PENSANDO A ÉTICA DA PSICANÁLISE A PARTIR DE UM CONCEITO: SUBLIMAÇÃO E SUA INTERFACE ENTRE TEORIA E PRÁXIS

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Transcrição:

PENSANDO A ÉTICA DA PSICANÁLISE A PARTIR DE UM CONCEITO: SUBLIMAÇÃO E SUA INTERFACE ENTRE TEORIA E PRÁXIS Willian Pereira da Silva Nesse trabalho, discutimos os principais pontos abordados numa investigação, que está sendo realizada no Programa de Mestrado da Universidade Federal de São João del- Rei. Nessa investigação, procuramos entrever os elementos metapsicológicos e éticos presentes na elaboração do conceito de sublimação, que nos permitem pensar o estatuto da impotência e da impossibilidade na psicanálise. Mas, nesse trabalho, estabelecemos uma ênfase maior nos aspectos éticos do conceito de sublimação, considerando-o como um dos destinos pulsionais e que implicam um posicionamento do sujeito. Esta investigação é financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais - FAPEMIG. Devemos ressaltar que a direção ética, para a qual o conceito de sublimação nos aponta, é o cerne principal que permite um entrelaçamento entre a práxis e a clínica psicanalítica. Em efeito, aqui se situa o ponto central de uma definição ética da psicanálise, na medida em que ela é a práxis de uma teoria. Foi a partir dos discursos de seus pacientes que a teorização freudiana se deu. Desvincular teoria e práxis, assim, seria um sinal de incoerência. Tal como nos atesta Garcia - Roza (1991), a teoria em psicanálise, como sinônimo de metapsicologia, se distancia das descrições clínicas; contudo, não podemos afirmar sobre uma recusa clínica, já que opor estes dois pólos, clínica e teoria, de forma excludente, seria negar o projeto freudiano. Considerando esta peculiaridade da psicanálise, Lacan (1956-1960/ 1988) assinala duas dimensões da psicanálise que nos permitem delimitar uma posição ética e também a partir dos quais podemos definir uma clínica. Sigamos o argumento desse autor: a obra de Freud e a experiência da psicanálise que dela decorre trazem-nos algo

de novo. De novo sobre o quê? Sobre alguma coisa que é, ao mesmo tempo, muito geral e muito particular. Muito geral na medida em que a experiência da psicanálise é altamente significativa de um certo momento que é aquele em que vivemos, sem poder sempre, e até pelo contrário, discernir o que significa a obra, a obra coletiva, na qual estamos mergulhados. E, por outro lado, muito particular, como é o nosso trabalho de todos os dias, ou seja, a maneira pela qual temos de responder na experiência ao que lhes ensinei a articular como uma demanda, demanda do doente à qual nossa resposta confere uma significação exata - uma resposta da qual devemos conservar a mais severa disciplina para não deixar adulterar o sentido, em suma profundamente inconsciente, dessa demanda (LACAN, 1959-1960/ 1988, p. 9-10). A clínica, em psicanálise, pode ser expressa como um nó em que um pólo singular e um pólo coletivo se convergem e se divergem. Da mesma forma, por esse nó, se esboçam algumas coordenadas éticas que distinguem o campo psicanalítico. Tal ética se centra na questão de um desejo, o qual não deve ser visto como um Bem supremo, atingível e alcançável, mas como indestrutível e defasagem. O conceito de sublimação serve-nos aqui como um guia que nos permite destacar os aspectos éticos desses elementos que destacamos da experiência psicanalítica. Por quê? O conceito de sublimação implica, em sua estruturação, dois pólos aparentemente inconciliáveis entre si. De um lado, temos a exigência de uma satisfação pulsional, que se situa na ordem do real, uma impossibilidade. De outro, a sublimação produz efeitos que permitem uma valorização social de seus produtos, o que faz, por exemplo, que uma obra de arte ou atividade tenha uma aprovação social e cause um fascínio na sociedade. A sublimação alude, pois, a um modo de satisfação pulsional e, logo, estabelece um relação com o gozo. Em suma, um posicionamento do sujeito para com o seu desejo, uma relação do artista com a obra de arte e um certo saber fazer com o impossível. Estes apontamentos éticos que o conceito nos fornece seria um aspecto crucial para entendermos o modo como se configura a sua elaboração na teoria freudiana? Na verdade, o conceito de sublimação nos aponta um não-fechamento da teoria, que se marca por

elementos conceituais inéditos e que supõe uma ideia de um sujeito clivado e dividido. É sob essa ótica que devemos considerar as lacunas presentes na elaboração do conceito de sublimação. Fato é que a sublimação, na obra freudiana, ao invés de um conceito, pode ser tida como uma concepção simplesmente por Freud não ter chegado a descrevê-la metapsicologicamente - de um modo abrangente; por toda a sua obra somente são feitas referências à sublimação. É na fronteira com alguns conceitos - como idealização, recalque, formação reativa - que a sublimação é delimitada. (FREUD, 1929-30/ 1974; LAPLANCHE, 1992). A sublimação, pode ser abordada pelo modo de funcionamento da pulsão, como deriva. A sublimação implica assim sempre um desvio, no que constitui a meta da pulsão. A pulsão não tem um objeto definido e sua satisfação resulta sempre parcial; ela implica sempre um retorno e um repetição. Eis o principal aspecto enfatizado na torção promovida com a introdução da segunda tópica e do último dualismo pulsional (pulsão de vida e pulsão de morte). Quanto ao objeto, tal como afirma Freud (1915/ 1974), ele é o que é mais variável na pulsão. Todavia, podemos pensar traços neste objeto que nos permitam classificá-lo como determinado, o que faz com que um tipo de escolha seja privilegiado. Esses meandros pelo qual se desliza a caracterização do objeto pulsional remontam a uma característica própria da pulsão. Esta se refere, pois, a uma viscosidade e a uma plasticidade pulsional. Dessa forma, se as pulsões de vida provocam uma certa aglutinação de partículas menores em um todo maior, visando uma unidade, as pulsões de morte atuariam como forças disjuntivas, num eterno retorno que instaura um paradoxo, permitindo a emergência da diferença, de um novo e plural. Ao atuar como força disjuntiva, promovendo a destruição, ela permite, também, uma criação. Pela pulsão de morte, destaca-

se o princípio de funcionamento de toda pulsão, cuja satisfação nunca é total e em cujo horizonte se põe uma dimensão de um impossível, do real. Na sublimação, podemos destacar aquele aspecto de deriva da pulsão, bem como certa relação e promoção do objeto pulsional. A teorização freudiana sempre fez questão de delimitar a sublimação como um desvio de uma pulsão de uma meta sexual a uma nãosexual. Do mesmo modo, não se afasta dessa noção de objeto da sublimação, elemento pelo qual ela é aproximada de uma idealização. Ora, a idealização não implica uma mudança de objeto e a sublimação seria um processo em que a pulsão, em sua plasticidade, jogaria um papel fundamental, permitindo a produção de algo mais além da mera idealização. Pensando nas diferenciações entre a idealização e a sublimação, em especial de um ponto de vista de uma direção ética, na primeira, teríamos uma conformação com os ideais e mandamentos, dando-se privilégio à dimensão do imaginário, ao passo que, na segunda, se ultrapassaria os ideais, esboçando-se a dimensão do real, mais além do imaginário. Revelar-se-ia e ocultar-se-ia o enigma para o qual o objeto, em sua faceta imaginária, nos aponta. De que se trata pois nesse movimento e como devemos situar melhor o objeto aqui? Lacan (1959-1960/ 1988) nos dirá que a sublimação é a elevação de um objeto à dignidade da Coisa - das Ding. Essa Coisa é o enigma que é desvelado e ocultado no movimento da sublimação. A Coisa pode muito bem ser remontada a essa dimensão do real na experiência psicanalítica; real que é o que sempre escapa e o que não cessa de não se escrever. Na obra freudiana, esse real pode ser remontado uma não-relação entre os sexos e ao rochedo da castração, para o qual todo final de análise conduz. É essa Coisa que orienta o desejo humano, o que determina sua indestrutibilidade, já que a principal característica de das Ding é ser inassimilável. Essa Coisa é o que se situa além da representação, ao mesmo tempo em que se faz representar por uma coisa. Ou seja, a Coisa remete a um mais além.

Temos igualmente uma dimensão de vazio nessa Coisa, meramente pelo fato de ela não poder ser representada por outra coisa - ou, mais exatamente, de ela não poder ser representada senão por outra coisa (LACAN, 1959-60/1988, p.162). É em referência ao campo da Coisa - campo em que tudo é posto em questão, ponto de impossibilidade do real - que a sublimação será possível, como uma criação significante a partir de um ex-nihilo. No movimento sublimatório, evidencia-se, pois, o caráter extimo (exterior e íntimo) e paradoxal da Coisa. De uma forma freudiana, poderíamos dizer que, nesse movimento, o estranho e familiar se conjugam no objeto de arte, constituindo o belo um modo de se deparar com o horror da Coisa. O exemplo de uma certa arte feita com caixas de fósforos por um amigo de Lacan, Jacques Prèvert, nos assinala esta dimensão da Coisa e o que ela tem a ver com a sublimação. A arte de que se trata era feita por um dado arranjo das caixas de fósforos, cujas gavetas eram ligeiramente deslocadas e encaixadas uma nas outras, contornando a lareira e paredes da casa de Prèvert. Lacan (1959-1960/1988) destaca que o caráter totalmente gratuito, supérfluo e proliferante, para não dizer absurdo, dessa coleção se dava justamente pelo fato de se fazer intervir no lugar da Coisa, imponentemente, uma caixa de fósforos. Um caixa de fósforo elevada à dignidade da Coisa. É assim que o vacúolo da Coisa é destacado no movimento sublimatório. Se pensarmos a extensão - sejamos cautelosos quanto às armadilhas dessa palavra - disso na cultura, por exemplo, podemos entrever esse vazio naquelas que são listadas por Lacan (1959-1960/1988) como termos da sublimação - a religião, a ciência e a arte. Em todos, o vazio se faz determinante. Todos são um modo de organização frente ao vazio da Coisa. Frente a essa dimensão real, diversas coordenadas éticas podem ser propostas, conforme se busque evitar este impossível ou conforme se pode representá-lo.

Um paradigma da sublimação, isto é, algo que serve como modelo para entendermos o movimento da sublimação listado na obra lacaniana é o amor cortês. Caracterizado por uma reverência a uma Dama, tida como inacessível, o amor cortês marca-se por um movimento em que uma mulher é elevada à dignidade de A mulher, de Coisa. Em efeito, há nessa modalidade estética, poética, que predominou na Idade Média, uma discrepância entre a efetiva posição da mulher na sociedade medieval e o sítio que ela ocupava na literatura cortês, bem como uma indefinição da Dama, marcada por algo inassimilável, ainda que é a uma dama específica que o trovador dirige sua atividade. Isso nos faz pensar em uma criação ex-nihilo implicada no processo de sublimação, o que torna possível uma invenção a partir do impossível, que não o rejeite. É um modo de se "escrever o impossível", aquilo que não cessa de não se escrever. Para além das regras corteses, o amor determina algo que ultrapassa o imaginário, algo que contorna o objeto feminino - inatingível, mas presente. Um amor que implica um constante movimento e rodeio. Do ponto de vista clínico, a sublimação nos assinala algo que se põe na direção do tratamento analítico. Algo que está além do ideal e não se pauta por normas. Pode-se falar de princípios que orientam uma cura, mas não de padrões. Eis, então, posicionamentos éticos distintos que implicam direções clínicas e políticas públicas de saúde também distintas. O que o conceito de sublimação permite-nos pensar nesses casos? Trata-se de normas ou algo que se situa além das normas, ainda que não se prescinda delas? Terminemos com uma pontuação freudiana: Uma certa inércia psíquica, uma indolência da libido, que não está disposta a abandonar suas fixações, não podem ser olhadas com bons olhos; a capacidade do paciente de sublimar seus instintos desempenha um grande papel e assim também a sua capacidade de elevar-se acima da vida grosseira dos instintos, bem como, ainda, o relativo poder de suas funções intelectuais (FREUD, 1938/ 1974, p.209). Finalmente, gostaríamos de estabelecer um questionamento que deve iluminar todo

este texto. Trata-se de um apontamento de Michel Silvestre (1981). Esse autor nos afirma que sublimação é um conceito que se presta a uma confusão com o campo moral, podendo ser assim considerada um dom para poucos, uma virtude. Mas não deve a moral ser distinguida da ética? A sublimação na obra freudiana não é afastada de uma filosofia de valores? A valorização social dos efeitos sublimatórios é o elemento primordial ou o seria o desvio pulsional ali implicado? Elevar uma caixa de fósforos à dignidade da Coisa não é da ordem de uma sublimação? Que diferença entre a adaptação, que prega a norma, e a sublimação, pautada em um movimento, em mais além do ideal? BIBLIOGRAFIA FREUD, Sigmund. (1915). A pulsão e suas vicissitudes. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1974. (1938). Esboço de psicanálise. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1974. GARCÍA- ROSA, A. L. Introdução à metapsicologia freudiana. Sobre as afasias. O projeto de 1895. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1991. LACAN, J. (1959-1960). O seminário, livro 7. A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988. LAPLANCHE, J. Vocabulário de Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1992. SILVESTRE, M. A questão da sublimação. Maisum, n.4, CFRJ, 1981.