OS REGISTROS DE ÓBITOS DA SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DO RIO DE JANEIRO, 1835-1849.



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Anpuh Rio de Janeiro Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro APERJ Praia de Botafogo, 480 2º andar - Rio de Janeiro RJ CEP 22250-040 Tel.: (21) 9317-5380 OS REGISTROS DE ÓBITOS DA SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DO RIO DE JANEIRO, 1835-1849. Jorge Prata de SOUSA Universidade Salgado de Oliveira, Niterói. Introdução Este trabalho integra um projeto cujo objetivo principal é estudar as condições de vida e as possibilidades de reprodução da mão-de-obra livre e cativa da cidade do Rio de Janeiro, durante o século XIX. Parte desse esforço volta-se para o levantamento dos registros sobre óbitos da população da cidade do Rio de Janeiro. A análise abrange os registros de óbitos produzidos pela Santa Casa de Misericórdia entre os períodos de 1835-1849 onde encontramos dados parcialmente organizados para todas as ocorrências de óbitos da cidade do Rio de Janeiro. Utilizaremos o levantamento realizado pela professora Maria Eulália Lahmeyer Lobo, cuja abrangência consistiu em levantar o registro de óbitos ocorridos em todas as freguesias urbanas e rurais da cidade do Rio de Janeiro. (LOBO, 1978, pág.142.). Cotejar os totais de óbitos da cidade do Rio de Janeiro provenientes de fontes distintas possibilita inicialmente, contrastar fontes manuscritas com as fontes oficiais impressas e a leitura crítica desses registros nos oferece um painel das doenças da população do século XIX, sua letalidade, morbidade e mortalidade. Período: 1835-1849. Uma análise dos registros de óbitos indica uma supremacia das freguesias urbanas em casos de falecimentos. Supremacia facilmente explicada pela densidade demográfica concentrada nessas freguesias. Dentre os totais de óbitos das freguesias urbanas, os registros da Santa Casa representam 52% do total das ocorrências, o que faz dos registros da Santa Casa um corpo documental privilegiado para a pesquisa das condições de vida da população. Este texto faz parte de uma investigação mais ampla publicado com o título Anotação a respeito de uma fonte: os registros de óbitos da santa Casa de misericórdia do Rio de Janeiro Caderno Saúde Coletiva, UFRJ/NESC, v.xi, n 1 jan.- jun., p.33-58, 2003.

Usos do Passado XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 2 A densidade populacional das freguesias urbanas nos remete a uma infra-estrutura material básica necessária ao atendimento das necessidades mínimas de um contingente populacional: escoamento de mercadorias, abastecimento de água potável, fiscalização da qualidade dos alimentos consumidos, destino de dejetos, etc. Esses condicionamentos embora possam não estar diretamente relacionados à etiologia das enfermidades, às causas de morte, conjuntamente conformam o universo das condições sanitárias e higiênicas da urbe. Até que ponto as condições sanitárias e higiênicas interferem nos índices de morte em um dado período e em que medida define as condições e/ou motivos dos falecimentos? Poderíamos sintetizar esta questão em uma hipótese genérica, tendo como parâmetro às condições sanitárias e higiênicas como fatores determinantes dos índices de mortalidade e, sobretudo, do perfil da morbidade. Na dificuldade de organizar variáveis explicativas de natureza higiênica e sanitária que expliquem os índices de mortalidade e morbidade, a opção metodológica possível é dimensionar quantitativamente os óbitos ocorridos na cidade do Rio de Janeiro durante o século XIX como uma das maneiras de se aproximar ao universo higiênico e sanitário da urbe. Essa hipótese orienta esta breve leitura das fontes sobre óbitos produzidas pelo ministério do Império, pela Santa Casa de Misericórdia e pela bibliografia conhecida. Vejamos comparativamente, os totais de óbitos da cidade do Rio de Janeiro e os totais ocorridos sob a responsabilidade da Santa Casa. Quadro 1 - Total de óbitos registrados na cidade do Rio de Janeiro e os registrados na Santa Casa de Misericórdia. Ano Óbitos do Rio de Janeiro Óbitos da S.C.M. % de óbitos S.C.M. 1835 6.611 2.969 44.9 1836 7.171 3.102 43.2 1837 7.340 3.259 44.4 1838 7.506 3.417 45.5 1839 7.187 3.185 44.3 1840 6.760 2.909 42.9 1841 7.902 3.678 46.6 1842 7.294 3.279 44.9 1843 7.952 3.347 42.0 1844 7.359 3.040 41.3 1845 6.763 2.736 41.0 1846 7.478 3.054 40.8 1847 8.608 3.598 41.8 1848 9.056 4.102 45.2 1849 8.890 4.587 51.5 Totais 113.887 50.262 44,1 Fonte: LOBO, 1978, págs. 142,145 (Tabelas 2.10 e 2.12) págs. 401 (tabela 3.96) págs. 437 (tabelas 3.134). Os valores dos anos de 1837 e 1844 correspondem à média dos anos anteriores e posteriores. Em uma leitura simplificada dos dados apresentados pelo ministério do Império e entre os totais de óbitos registrados pela Misericórdia, estes representam uma porcentagem que justifica uma análise

Usos do Passado XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 3 mais acurada desse corpus documental. Em nenhum dos anos observados o número de enterramentos sob a administração da Santa Casa de Misericórdia deixou de representar menos de 41%, observandose uma média de 44% dos registros ocorridos para todo o período. O restante dos óbitos está dividido nas diversas paróquias da cidade e foram enterrados nos campos santos de suas capelas ou nos poucos cemitérios particulares existentes na cidade. Se, por um lado, o alto índice de óbitos registrados pela administração da Santa Casa representa sua participação no total de óbitos da cidade, representa também, a sua presença no controle da política de enterramento. Sabe-se que nem todos os óbitos registrados pela Santa Casa foram casos de falecimentos ocorridos em suas enfermarias. A Santa Casa recebia defuntos que faleceram em suas residências ou vindos de enfermarias particulares. Enfim, os registros no quadro acima expressam o total de óbitos das várias unidades médicas da cidade e, do ponto de vista de uma política pública, expressam o controle político da Santa Casa sobre os enterramentos na cidade do Rio de Janeiro. Acompanhando o número de óbitos registrados pela Santa Casa, observa-se que seu desenvolvimento acompanha o fluxo de entradas de escravos no porto da cidade do Rio de Janeiro. O incremento do tráfico negreiro depois dos anos trinta dispôs ao mercado novas peças, facilitando aos senhores escravocratas a renovação de seus escravos já envelhecidos por novos escravos recémchegados. O tráfico negreiro não interfere somente no cômputo geral da população escrava no meio urbano, mas influi na disponibilidade de tratamento aos escravos envelhecidos. Quadro 2: Óbitos de escravos e de livres ocorridos na cidade do Rio de Janeiro e totais de registros de óbitos de livres e escravos ocorridos na Santa Casa de Misericórdia, 1840-1849. Ano Óbitos de esc. na cidade do Rio de Janeiro. Óbitos de esc. Sta. Casa. % de óbitos de escravos S.C.M. Óbitos de livres no Rio de Janeiro. Óbitos de livres da Sta. Casa. 1840 3.257 1.557 47.8 3.503 1.352 38.5 1841 3.664 1.846 50.3 4.238 1.832 43.2 1842 3.301 1.656 50.1 3.993 1.623 40.6 1843 3.435 1.646 47.9 4.517 1.701 37.6 1844 3.208 1.489 46.4 4.150 1.551 37.3 1845 2.982 1.333 44.7 3.781 1.403 37.1 1846 3.377 1.569 46.4 4.101 1.485 36.2 1847 3.948 2.050 51.9 4.660 1.548 33.2 1848 4.542 2.489 54.7 4.514 1.613 35.7 1849 3.885 2.184 56.2 5.005 2.403 48.0 Fonte: Quadro 1. % de óbitos livres na S.C.M.

Usos do Passado XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 4 A Santa Casa de Misericórdia não só recebia os escravos estropiados, abandonados por seus donos, mas recebia também os escravos recém-chegados. O sarampo, a varíola, as febres, a disenteria, a hepatite, a anemia, escorbuto e oftalmia eram doenças recorrentes nos registros de entrada entre os escravos recolhidos no Hospital da Santa Casa. (CONRAD, 1986, p.25) Os números não mostram toda a realidade vivida pelos escravos antes de falecerem nas enfermarias da Santa Casa de Misericórdia. Observando a média de registros de óbitos de escravos (49,6%), a máxima (51,9%) e a mínima (44,7%), vê-se a importância dos registros daquela instituição. Os óbitos de livres nos registros da Santa Casa quando comparados aos totais da cidade do Rio de Janeiro suscitam uma pergunta: por que a média de óbitos livres registrados pela Misericórdia não ultrapassa 38% dos casos ocorridos em toda a cidade? Os homens e mulheres livres tinham outras escolhas, é o que parece; podiam decidir seus enterramentos a partir do santo de sua devoção e encomendar, por antecipação, o enterramento na paróquia de sua escolha. Levando em conta que a fé cristã alimentava o desejo de ser enterrado próximo aos seus santos protetores é compreensível que os livres ricos ou pobres fizessem um esforço por garantir sua tumba no adro da igreja devota de seus santos e não ser enterrado em espaço público como ocorria aos defuntos escravos. escravos. Apurando os dados disponíveis, pode-se averiguar qual foi a freqüência entre óbitos de livres e Quadro 3 - Óbitos de pessoas livres e escravas registrados na Santa Casa de Misericórdia. 1835-1849. Fonte: Idem do quadro 1. Ano Óbitos da S.C.M. Livre %livres escravos %escravos 1835 2.969 1.461 49 1.508 51 1836 3.102 1.385 45 1.717 55 1837 3.259 1.373 42 1.886 58 1838 3.417 1.362 40 2.055 60 1839 3.185 1.387 43 1.798 57 1840 2.909 1.352 46 1.557 54 1841 3.678 1.832 50 1.846 50 1842 3.279 1.623 49 1.656 51 1843 3.347 1.701 51 1.646 49 1844 3.040 1.551 51 1.489 49 1845 2.736 1.403 51 1.333 49 1846 3.054 1.485 49 1.569 51 1847 3.598 1.548 43 2.050 57 1848 4.102 1.613 39 2.489 61 1849 4.587 2.403 52 2.184 48 Analisando somente os registros da Santa Casa de Misericórdia, segundo a condição jurídica, nos dez anos consecutivos (1835-49) o índice de óbitos de escravos correspondeu a uma média de 53% dos casos.

Usos do Passado XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 5 Além da média de óbitos (53%) os registros mostram a participação majoritária de escravos nos quinze anos consecutivos, em onze deles o número de óbitos de escravos supera os de livres. Nota-se que o total de óbitos registrados pela Santa Casa não aumenta proporcionalmente ao número de óbitos de escravos. Essa não proporcionalidade, uma vez mais, comprova a importância dos óbitos registrados na Santa Casa: eles refletem o contingente pobre da população da cidade do Rio de Janeiro. Pelos registros, pode-se detectar a porcentagem de óbitos provenientes das enfermarias da Santa Casa. Em 1840 e 1841, há um decréscimo de óbitos provenientes das enfermarias da Santa Casa. Para o ano de 1840 em um total de 2.909 óbitos registrados, 67% desse contingente veio de fora. Em 1841, de um total de 3.678 óbitos sabemos que 40% desse total foram óbitos de escravos de igual procedência. 2 A alta representatividade de óbitos não provenientes das enfermarias e hospitais administrados pela Santa Casa pode indicar um aumento de mortalidade entre a população escrava no início daquela década. Uma vez que, entre os anos 1840 a 1845 a média anual de negros importados foi de 23.000 escravos/ano; em 1846 chegou a 50.324 escravos, mais que o dobro da média anual dos cinco anos anteriores; em 1847 elevou-se a 56.172 escravos e em 1848 chegou a 60.000 negros recém-chegados da África. (SODRÉ, 1938, pág.53 e 146.) 3 Refinando os dados registrados pela Santa Casa, pode-se ainda saber quais registros de enterramento procedem de suas enfermarias e quais não. Desta maneira, analisando somente as ocorrências de falecimento dentro das enfermarias da Santa Casa, pode-se então perceber a representatividade dos óbitos ocorridos sob as expensas de suas enfermarias. Quadro 4 - Óbitos registrados e ocorridos na Santa Casa de Misericórdia, 1836-1845. Ano Registrados na S.C.M. Ocorridos na S.C.M. % de óbitos ocorridos 1836 3.102 955 31 1837 3.259 998 30 1838 3.417 891 26 1839 3.185 1063 33 1840 2.909 952 33 1841 3.678 1075 29 1842 3.279 1081 33 1843 3.347 1026 31 1844 3.040 1150 38 1845 2.736 1020 37 Fonte: Extrato da ata da sessão da Mesa e Junta da S.C.M da cidade do Rio de Janeiro, em 24 de agosto de 1845. Rio de Janeiro: Typ. Imp. E Const. De J. Villeneuve e Comp. AN:IS 3-3. Santa Casa de Misericórdia.Ofícios e documentos diversos, 1840-1849. 2 Biblioteca Nacional. Código II- 35.6.19 a 36. Mapa dos Corpos que se sepultarão no Campo Santo e nos jazigos da Santa Casa de Misericórdia, 1840 e 1841. 3 Veja BRASIL. Relatório da Secretaria de Estado do Ministério do Império. Escravos entrados nos portos nacionais entre 1842 a 1852, pág. 8.

Usos do Passado XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 6 Em 1839, dos 3.185 óbitos registrados na Santa Casa 2.122 vieram de enfermarias ou hospitais que não eram administrados pela instituição, o que representa 67% de falecidos registrados. Desses 2.122, 711 (33%) eram escravos. Para o ano de 1840 a porcentagem de falecidos provenientes de outras instituições se repete, são 67%. Em 1841 a Santa Casa recebeu 1.481 escravos para serem enterrados, representando 40,2% do total de óbitos registrados na Santa Casa naquele ano. 4 A alta representatividade de óbitos não provenientes das enfermarias e hospitais administrados pela Santa Casa indica um aumento de mortalidade entre a população escrava daquela década. Essa sinalização indicar um decréscimo das condições sanitárias da população escrava em função do elevado número de escravos aportados na década de quarenta. Observando o quadro n 4, constatamos que a maior participação de ocorrências de falecimentos no hospital da Santa Casa se deu nos anos de 1839, 1840 e 1842 com 33% dos óbitos. Para o biênio 1839-1840, os relatórios da Santa Casa são explícitos em registrar medidas de natureza higiênica para conter os índices de falecimentos em virtude do excesso do contingente de enfermos motivado pelo aumento geral da população citadina. Dentre as medidas propostas, destacava-se a criação de uma enfermaria especial para os tísicos, localizada fora do edifício do hospital. Medida tida como sendo de grande eficácia, pois diminuiria o contágio entre os enfermos. E a suspensão dos enterramentos no campo santo próximo ao hospital da Santa Casa, transferindo os enterramentos para o local conhecido como Ponta do Caju. Dessas duas medidas o secretário da Santa Casa destacava o maior benefício que tem recebido o Hospital como a transferência dos enterramentos para o cemitério da Ponta do Caju. Nesse mesmo período, a direção da Santa Casa preocupava-se cada vez mais com a precisão dos diagnósticos e, como conseqüência dessa medida, dividia os enfermos nas enfermarias segundo a natureza de suas doenças. Por exemplo, selecionava-se dentre os indigentes aqueles que realmente necessitavam de tratamento hospitalar entre os que apresentavam vício do alcoolismo e aqueles já em processo de demência. Esses últimos mereceram no ano de 1841, tratamento especial com a criação do Hospício de Pedro Segundo. 5 O biênio de 1844 e 1845 (quadro n 4) apresenta porcentagens de 38 e 37%, o que pode apontar para uma tendência de aumento de óbitos adultos ocorridos dentro das enfermarias da Santa Casa uma vez que, para aquele biênio, o número de óbitos de menores expostos caiu (quadro n 5). Dentre os dados disponíveis para óbitos ocorridos dentro do hospital e enfermarias da Santa Casa de Misericórdia, nem sempre é possível separar por faixa etária os falecimentos. Uma maneira disponível seria levantar o número de casos de expostos registrados pela Santa Casa. Por esse 4 Biblioteca Nacional. Código II- 35.6.19 a 36. Mapa dos Corpos que se sepultarão no Campo Santo e nos jazigos da Santa Casa de Misericórdia, 1840 e 1841. 5 AN: IS 3-3. Santa Casa de Misericórdia.Ofícios e documentos diversos, 1840-1849.Ata de criação do Hospício de Pedro Segundo, em 1841. Embora a urgência da medida, somente em 1852 o Hospício de Pedro Segundo entrou em funcionamento recebendo os primeiros doentes das faculdades mentais.

Usos do Passado XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 7 procedimento, poderemos então estimar dentre o total de falecimentos ocorridos nas dependências da Santa Casa, os casos pertinentes à faixa etária de menores de um ano. Quadro 5 Total de óbitos livres e escravos ocorridos no Hospital da Santa Casa e sua relação com óbitos de expostos, 1836-1845. Ano Ocorridos na S.C.M. Expostos da Sta. Casa. % de expostos 1836 955 192 20.1 1837 998 237 23.7 1 891 2 8 3 8 58 3. 3 1839 1063 259 24.3 1840 952 280 20.7 1841 1075 329 17.9 1842 1081 324 19.9 1843 1026 370 21.7 1844 1150 289 18.6 1845 1020 264 18.8 Fonte: AN: IS 3-3. Santa Casa de Misericórdia.Ofícios e documentos diversos, 1840-1849, IS 3-4. Santa Casa de Misericórdia.Ofícios e documentos diversos, 1850-1853, IS 3-5. Santa Casa de Misericórdia.Ofícios e documentos diversos, 1854-1857, IS 3-6. Santa Casa de Misericórdia.Ofícios e documentos diversos, 1858-1863, IS 3-9. Santa Casa de Misericórdia.Ofícios e documentos diversos, 1880-1884. Do total dos óbitos ocorridos na Santa Casa o contingente de menores de um ano de idade oscila entre 17% a 28% do total de registros ocorridos na instituição. Altos índices de mortalidade de crianças nas enfermarias da Santa Casa de Misericórdia são recorrentes durante toda a década de trinta e quarenta, a ponto de, em 1846 Hadock Lobo introduzir a

Usos do Passado XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 8 questão da mortalidade na infância como ponto para discussão na Academia de Medicina. A questão já era preocupante desde os anos vinte. 6 Os argumentos que tentavam explicar os índices de mortalidade de crianças versavam sobre a incidência das doenças transmissíveis, transgressões de regime alimentar e vicissitudes atmosféricas. 7 Sobre as doenças transmissíveis argumentava-se o fato de tantas crianças aglomeradas ser a causa dos índices de mortalidade e incidência de moléstias provenientes de anemia e carência alimentar. Sem especificar claramente a causa febre atóxica, adinâmica - a mortalidade dos expostos ficou à época conhecida como moléstia da casa. Dom Pedro I, em 1823, em uma de suas Falas do Trono afirmava espantado que das 12 mil crianças recolhidas à Roda dos Expostos desde a sua fundação (1738), somente mil crianças tinham vingado. (Morales de los Rios, 2000, pág.167). Observando o quadro abaixo, do total de crianças recolhidas na Casa dos Expostos, vimos que algumas eram abandonadas já mortas na Roda dos Expostos. A Casa dos Expostos recolhia os menores pobres escravos ou livres que não tinham como se manterem. Geralmente eram encaminhados por seus tutores que não queriam arcar com as despesas de sua criação, viúvos, e mães solteiras. Qualquer que fosse a motivação o fato de encaminhar menores de idade aos cuidados da Casa dos Expostos, os menores representavam um segmento pobre da população. Considerações finais. O princípio que orientou esse estudo foi estabelecer as principais referências existentes sobre os registros de óbitos na cidade do Rio de Janeiro. Três fontes foram de importância para nós. A referência bibliográfica de maior fôlego utilizada foi o levantamento realizado pelas professoras Maria Eulália L. Lôbo e Bárbara Levy; os registros oficiais provenientes do ministério do Império e o levantamento realizado por nós nos livros de óbitos sob o cuidado da Santa Casa de Misericórdia foram o esteio dessas breves reflexões. Priorizamos o cotejar dos dados seriais como primeiro passo para uma possível utilização desses registros para trabalhos futuros. Dessa aproximação entre registros provenientes de procedências diversas, sobressaiu a importância dos registros de óbitos produzidos pela Santa Casa de Misericórdia. 6 Em 1823 Moreira de Azevedo em visita à Casa dos Expostos dizia o seguinte ao tão ilustre interlocutor Pedro I: A primeira vez que fui à Roda dos Expostos achei, parece impossível, sete crianças com duas amas; nem berços, nem vestuários. Pedi o mapa, e vi que em treze anos tinham entrado perto de doze mil crianças, e apenas tinha vingado mil, não sabendo a Misericórdia verdadeiramente onde elas se achavam. (FAZENDA, 1903, pág.177). 7 AN: IS 3-4. Santa Casa de Misericórdia.Ofícios e documentos diversos, 1850-1853. Relatório dos hospitais, casa dos expostos, recolhimento dos órfãos e hospício de Pedro Segundo no ano compromissal de 1.7.1850 a 30.6.1851.

Usos do Passado XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 9 Sua importância se reveste de guia seguro, permitindo correções e preenchimento de lacunas nos dados quantitativos até então conhecidos. Bibliografia CONRAD, Robert Edgar. Tumbeiros. São Paulo: Brasiliense, 1986. FAZENDA, José Vieira. A Roda (Casa dos expostos). RIHGB, LXXV: 153-81, 1903. KARASCH, Mary. Slave life in Rio de Janeiro: 1808-1850. Tese de Ph.D. University of Wisconsin. Princeton: Princeton University Press, 1986. LALLEMANT, Roberto. Observações acerca da epidemia de febre amarela no ano de 1850 no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: J. Villeneuve & Cia. 1851. LINHARES, Maria Yedda Leite; LÉVY, Maria Bárbara. Aspectos da História demográfica e social do Rio de Janeiro, 1808-1889. Colloque Internationaux du C.N.R.S. n.543, L'Histoire Quantitative du Brésil de 1800 à 1930. LOBO, Eulália Maria Lahmeyer e LÉVY, Maria Bárbara. História do Rio de Janeiro: do capital comercial ao capital industrial e financeiro. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Mercados e Capitais, 2v, 1978.. População e estrutura fundiária no Rio de Janeiro, 1568-1920. São Paulo: Anais do IV Encontro da ABEP, vol.4, 1984. MACHADO, R; Loureiro, A; Luz, Rogério e Muricy Katia. Danação da norma: a medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978. MORALES DE LOS RIOS, A.M. O Rio de Janeiro Imperial. Rio de Janeiro: Editora a Noite, s/d. PEREIRA DO REGO, Barão de Iguape. História das epidemias da cidade do Rio de Janeiro. Real Academia de Medicina, s/d. SANTOS FILHO, Lycurgo. História Geral da Medicina no Brasil. São Paulo: Hucitec/Edusp, 1991, v.2.. SODRÉ, Alcindo. O elemento servil: a escravidão. Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro III Congresso de História Nacional. Tomo especial, v.4, 1938. p.53-146. TEIXEIRA, José Maria. Causas da Mortalidade das crianças no Rio de Janeiro. 1888. VENÂNCIO, Renato Pinto. Infância sem destino: o abandono de crianças no Rio de Janeiro do século XVIII. São Paulo: FFLCH, USP, 1988. Dissertação de mestrado.