POSIÇÕES DISCURSIVAS DO SUJEITO-ALUNO EM PRÁTICAS DE TEXTUALIZAÇÃO NO Resumo ENSINO SUPERIOR Maria de Lourdes Fernandes Cauduro Faculdade de Educação - UFRGS A pesquisa versa sobre textos escritos produzidos em uma disciplina denominada Laboratório de Escrita, que ministrei no Ensino Superior. O corpus do estudo é constituído por textos de alunos escritos durante o período de dois anos de trabalho nessa disciplina, cuja característica é trabalhar com a língua em uso, em práticas de leitura e de produção de textos. Face às dificuldades de domínio da língua materna na modalidade escrita que apresentam os alunos, a disciplina integra os curricula de cursos de graduação, e concebe o uso da língua enquanto discurso, efeito de sentidos entre sujeitos social e historicamente situados. Tomando como marca lingüística a ironia (Maingueneau, 1993,2002), a análise realizada dá visibilidade a diferentes posições-sujeito, identificadas a saberes específicos do interdiscurso, apontando para posições discursivas não homogêneas, assumidas pelo sujeito-aluno, suas identificações. A análise permite distinguir duas posições - sujeito, que correspondem a formações discursivas diversas: uma que reconhece o cientista como gênio, outra que o concebe como louco, permitindo a interpretação de efeitos de sentido de diferentes posições discursivas que o aluno assume em práticas de textualização. Entendo práticas de textualização conforme Pêcheux (1995), segundo o qual não há um sujeito, mas sujeitos de diferentes práticas (p.218), o que supõe um efeito- sujeito um sujeito afetado pela ideologia, atravessado por diferentes posições de sujeito, que correspondem a diversas formações discursivas. O estudo tem como aporte teórico central os trabalhos de Pêcheux (1990, 1993, 1994,1995), Orlandi (1987, 1990, 1995, 1996, 2001). Apóia-se nos trabalhos de Coracini (, 2003), Maldidier (2003) e Maingueneau (1993,2002). Palavras chave: sujeito- discurso- posições discursivas- interdiscurso-identificações Introdução O presente estudo, que tematiza as diferentes posições que o sujeito autor assume no discurso, analisa textos de alunos escritos em uma disciplina intitulada Laboratório de Escrita, ministrada em um curso de ciências exatas, no Ensino Superior. Para esta investigação, foi constituído um arquivo, do qual faço um recorte para realizar a reflexão. A pesquisa tem como aporte teórico central os trabalhos de Michel Pêcheux (1990, 1993, 1994, 1995), Orlandi (1986, 1987, 1990, 1995, 1996, 2002). Apóia-se nos estudos de Maingueneau (1993, 2003) e Coracini (2003). Escolhi a ironia como marca discursiva, por esta dar visibilidade à posição - sujeito e ao gesto de interpretação, na medida em que permite visibilizar as contradições, as ambigüidades que atravessam o sujeito, sua não unidade, seu atravessamento por diferentes discursos. Entendo essas contradições como manifestações de diferentes posições-sujeito, identificadas a saberes específicos do interdiscurso, que apontam para as posições discursivas assumidas pelo sujeito-aluno, suas identificações. A ironia pode ser reconhecida através do uso de aspas, de exclamações e através da análise do contexto social e histórico em que a enunciação se dá (MAINGUENEAU, 1993). No presente estudo, essas marcas serão associadas ao contexto em que ocorreu a prática de textualização. Esses textos foram escritos após os alunos terem
assistido e discutido o texto audiovisual Uma Mente Brilhante. O filme baseia-se na biografia de John Nash, cientista e matemático famoso. A ironia como marca discursiva ironia Maingueneau (1993) não relaciona a marca da ironia a uma determinada marca lingüística. Afirma que a subverte a fronteira entre o que é assumido e o que não é assumido pelo locutor (...). Diferentemente da negação, que rejeita um enunciado, utilizando um operador explícito, a ironia possui a propriedade de poder rejeitar (sentidos), sem passar por um operador desta natureza (p.98). Além da característica acima descrita, a ironia, diferentemente de outras marcas lingüísticas, não tem um operador explícito, como a negação. Afirma, ainda, o autor que outra propriedade desta marca discursiva é rejeitar o sentido do enunciador; sendo sua característica básica produzir ambigüidade, o que a torna uma marca sutil. O uso da ironia permite ao locutor escapar às normas de coerência que toda argumentação impõe. Além disso, no dizer de Maingueneau, com o uso da ironia o enunciador subverte a sua própria enunciação (MAINGUENEAU 2002, p.175). Afirma Orlandi (1986), que os enunciados irônicos manifestam diferentes posições-sujeito, identificadas a saberes específicos do interdiscurso, apontando para a posição discursiva assumida pelo falante. A ambigüidade, que caracteriza a ironia, torna opaco o efeito de sentido produzido. O sujeito, deste ponto de vista teórico, perde a sua centralidade e a sua soberania: produz o seu discurso a partir de determinadas posições. Isso significa que não há um sujeito centro, fonte do dizer, pois o sentido se constitui nas formações discursivas, o que torna o sujeito um efeito da linguagem - ele não é o centro, a origem do dizer, embora tenha essa ilusão. A interpelação do sujeito, designada pela formulação de Pêcheux (1995) como esquecimentos nº1 e o esquecimento nº. 2, aponta para o fato de que o sujeito não está na origem do dizer, embora tenha essa ilusão. O sujeito do discurso é descentrado, sendo afetado pelo real da língua e pelo real da história, não tendo controle sobre o modo com que é afetado. A prática de textualização supõe a noção de sujeito, exposta acima. A noção de textualização difere do processo de produção de texto. Este supõe uma atividade do sujeito em direção ao conhecimento. Há, pois, uma diferença substancial entre essas duas práticas: a noção de textualização assume a formulação de sujeito como efeito da língua e do discurso, não entende o sujeito como uno, centrado, que se apropria do conhecimento, há apenas os de diferentes práticas (PÊCHEUX,1995 p.218). Isso significa que a cada prática de escrita, o sujeito-autor, por não ter unidade, assume posições diferentes e até contraditórias, representando-se diferentemente em cada texto que produz. As práticas de textualização, por se referirem aos efeitos do interdiscurso, à memória discursiva, por dizerem respeito a filiações a redes de memória e de sentidos, são entendidas como práticas sociais, determinadas por um processo histórico, no qual o sujeito se inscreve. Não se tratam de aprendizagens por interação, mas remetem a um processo mais complexo, determinado pela memória-inscrição (PÊCHEUX, 1990).
A seguir, destaco duas formulações, retiradas de um texto de aluno, para análise. As formulações dos alunos são transcritas tais como aparecem no texto original: F1. Uma Mente Brilhante trata da trajetória de vida de John Nash, um fantástico matemático e pesquisador tão genial quanto perturbado. F2. Nash começa a lecionar matemática para uma turma na faculdade, mas acredita que seja uma perda de tempo dele e dos alunos. A designação lecionar que o autor coloca entre aspas, torna ambíguo o enunciado, o que não permite ao leitor concluir sobre a posição sujeito que assume o autor. A seguir, porém, o sujeito-autor acredita que ato de lecionar seja uma perda de tempo dele e dos alunos, afirmação que dá visibilidade à sua contradição, que percorre todo o texto: John Nash é uma mente brilhante, ao mesmo tempo em que é genial, é perturbado, é uma mente doente. O uso de palavras apreciativas como genial e perturbado dá visibilidade à hesitação do autor entre considerar Nash uma mente brilhante ou uma mente perturbada. A meu ver, estão em jogo, no uso das aspas, duas posições-sujeito: a posição-sujeito que reconhece John Nash como uma mente brilhante, identificando-se à memória discursiva representada pelo enunciador, que intitula a biografia de Nash Uma Mente Brilhante, e a posição-sujeito-aluno que hesita em assumir o sentido de que todo gênio é louco, o que implica a filiação a uma outra memória discursiva. A reflexão sobre o tema, e a rejeição do sentido expresso pelo enunciador, através da contradição do sujeito, dá visibilidade à sua constituição heterogênea. A seguir, analiso a formulação 3, que se refere a John Nash, retirada do mesmo texto: F3. Não tem grandes amizades ou amores, vive em um mundo à parte das relações pessoais, mal consegue pensar em outro assunto que não seja a Matemática. Ao enunciar que vive em um mundo à parte das relações pessoais, assume o sujeito-autor o sentido que relações pessoais e ciência são dois mundos distintos, cuja impossibilidade de conciliar é traduzida pela designação mal. No dizer do autor, dedicar-se à ciência é incompatível com relacionamentos pessoais. O uso da palavra mal na formulação acima, produz um sentido que representa uma crítica à forma de vida de John Nash, o que é ratificado pelos enunciados. No enunciado a seguir, enfatiza essa idéia, ao afirmar que uma aluna se apaixona pelo personagem e aos poucos consegue humanizar um pouco o matemático. Assume, pois, o autor, o sentido de que relações pessoais humanizam e a ciência desumaniza, identificando-se com o interdiscurso, com certa memória discursiva, segundo a qual a ciência, a matemática desumanizam, enquanto as relações pessoais humanizam. A formulação de que todo gênio é louco parece fazer parte dessa mesma memória discursiva. O trabalho com a linguagem, nesta disciplina, visa, principalmente, à produção de sentidos. Se como afirma Orlandi (2002), filiando-se a Pêcheux, que ao significar o sujeito se significa (p.205), ou o sujeito se produz produzindo sentido (1996, p.57), o trabalho desta disciplina oportuniza aos alunos a imersão em textos de diferentes gêneros, cujo objetivo é a interpretação, a produção de sentidos. É entendimento desta proposta, que não há um sentido literal, dominante (este é o sentido fixado pela autoridade do professor ou por outra forma de poder), mas que os sentidos são produzidos em um movimento de filiação a redes de memórias e de sentidos. São interpretações,
o que situa esta perspectiva da análise de discursos com base nos trabalhos de Pêcheux, numa perspectiva epistemológica histórica. Entende-se o dizer como sendo aberto, sendo todo enunciado um ponto de deriva, oferecendo lugar à interpretação (PÊCHEUX,1990,p.53), o que é condição do movimento dos sentidos e dos sujeitos. O texto, neste quadro teórico, é entendido como um bólido de sentidos, que parte em inúmeras direções (ORLANDI, 1996, p.16), a partir do qual outros sentidos são criados. Além disso, as formulações de Orlandi derivam da obra de Pêcheux (1990), segundo a qual o sentido não está em lugar nenhum, mas é produzido nas relações dos sujeitos e dos sentidos. Há uma constituição mútua entre sujeitos e sentido, no jogo das múltiplas formações discursivas, o que escapa ao controle consciente e intencional, processo no qual o sujeito está à deriva da memória e da história, pois toda interpretação representa uma filiação ao interdiscurso. Assim, os mecanismos de produção de sentidos são os mesmos mecanismos de produção dos sujeitos (ORLANDI, 1995,2002,p.205). O gesto de interpretação, que constituía o gesto fundamental das práticas de leitura e escrita, realizadas no Laboratório de Escrita, oportuniza a constituição da subjetividade, na medida em que propicia a produção contínua de sentidos, reflexão como a proposta através do texto audiovisual Uma Mente Brilhante. Além disso, em seu discurso escrito, o sujeito-aluno subverte a própria enunciação: mesmo que intitule seu texto Uma Mente Brilhante, alguns dos efeitos de sentido que produz não definem o personagem como uma mente brilhante. A seguir, destaco outra formulação do mesmo texto, que também se refere ao personagem principal: F4 No final do filme alcança seu objetivo com louvor é reconhecido por toda a comunidade científica de Princeton e do mundo por sua teoria desenvolvida durante a faculdade. Sendo a unidade um efeito discursivo, o enunciado acima revela um sujeito dividido, efeito do interdiscurso, processo afetado pela história e a memória, tornando-se impossível compreender a identidade do sujeito como una, fixa ou definida; esta é cindida, dispersa, heterogênea, o que leva autores como que se filiam a esse ponto de vista teórico a preferir a designação identificação, uma vez que a noção de identidade carrega a idéia de um sujeito uno e homogêneo, estranho ao campo discursivo com o qual estamos trabalhando. Na seqüência discursiva a seguir, o sujeito-aluno, ao produzir um fechamento para o texto, exerce a função autor (ORLANDI, 1990). Além disso, a exemplo do enunciado acima analisado, realiza o fechamento do texto com o reconhecimento do mérito do personagem do filme: Nash, ao final do filme alcança seu objetivo com louvor, sendo reconhecido por toda a comunidade científica de Princeton e do mundo, por sua teoria desenvolvida durante a faculdade. No estudo que faz sobre a autoria, Orlandi (1990) atribui as funções enunciativas do sujeito (locutor, enunciador) à função que o eu assume enquanto produtor de linguagem. Isso significa que a função-autor se instaura na medida em que o produtor de linguagem assume a origem daquilo que diz, tendo a ilusão de unidade, de coerência, de não-contradição, tornando-se responsável pelo fechamento do texto. Em resumo, o autor é o sujeito que tendo domínio de certos mecanismos discursivos, representa, pela linguagem, esse papel, na ordem social em que está inserido (...) representar como autor é assumir, diante da instituição escolar e fora dela esse papel social, na sua relação com a linguagem: constituir-se e mostrar-se autor (p.79). Nesta perspectiva, a função - autor realiza-se toda vez que o produtor da linguagem se representa na
origem, produzindo um texto com unidade, progressão, não contradição e fim (Orlandi, 1990, p.69), sendo cobrado e devendo responder pelo que diz e escreve, pois se supõe que esteja na origem do dizer. Embora o autor se constitua pela repetição, esta é parte da história, inscrevendo o seu dizer em uma história de formulações. Embora não instaure discursividade (como propõe Foucault, 1992), o autor produz um lugar de interpretação ao inscrever sua formulação no interdiscurso, historicizando-o. Tomando como base o pensamento de Pêcheux (1990,1993), a repetição histórica diz respeito à inscrição do dizer em uma memória (rede de filiações) discursiva, que faz a língua significar. A autoria identifica-se à memória histórica, constituindo um gesto de interpretação, implicando a filiação a uma matriz discursiva que se torna dominante, e com a qual o sujeito se identifica. Considerações Finais Este artigo faz um recorte na minha tese de doutorado, que estuda o discurso pedagógico, investigando o ensino da escrita e os efeitos desse ensino na constituição da subjetividade do aluno. Como toda autoria enquanto manifestação da posição - autor supõe um fechamento, realizo este fechamento com uma reflexão final: as hesitações do sujeito-autor, suas formulações parecem dar visibilidade a um movimento segundo o qual este sujeito está em processo de constituição de sua subjetividade. Ao hesitar assumir uma ou outra memória discursiva, o sujeito do discurso permite que se visibilize seu descentramento, sua não-unidade, sua dispersão, sua heterogeneidade discursiva. Entendo que a identidade é processo, está sempre em movimento, o que me leva a concordar com os autores que consideram a identidade como processo não acabado. O sujeito, então, aparece em toda a sua dispersão, como o lugar em que se entrecruzam e se confundem vozes emaranhadas, provenientes de inúmeras regiões do discurso (CORACINI, 2003, p.15). O reconhecimento da dispersão do sujeito (expressão de Orlandi e Guimarães 1990), a meu ver, implica em considerar a escrita como uma prática extremamente complexa, pois todo texto deve ter um efeito de unidade, de transparência, de completude. É necessário, pois, a nós, professores, que entendamos as práticas de escrita, em qualquer nível de escolarização, como práticas de subjetivação, oportunizando ao sujeito-aluno não só a compreensão das diferentes posições que assume no discurso, mas principalmente sua identificação-filiação a uma determinada memória discursiva. REFERÊNCIAS CORACINI, M.J. Subjetividade e Identidade do (a) Professor (a) de Português. In: (Org) Identidade e Discurso. Campinas: Argos, 2003a. Língua Estrangeira e Língua Materna: uma questão de sujeito e de identidade. In: CORACINI (ORG). Identidade e Discurso. Campinas, Argos, 2003 b. FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa, Ed. Vega. 1992.
MAINGUENEAU, Dominique. Novas Tendências em Análise do Discurso. Campinas: Pontes, 1993.. Análise de Textos de Comunicação. São Paulo: Cortez, 2002. MALDIDIER, D. A Inquietação do Discurso. Campinas: Pontes, 2003. ORLANDI, E. A Linguagem e seu funcionamento: as formas de discurso. Campinas: Pontes, 1987. ORLANDI e GUIMARÃES Unidade e Dispersão: uma Questão do Texto e do Sujeito. In: Discurso e Leitura. São Paulo: Editora da Unicamp, 1990.. Texto e Discurso. In: Organon 23. Revista do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.. Interpretação, Autoria e Efeitos do Trabalho Simbólico. São Paulo: Ed. Cortez, 1996.. Identidade Lingüística Escolar. In: Signorini (Org.) Linguagem e Identidade: São Paulo: Mercado das Letras, 2002. PÊCHEUX, M. O Discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas: Pontes, 1990.. Análise Automática do Discurso (AAD 69). In: Gadet; Hak (Orgs). Por Uma Análise Automática do Discurso. Campinas: Ed. da Unicamp, 1993.. A Análise do Discurso: três épocas. In: F.Gadet; T.Hak (Orgs.). Campinas: Ed. Unicamp, 1993.. Ler o Arquivo Hoje. In: ORLANDI, E. (Org). Gestos de Leitura. Campinas: Ed. Unicamp, 1994.. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas, ed. da Unicamp, 1995. PÊCHEUX; FUCHS, C. A Propósito da Análise Automática do Discurso: atualização e perspectivas. In: F.Gadet; T.Hak (Orgs.) Por uma Análise Automática do Discurso. Campinas: Ed.da Unicamp, 1993. Uma Mente Brilhante. Direção: Don Howard, roteiro A. Goldsmann, baseado em livro de S. Nasar. 90 min.