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Transcrição:

1 A MARINHA DO BRASIL NOS ESCRITOS OITOCENTISTAS SOBRE A GUERRA DO PARAGUAI 1 Jose Miguel Arias Neto ( História e Regiões UNICENTRO) (História Social UEL) Política Representações Militares Et voilá comme on écrit l histoire! Trata-se de uma ironia de Afonso Celso em relação ao modo como o geógrafo anarquista Elisée Reclus narrava a atuação do Brasil na guerra do Paraguai diante do universo cultural francês e europeu de modo geral. Em vários momentos da sua obra A esquadra e a oposição parlamentar datada de 1868, o futuro Ouro Preto referencia os vários erros de Reclus ao descrever as campanhas navais brasileiras. Um deles, diz respeito à descrição, no artigo La guerre du Paraguay, publicado na Revista dos Dois Mundos, de 15 de setembro de 1866, da Batalha Naval do Riachuelo. Diz Reclus: O triunfo dos brasileiros foi devido principalmente ao comandante Barroso, que se aproveitando da superioridade de evoluções do navio encouraçado em que se achava, e concebendo uma manobra, praticada depois com igual sucesso pelo almirante austríaco Tegethoff, em Lissa, lançou-se com toda a força sobre a esquadra paraguaia (Apud Figueiredo, 1921, p. 576). Ao que observa Afonso Celso:...julgando sem dúvida, impossível que um navio de madeira como era o Amazonas, pudesse praticar a façanha que realizou(...) 1 Texto vinculado ao Projeto Ciência, tecnologia e política: o lugar da Revista Marítima Brasileira no periodismo científico militar no Brasil dos séculos XIX e XX, financiado pelo CNPq, com auxilio financeiro e bolsa produtividade.

2 convertendo-se em formidável aríete... (Figueiredo, 1921, p. 576). Embora Afonso Celso aparentemente esteja terçando armas com Reclus, de fato o opúsculo publicado em 1868 era parte de uma estratégia de defesa de sua atuação como Ministro da Marinha no gabinete liberal de 03 de agosto, derrubado no confronto entre o Marquês de Caxias e Zacarias de Góis e Vasconcelos. Esta estratégia, travada no campo da cultura política, envolve atividades que se iniciaram quando Afonso Celso ainda era ministro: a contratação de Vitor Meirelles para a elaboração do quadro sobre a Batalha Naval do Riachuelo e da Passagem de Humaitá. A ordem para o Tenente Euzébio Antunes redigir suas memórias e a edição, já após a demissão do gabinete, do A Esquadra e a Oposição Parlamentar. Neste livreto, para poder defender sua atuação enquanto ministro, o futuro visconde objetivou defender e justificar as ações do Almirante Tamandaré e do Visconde de Inhaúma, acusados pelo General Bartolomé Mitre, pelos jornais da Corte e do Rio da Prata e pelo parlamento brasileiro como responsáveis pela morosidade da esquadra no teatro da guerra. Esta ideia de morosidade se articula e aparentemente se completa com aquela outra de imprevidência do estado monárquico que não teria se preparado devidamente para a guerra. Estas ideias perpassaram os gabinetes da monarquia, a Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha, o Parlamento, o Conselho de Estado, as memórias de civis e de militares da Marinha do período. Este texto investigará as ideias de morosidade e de imprevidência nos escritos referentes às operações navais, pois estas possuem graves implicações na guerra e, fundamentalmente, na compreensão da ação política militar no pós-guerra, o que pode contribuir para esclarecer as relações entre Forças Armadas e Sociedade no Brasil Oitocentista, ou pelo menos, até a emergência da Primeira Guerra Mundial 2. Assim, o trabalho se fundamentará na análise de memórias, dentre as quais se destacam sem a mínima pretensão de esgotar a bibliografia existente além do 2 A campanha contra o Paraguai foi conduzida ao longo das calhas dos Rios Paraná e Paraguai. Neste último estavam localizadas Humaitá e Assunção.

3 opúsculo de Ouro Preto, o Diário da Campanha do Paraguai-1866 de Manuel Carneiro da Rocha (1999); as Memórias das campanhas contra do Estado Oriental do Uruguai e a República do Paraguai, de Eusébio José Antunes (2007); o Diário pessoal do Almirante Visconde de Inhaúma durante a Guerra da Tríplice Aliança (2008) datados do período da guerra. Estas iniciativas todas caracterizam aquilo que Pierre Nora chama de criação de lugares de memória : O que os constitui é um jogo da memória e da história, uma interação dos dois fatores que leva à sua sobredeterminação recíproca. Inicialmente é necessário ter vontade de memória (...) Porque se é verdade que a razão fundamental de ser de um lugar de memória é parar o tempo, é bloquear o trabalho do esquecimento, fixar um estado de coisas, imortalizar a morte, materializar o imaterial para prender o máximo de sentido num mínimo de sinais, é claro (...) que os lugares de memória só vivem de sua aptidão para a metamorfose, no incessante ressaltar de seus significados e no silvado imprevisível de suas ramificações. ( Nora, 1981, p.22) É fundamental perceber este jogo de memória e de história nas Memórias das campanhas contra o Estado Oriental do Uruguai e da República do Paraguai de Euzébio José Antunes. Redigido em 1867, o livro só veio a lume no ano de 2007, no ano em que se comemoravam os duzentos anos do nascimento de Tamandaré, publicado pelo Serviço de Documentação da Marinha. Para Euzébio a questão fundamental que caracterizaria a imprevidência do estado brasileiro era a inexistência de investimentos nas forças armadas. O militar afirma que o fim do tráfico negreiro e a dinamização da economia provocaram o entusiasmo pelo progresso, pelos melhoramentos materiais. Assim, a guerra pegara o governo de surpresa, pois este havia sido imprevidente, não havia se preparado para a mesma: o Exército era reduzido e a Marinha, despreparada para o cenário platino mesmo na campanha oriental. Um segundo texto de importante apreciação é A esquadra e a oposição parlamentar, escrito por Afonso Celso de Assis Figueiredo, publicado em 1868, no Rio

4 de Janeiro, pela Typographia e Lithographia Franceza. É um livreto de oitenta páginas, dividido em duas partes centrais: comando do visconde de Tamandaré e comando do visconde de Inhaúma. Tratou o futuro Ouro Preto, de defender os dois militares da Marinha contra os ataques que lhes eram feitos pelo Parlamento e pela imprensa brasileiras devido à morosidade das operações navais. Mas tratava-se também da defesa do Partido Liberal apeado do poder pela inversão partidária de 1868, que conduziu os conservadores retintos da tribo saquarema capitaneados por Itaboraí à direção política do país. Euzébio e Afonso Celso trafegam no mesmo universo epistemológico. Embora o tenente cave um fosso entre civis e militares, responsabilizando os primeiros pela imprevidência do império, a crise não teria sido perpetrada propositadamente e, assim, através da imparcialidade, Euzébio também terminou ao cabo por desculpar e justificar as ações dos civis, embora a veemência posterior do texto tenda a obscurecer esta operação. Tanto um quanto outro operaram em um universo político delicado em que caberia estabelecer responsabilidades, tendo em vista não punições ou rupturas, mas sim visando um aperfeiçoamento, um aprimoramento do status quo, preservando a Monarquia e o Império. A defesa que Assis Figueiredo faz dos comandos militares da Marinha está inserida na lógica do poder e do sentido civilizatório atribuído ao Império pelo nacionalismo do oitocentos. A guerra é, portanto, regeneradora e deve civilizar o Paraguai. Há, no entanto, nesta escrita, elementos que precisam ser destacados, pois eles compõem o elemento estruturante da narrativa, não apenas de Afonso Celso, mas também de um Carneiro da Rocha e do próprio Inhaúma. Os aspectos naturais se tornam empecilhos no território onde ocorreu a segunda fase do conflito: os campos, as florestas, o Chaco, os banhados do Paraguai, a geografia caprichosa além de outras adversidades como o calor excessivo, os mosquitos e as doenças. Assim os homens eram submetidos a estas adversidades, bem como ao desconhecimento prévio do que se iria enfrentar e cujo desvendar foi se dando pari passu ao avanço das forças, tornando

5 lenta e dificultosa a derrota do inimigo e a conquista do Paraguai. Este inimigo não era inerte, assim, além da guerra convencional, ele incendiava os campos nas margens do rio, procurava aterrorizar psicologicamente os combatentes, bem como fornecer informações erradas aos aliados. Assim a natureza do teatro de operações impôs a dinâmica às forças invasoras. Natureza e tecnologia também travam uma guerra no Paraguai, propiciando aos militares outra experiência de tempo, diferente do ritmo progressista do Rio de Janeiro ou de Buenos Aires. Esta diferença dos tempos aparece também no diário do Capitão-Tenente Manuel Carneiro da Rocha, que pertencia ao Estado-Maior do Visconde de Tamandaré durante a primeira fase da guerra. Neste período ele registrou o quotidiano da frente de batalha, o que é da maior importância para o conhecimento do andamento da guerra e de seus efeitos sobre os combatentes. O diário recobre o período de 8 de fevereiro a 31 de dezembro de 1866. As viagens são longas, demoradas, os encalhamentos no rio Paraná são constantes devido às baixas do mesmo, bem como ao desconhecimento dos canais. O inimigo não é inerte, ele opõe-se à movimentação do invasor, através da guerra psicológica, da contra-informação e do emprego de armamentos não convencionais, como por exemplo, o torpedo. Documento de natureza semelhante ao de Carneiro é o Diário pessoal do Almirante Visconde de Inhaúma durante a Guerra da Tríplice Aliança, organizado por Guilherme de Andrea Frota e Marcos Vinicius Ribeiro de Lima e publicado em 2008. Uma primeira diferença em relação ao diário de Carneiro é que o de Inhaúma vai de dezembro de 1866 a janeiro de 1869, ou seja, dois anos e dois meses. A segunda questão é que juntamente com o Diário, Inhaúma escrevia para a Semana Ilustrada com o pseudônimo de Leva Arriba. De acordo com Frota, Vieira Fazenda, Gastão Penalva, Americo Jacobina Lacombe eram unânimes em afirmar ser Inhaúma o Leva Arriba. ( Frota, 2008, p. 34).

6 Mas se o diário tem a função de registrar impressões pessoais e sequer se sabe se algum dia Inhaúma desejou que ele fosse publicado, o Leva Arriba era a voz pública do Almirante, o personagem por meio da qual fazia a defesa de suas ações na frente de batalha diante das críticas veiculadas na imprensa e no parlamento. O diário era o escrito da guerra e o Leva Arriba era o marinheiro da guerra nos escritos. A derrota de Curupaiti, a cólera, o escorbuto, a certeza de uma guerra total e as desconfianças em relação à Bartolomé Mitre, bem como as tentativas de explicar e de justificar a morosidade das operações navais marcam o diário de Inhaúma. Para ele assim como para Eusébio Antunes e para Carneiro da Rocha, a morosidade era fruto da imprevidência do Estado na criação de Forças Armadas preparadas para uma guerra total 3. A crise que deitou por terra o ministério Zacarias teve origem nas críticas à morosidade da guerra. As manifestações contra esta morosidade tornaram-se contundentes, provocando a indisposição do marquês, que solicitou a demissão do comando. A carta chegou à Corte em fevereiro de 1868, logo após o forçamento de Humaitá e provocou a pior impressão: acreditaram em especial os liberais, que Caxias procurava forçar a substituição do ministério progressista por um conservador. A situação toda foi interpretada como um pronunciamento do general conservador contra o ministério liberal. A ascensão do gabinete Itaboraí não conseguiu debelar a crise, e a câmara foi fechada, sendo convocadas novas eleições, o que garantiu a estabilidade política necessária ao encerramento da guerra, mas abriu uma crise sem precedentes na política imperial. Cada vez mais doente, Inhaúma retira-se para a Corte em janeiro de 1869, vindo a falecer no mês seguinte. 3 O plano de guerra engloba do ato de guerra total, que graças a ele se torna uma operação única, com um só objetivo final definitivo, e no qual todos os objetos particulares se fundiram. Nenhuma guerra se inicia (...) sem que se tenha encontrado uma resposta para a pergunta: o que se procura alcançar pela guerra e nela? O primeiro é o objetivo, o outro o fim intermédio. Essa idéia dominante determina o curso inteiro da guerra, determina a extensão dos meios e a dimensão da energia a desenvolver (...) Dissemos (...) que o esmagamento do inimigo é o fim natural do ato de guerra, e que, se nos quisermos manter nos limites estritamente filosóficos do conceito, não poderá na realidade haver mais nenhum. Como esta idéia se aplica às duas partes beligerantes, deveria resultar daí que não pode existir nenhuma suspensão no ato de guerra, que uma suspensão só pode sobrevir enquanto uma ou outra das partes não estiver efetivamente destruída (Clausewitz,1996, p. 829.).

7 Assim, as idéias de imprevidência e de morosidade têm significados diferenciados nos universos da política partidária e do mundo militar. No âmbito da política partidária, esperava-se que aquela guerra fosse uma guerra rápida como a movida contra Rosas ou como a intervenção no Estado Oriental. Contudo, instaurou-se uma contradição entre a política interna e a política externa que optou por uma guerra total, que, como já se afirmou, representou uma novidade no envolvimento que o Brasil tinha na Bacia Platina. No plano da política interna, estas idéias imprevidência e morosidade apenas foram incorporadas ao vocabulário das lutas partidárias. Por isto mesmo, Ouro Preto, por exemplo, afirmava que aquela geração atual não tinha como, imparcialmente, apurar as responsabilidades pela guerra. Por outro lado, para os militares, rapidamente tornou-se bastante claro que a guerra de nova natureza movida pelo Império implicaria em um gigantesco esforço para criação das Forças Armadas a ela necessárias. De fato, havia já nos anos cinquenta uma mentalidade militar sobre defesa embora assim não fosse nominada que implicava na criação de uma política militar a ela associada. Era isto que as elites civis imperiais não reconheciam. É neste sentido, portanto, que as idéias de imprevidência militar do Estado e de morosidade são resultantes, a primeira da existência de um conceito de defesa e a segunda das experiências de tempo em que a natureza impõe seu ritmo às operações militares configurando um tempo que não é o linear do progresso. Assim, estas experiências passaram a fazer parte do repertório cultural e político dos militares que retornaram da guerra. Neste sentido, a guerra total e suas consequências na sociedade brasileira a descoberta da necessidade de uma defesa permanente para que se possa dissuadir ou responder de imediato a uma agressão configuram a cultura militar nos oitocentos brasileiro. Esta expectativa parece ter delineado a atuação militar no pós-guerra até a proclamação da República, diante de uma sociedade que entendia investimento em defesa como despesa improdutiva ( Paranhos Jr, 2011).

8 Os escritos oitocentistas sobre a guerra do Paraguai demonstram que pelo menos desde os anos cinquenta do XIX a emergência de uma concepção de defesa nacional estava se processando entre os militares. Esta concepção chocou-se, durante e no pósguerra com a concepção dos políticos civis de que investimentos em defesa eram improdutivos. Este descompasso, aliado ao impacto avassalador da revolução industrial e tecnológica na maquinaria da guerra, aprofundou cada vez mais o fosso surgido entre civis e militares. Ainda que militares declarassem nos anos cinquenta e sessenta sua fidelidade ao Império e ao Monarca, a crescente política de contenção de recursos passou na visão destes a comprometer a segurança e a defesa do país no final do século, conduzindo a uma ruptura que se tornou inevitável. De fato, a guerra do Paraguai, em sua natureza uma guerra total, obedeceu aos impulsos modernizadores decorrentes da industrialização e do surgimento da sociedade de massas: um envolvimento cada vez mais massivo e repleto de consequências para as sociedades envolvidas no conflito como o início dos processos de desumanização do inimigo e de não diferenciação entre civis e militares embora este segundo processo fosse mais visível no Paraguai. Outra característica é a dependência cada vez maior da guerra em relação ao desenvolvimento da tecnologia bélica que o caso da Marinha demonstra com clareza. Como observou Walter Benjamin ( 2012), a reprodutibilidade técnica se iniciou com os armamentos de repetição, e por isso mesmo, a guerra total, configurou-se como o paradigma das guerras nas sociedades de massas, pelo menos até o domínio da energia nuclear e o início da chamada guerra fria. ( Smith,, 2008). Neste sentido, o conflito com o Paraguai permite observar o alvorecer da guerra total na sociedade de massas. Referências: ANTUNES, Eusébio José. Memórias das campanhas contra do Estado Oriental do Uruguai e a República do Paraguai. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação da Marinha, 2007.

9 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In CAPISTRANO, Tadeu ( Org.). Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. FIGUEIREDO, Afonso Celso. A esquadra e a oposição parlamentar. Rio de Janeiro: Typographia e Lithografia Franceza, 1868 In Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, 1921. FROTA, Guilherme de Andrea. Notas para servir à uma biografia do Visconde de Inhaúma. In INHAÚMA, Visconde de. Diário pessoal do Almirante Visconde de Inhaúma durante a Guerra da Tríplice Aliança. Rio de Janeiro: Guilherme de Andrea Frota, 2008. INHAÚMA, Visconde de. Diário pessoal do Almirante Visconde de Inhaúma durante a Guerra da Tríplice Aliança. Rio de Janeiro: Guilherme de Andrea Frota, 2008. NORA, Pierre. Entre a memória e a história: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo, 1981. RESTIER JR, Renato Jorge Paranhos. A modernização da Armada Imperial e os conflitos no Prata durante o Segundo Reinado (1850-1876). Rio de Janeiro: 2011, Dissertação de Mestrado, UERJ. SMITH, Peter D. Os homens do fim do mundo: o verdadeiro Dr. Fantástico e o sonho da arma total. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.