MÃES DE ANJOS: COMPARTILHAMENTO DE EXPERIÊNCIAS DE MÃES DE CRIANÇAS COM MICROCEFALIA EM PÁGINA DO FACEBOOK

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Transcrição:

MÃES DE ANJOS: COMPARTILHAMENTO DE EXPERIÊNCIAS DE MÃES DE CRIANÇAS COM MICROCEFALIA EM PÁGINA DO FACEBOOK Vivian Tatiene Nunes Campos 1 Resumo: Em 2015 chegou ao conhecimento do país que além da dengue, outras duas doenças também seriam transmitidas pelo Aedes aegypti a Febre Chikungunya e o Zika vírus. Há uma especificidade do Zika que desperta o interesse para a análise comunicacional, que é a relação do vírus com a microcefalia. A descoberta de que o vírus poderia causar a microcefalia nos bebês nos leva a refletir e problematizar acerca da vulnerabilidade social das mulheres afetadas, que são, em sua maioria, nordestinas, jovens, pobres e negras. O Zika é transmitido por um mosquito que está presente em todo o território brasileiro, configurando um problema público de saúde, com potencial de atingir qualquer pessoa que more ou venha ao país e, especialmente, qualquer mulher que esteja grávida. Vale ressaltar que as doenças provocadas pelo Aedes estão inseridas no campo das doenças negligenciadas, ocasionando menor cobertura midiática e pouca atenção do poder público, o que provoca certo silenciamento. Como estratégia para enfrentar isso, as mães das crianças com microcefalia se apropriaram de redes sociais na internet para apresentar suas histórias, construindo narrativas próprias e sendo protagonistas do processo comunicativo em que estão implicadas. Assim, para este artigo, faremos uma análise de conteúdo em alguns posts da página no Facebook da UMA (União de Mães de Anjos-PE), evidenciando a maneira pela qual as mulheres dão a ver a questão dos direitos reprodutivos e, em especial, a temática do aborto. Palavras-chave: Comunicação e saúde; Interseccionalidade; Zika vírus. Introdução Em 2015, a população brasileira tomou conhecimento que além da dengue, doença epidêmica 2 com circulação em todo o país, outras duas doenças também seriam transmitidas pelo Aedes aegypti a Febre Chikungunya e o Zika vírus. Importante ressaltar que essas doenças se tornaram uma preocupação tanto para a saúde pública, em razão das consequências pessoais, humanas, sociais e econômicas que as patologias ocasionam; quanto para a comunicação social dos governos e instituições, isso porque para a prevenção de tais agravos é essencial que as populações tenham acesso às informações e se sintam sensibilizadas pelo problema de saúde pública a ponto de se mobilizarem para executar medidas que contenham a proliferação do Aedes; como fazer a limpeza dos quintais, evitar água parada e não jogar lixo em locais inadequados. Além dessas condutas do âmbito individual, é indispensável que o poder público controle o desmatamento ambiental, a ocupação desordenada e garanta saneamento básico e o acesso à água 1 Jornalista formada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); especialista em Gestão Estratégica da Comunicação pela PUC-MG, mestre e doutoranda pela UFMG, em Belo Horizonte, MG, Brasil. E.mail: viviancampos7@gmail.com 2 Denominação utilizada em situações em que a doença envolve grande número de pessoas e atinge uma larga área geográfica. Disponível em: < https://bit.ly/30spnb7> Acesso em 04 de agosto de 2020. 1

potável a toda a população, o que auxilia a controlar a proliferação de doenças, como as provocadas pelo Aedes. Cabendo pontuar que as regiões mais quentes do país e as que mais sofrem com a falta de saneamento básico e acesso à água para consumo, são as norte e nordeste e estocar água nessas localidades costuma ser o principal recurso para garantir a sobrevivência. O Zika vírus é transmitido principalmente por mosquitos da espécie Aedes, mas também pode ser propagado por via sexual, ou, ainda, da mãe para o bebê durante a gestação. Se for infectado pelo vírus, o feto pode desenvolver complicações antes do parto e ter a Síndrome Congênita do Zika Vírus (SCZV). Até o momento de escrita deste texto, não há vacina, medicamento ou tratamento terapêutico que possa prevenir o Zika vírus ou a Síndrome Congênita, somente a eliminação do vetor e as condutas por parte dos governos, conforme mencionado acima. Em abril de 2015, o Zika vírus se espalhou pela Bahia e pelo Rio Grande do Norte e, no final daquele ano, foram identificados casos da doença em todas as cinco regiões do país. O Ministério da Saúde estimou que entre 500 mil e 1,5 milhão de pessoas foram infectadas, naquele momento. Do Brasil, o vírus migrou para outras partes das Américas, com surtos dignos de nota na América Central, Caribe e partes tropicais da região andina (LESSER e KITRON, 2016). Em 28 de novembro de 2015 foi confirmada a relação entre o Zika e a microcefalia 3, por meio de exame realizado em um bebê, que faleceu no estado do Ceará, pouco após ter nascido com a síndrome e outras malformações congênitas. A situação também provocou muito interesse midiático, tanto nacional quanto internacional, em razão do ineditismo e da gravidade; e também considerando o fato de que o país iria sediar os Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, no ano seguinte, em julho de 2016. A doença também causou grande preocupação na população, especialmente nas mulheres em idade fértil ou que estavam grávidas. Em fevereiro de 2016, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que a epidemia de Zika era uma emergência de saúde pública internacional. Posteriormente, a OMS e os Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos aconselharam que as mulheres que estivessem grávidas evitassem viajar para os 45 países onde o Zika vírus estava circulando e fizessem exames, caso tivessem visitado esses locais. Elas também não deveriam manter relações sexuais- sem proteção- com parceiros que tivessem estado nesses 45 países 4. Já em novembro de 2016, a OMS declarou fim ao estado de emergência internacional, em razão da queda nos casos de Zika vírus 3 Nome popular pelo qual ficou conhecida a Síndrome Congênita causada pelo Zika vírus, segundo informações da Fiocruz. Disponível em: <https://agencia.fiocruz.br/zika-0>. Acesso em: 04.agosto. 2020. 4 Informações do Centro de Direitos Reprodutivos (Center for Reproductive Rights) https://www.reproductiverights.org/sites/crr.civicactions.net/files/documents/2018_reporte%20de%20zika%20en%20 Portugu%C3%A9s.pdf>. Acesso em: 01 dez.2020. 2

registrados e em maio de 2017, o governo brasileiro também declarou o fim da emergência em saúde pública no país. Algumas das consequências do Zika vírus para a população ainda estão sendo estudadas pela comunidade científica e o que se sabe até o momento é que além da SCZV, há registros de outras complicações, como paralisia muscular e das articulações, dificuldades para locomoção e equilíbrio. Em 2021, seis anos após a chegada do vírus ao país, há uma geração de crianças 5 sobrevivendo com SCZV, em especial no Nordeste do país, região em que se observou a maior concentração da Síndrome nos bebês, mais especificamente em Pernambuco e na Paraíba. Conforme informações de documento desenvolvido pelo IPEA (2018) 6 sobre o tema, a evolução da doença demonstrou dificuldades do país para controlar o vetor, incapacidade nas ações voltadas ao planejamento familiar, bem como falhas na atenção materno-infantil. Essa conjunção de adversidades, aliada às fortes desigualdades sociais historicamente presentes no país e nas regiões norte e nordeste, contribuíram para que o Zika e sua consequência mais devastadora, a SCZV, se tornassem males endêmicos que atingiram principalmente famílias pobres, negras e residentes nas regiões menos desenvolvidas do país. O relatório produzido pela Human Rights Watch (HRW) e divulgado em julho de 2017, Esquecidas e desprotegidas: o impacto do vírus Zika nas meninas e mulheres do Nordeste do Brasil 7, revela a vulnerabilidade das mulheres, pobres, jovens, negras e nordestinas à doença. Conforme o relatório, os impactos do surto do Zika vírus foram desproporcionais sobre as mulheres jovens, solteiras, negras e nordestinas; sendo que 75% dessas mulheres, foco das entrevistas, se identificaram como sendo pretas ou pardas. A HRW entrevistou 183 pessoas em Pernambuco e na Paraíba dois dos estados do Nordeste mais atingidos pelo vírus incluindo 98 mulheres e meninas entre 15 e 63 anos de idade, sendo que 44 dessas mulheres estavam grávidas ou tinham dado à luz recentemente e 30 entrevistadas criavam filhos com a síndrome congênita. A pesquisa demonstrou que o surto do Zika vírus gerou graves consequências para as mulheres e meninas, intensificando os problemas já existentes nessas regiões do país, como o pouco acesso à água e ao saneamento básico, as desigualdades raciais, sociais e econômicas nos serviços de saúde e também as limitações aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Esses dados nos levam a refletir que há uma violenta relação do racismo, com a pobreza e com o sexismo atuando sobre as mulheres também no que se refere aos cuidados com a saúde, 5 Matéria da BBC Brasil, disponível no youtube: < https://bit.ly/2ppvriq >. Acesso em: 04 de agosto. 2020. 6 Disponível em:< https://bit.ly/33s4uy4> Acesso em 29 julho. 2020 7 Relatório Human Rights Watch. Disponível em: < https://bit.ly/30ziklf >. Acesso em 06 de ago.2020. 3

provocando uma asfixia social com os desdobramentos negativos sobre várias dimensões da vida (CARNEIRO, 2011, p.127). Assim, é indispensável olhar para o campo da comunicação e saúde, com uma lente interseccional, porque entendemos que a manutenção da saúde das pessoas depende também de outros aspectos, que perpassam diversas áreas, sejam elas sociais, raciais, regionais e de gênero. Assim, a interseccionalidade delineia-se como uma ferramenta teórico-metodológica que nos oferece subsídios para compreender as múltiplas opressões que se manifestam sobre uma população. Cidinha da Silva (2018) relembra que, no final dos anos 1970, a brasileira Lélia Gonzalez já articulava as opressões cruzadas que as mulheres negras enfrentavam. Em seus escritos e também nas práticas de vida, Lélia, assim como outras intelectuais negras, chamava a atenção para essas interseções, embora não utilizasse, naquele momento, o termo interseccionalidade. A partir de todo esse contexto e caminhada, a definição de interseccionalidade foi sistematizada pela advogada negra estadunidense Kimberlé Crenshaw no artigo publicado em 1989: "Demarginalizing the intersection of race and sex: a black feminist critique of antidiscrimination doctrine, feminist theory and antiracist politics". Em 1991, ela trabalhou novamente com o conceito em texto que discutia as políticas de identidade e a violência contra as mulheres negras: Mapeando as margens: interseccionalidade, políticas de identidade e violência contra mulheres de cor. Já em 2002, no Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero, Crenshaw reforça a necessidade do uso da interseccionalidade como uma ferramenta teórico-metodológica para se pensar as múltiplas opressões. Segundo o paradigma interseccional, deve-se considerar a raça, o gênero, a classe, a sexualidade, dentre outros fatores para compreender as vivências das pessoas. A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais de dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. (CRENSHAW, 2002, p. 177). Para Crenshaw, o racismo é diferente do patriarcalismo, que é distinto da opressão por classe, por exemplo. O que ocorre é que esses vários eixos se cruzam e se sobrepõem, não devendo hierarquizar as opressões. Ao se ter uma visão universalista das opressões, considerando como parâmetro de universal somente as experiências dos homens e brancos, outras opressões e vivências tendem a ser silenciadas ou colocadas em lugares marginais. 4

Como bell hooks 8 (2015) ressalta que a experiência de vida das mulheres negras desafia a estrutura social racista, machista e classista, já que elas estão na base da pirâmide social, fazendo com que a experiência de mundo das mulheres negras seja distinta da de quem tem algum tipo de privilégio. Ao falar sobre a interseccionalidade, Werneck (2016), explica que ela possibilita um entendimento mais aprimorado das noções de diferença, diversidade e discriminação. A interseccionalidade permite visibilizar as diferenças intragrupo, inclusive entre aqueles vitimados pelo racismo, favorecendo a elaboração de ferramentas conceituais e metodológicas mais adequadas às diferentes singularidades existentes (WERNECK, 2016, p. 543). Procedimentos metodológicos A proposta é realizar um exercício metodológico de análise do conteúdo nas postagens em que foi mencionada a questão do aborto na página da UMA (União de mães de Anjos) 9, de Recife, hospedada na rede social digital Facebook. Por meio da análise desses posts, buscamos mostrar de que maneira as mulheres que gerenciam a página e também aquelas que interagem na página se posicionam em relação ao aborto. Para operacionalizar, utilizamos do conceito de análise de conteúdo discursivo. Mendonça e Simões (2012) classificam a análise de conteúdo como sendo a segunda vertente de estudos pautados pela noção de enquadramento. Essa perspectiva compartilha a noção Goffmaniana de que os enquadramentos são estruturas que ajudam a orientar a percepção da realidade e a ação dos atores envolvidos na ação, nesta visada, o foco está no próprio conteúdo dos discursos. Isso porque, será no conteúdo que irá se buscar o quadro, que irá permitir interpretar um sentido. Conforme os autores, a proposta deste conceito é analisar os enunciados e discursos de natureza variada, captando o modo como a realidade é enquadrada por eles (MENDONÇA e SIMÕES, 2012, p. 193). Para Campos (2004), a análise de conteúdo pode ser compreendida como um conjunto de técnicas de pesquisa cujo objetivo é a busca do sentido ou dos sentidos de um documento (CAMPOS, 2004, p. 611). Ainda de acordo com ele, a intenção deste modelo é buscar o sentido de uma mensagem, tendo por objetivo a produção de interpretações. Já Bonome (2017) complementa o entendimento, explicando que o método de análise de conteúdo requer uma leitura crítica do sentido das mensagens e também do conteúdo, seja ele explícito ou não. 8 bell hooks é o pseudônimo adotado pela escritora negra estadunidense Gloria Jean Watkins. O nome foi inspirado na sua bisavó materna, Bell Blair Hooks. Por opção da própria autora, a grafia do nome é em minúsculo. 9 Página da UMA https://www.facebook.com/uniaodemaesdeanjos Último acesso em 07 jan. 2021. 5

A página da UMA no Facebook foi criada em 27 de fevereiro de 2016, é aberta para interação e até o momento de escrita do texto, contava com 14.660 curtidas. A página representa a associação de mesmo nome, fundada em 22 de dezembro de 2015, por Germana Soares, que é a presidente e Gleyce Cavalcanti, a vice-presidente, ambas são mães de crianças com SCZV. Conforme informações do site 10, a UMA presta assistência a mais de 400 famílias em todo o estado de Pernambuco, que tiveram bebês com a SCZV. Para selecionar o corpus, pesquisei pela palavra-chave aborto na página da UMA e apareceram 20 postagens que abordaram o tema. Essas postagens ocorreram nos anos de 2016 a 2019; sendo 8 postagens em 2016; 9 em 2017; 2 postagens em 2018 e uma no ano de 2019. Elas foram extraídas por meio de prints e os textos e/ou demais referências, como sites, por exemplo, foram copiados e colados em um arquivo. Foram separadas por ano e os conteúdos, bem como as imagens e demais referências, foram analisados. Análises e discussões Em todas as postagens está explícito que o posicionamento da associação é contrário ao aborto. Também observamos que as postagens foram de certa maneira provocadas por acontecimentos externos, como decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e se constituíram discursivamente como uma resposta e/ ou posicionamento que o grupo considerava necessário demarcar. As postagens referentes aos anos de 2016 e 2017 foram motivadas por episódios: o primeiro foi um julgamento realizado STF, em novembro de 2016, que revogou a prisão de cinco pessoas que foram detidas em uma clínica clandestina de aborto. No julgamento daquele caso, os Ministros entenderam que a criminalização do aborto nos três primeiros meses da gestação viola os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, o direito à autonomia de fazer suas escolhas e o direito à integridade física e psíquica 11. Embora a decisão fosse específica para aquela situação, existia o potencial de gerar jurisprudência, influenciando em futuros julgamentos de outras cortes, em casos similares. Neste sentido, conforme percebemos nas postagens, as responsáveis pela UMA entenderam que a medida poderia representar uma descriminalização ampla do aborto no país e que em razão disso seria necessário um posicionamento incisivo. Assim, representantes da associação participaram de ações e protestos públicos contrários ao aborto que foram repercutidos por meio de postagens na página. Importante ressaltar que apesar da decisão não ter relação direta com a possibilidade de aborto 10 Site: < https://www.uniaodemaesdeanjos.com.br/> Último acesso em 07 jan. 2021 11 Acesso em 08 de jan. 2020. < https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2016-11/turma-do-stf-decide-que-abortonos-tres-primeiros-meses-de-gravidez-nao-e 6

em casos de bebês com alguma deficiência, o discurso presente nas postagens dá a entender que a decisão do STF iria possibilitar a realização de aborto para além do que prevê a legislação atual 12, o que poderia incluir bebês com diagnóstico de SCZV ou outra deficiência severa. Já o outro acontecimento que serviu de pano de fundo para as postagens de 2017 foi a apresentação do Projeto de Lei (PL) 7371/2014 13, de autoria da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Violência Contra a Mulher do Senado, que visava criar o Fundo Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres. O Fundo seria destinado a financiar as ações da Política Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres. No Art. 3º estava prevista a implantação, reforma, manutenção, ampliação e aprimoramento dos serviços e equipamentos previstos na Política Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres. O PL foi retirado da pauta em fevereiro de 2017 14 e em postagem da página da UMA, do dia 08 de março de 2017, dia Internacional das Mulheres, há o seguinte texto e uma referência a uma matéria: O Deputado Diego Garcia acaba de informar que a PL/7371 que abria as portas para o aborto no Brasil foi retirada de pauta. Para a honra e glória das mulheres que valorizam a maternidade, tomem isto como um presente de 8 de março. A vida deve prevalecer acima de qualquer coisa (UMA, 2017). Junto ao texto acima, foi linkado um artigo de opinião, intitulado - Projeto de lei que ampliaria a realização de abortos no Brasil sai de pauta 15, que está no blog sempre família, hospedado no site do jornal Gazeta do Povo, de Curitiba. O autor do artigo, Jônatas Dias Lima comemora o fato de o Projeto de Lei que poderia ampliar a prática de aborto no país ter saído de pauta e o chama de instrumento da causa abortista. Para ele, se o PL fosse aprovado iria tornar possível o uso do dinheiro público para a expansão da rede de hospitais equipados para o atendimento de abortos não puníveis, bem como a capacitação de profissionais para a realização dos procedimentos. O que ele acredita ser uma medida completamente equivocada, porque haveria mais profissionais treinados para 12 Conforme o código penal de 1940, artigo 128, não se pune o aborto nos seguintes casos: quando não há outro meio de salvar a vida da gestante e se a gravidez for resultante de estupro, desde que o aborto seja precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. Já em 2012, foi votada pelo STF a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, que passa a considerar a interrupção da gravidez de feto anencefálo como mais uma hipótese de aborto, dentro da legalidade. 13 Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesweb/prop_mostrarintegra?codteor=1242139&filename=tramitacao- PL+7371/2014 Acesso em 08 jan. 2021 14 Em 11/03/19 foi apresentado requerimento que solicitou a inclusão na Ordem do Dia do Plenário, do PL nº 7371/2014 e até o momento não há nova movimentação do projeto de Lei. Informações em:< https://www.camara.leg.br/proposicoesweb/fichadetramitacao?idproposicao=611447> Acesso em 08 jan. 2021. 15 Disponível em: <- https://www.semprefamilia.com.br/blogs/blog-da-vida/projeto-de-lei-que-ampliaria-a-realizacaode-abortos-no-brasil-sai-de-pauta/> Último acesso em 08 jan. 2021 7

despedaçar o corpo de um feto no útero materno ou envenenar o bebê em gestação numa solução salina. O post teve 32 curtidas, 11 compartilhamentos e nenhum comentário. Em 2018 foram feitas duas postagens sobre a temática, uma em 09 de junho e outra em 04 de agosto. A de junho faz referência à participação da presidente da UMA, Germana Soares, em um bate papo sobre o aborto, na Paróquia da Boa Viagem, no Recife. Há também uma imagem de um folder de divulgação da atividade, onde há um texto com as informações sobre dia e horário do encontro e a foto da Germana, uma mulher jovem, negra e com duas crianças pequenas, sendo uma delas, seu filho Guilherme, que tem a SCZV e dois homens brancos, jovens, sendo que um está vestido com trajes de padre e outro vestido de terno, com um microfone nas mãos, os olhos fechados, uma cruz ao fundo, aparentando ser um pastor, ficando evidenciado que a conversa foi balizada pelo enquadramento religioso. Não há comentários. Já a segunda postagem, de agosto daquele ano, há somente uma frase: Não ao aborto! e o compartilhamento de um vídeo de 6m37s onde é possível ver que mulheres da associação (vestidas com uma blusa amarela, com a logomarca da UMA) participam de uma manifestação contra o aborto, juntamente com seus filhos, que têm a SCZV. A maioria das mulheres que aparecem são jovens e negras (pretas ou pardas). As crianças são pequenas, aparentam ter mais de dois anos de idade e estão em carrinho de bebê e cadeiras de rodas. No evento, acontece um show de música e é possível observar que outras pessoas que interagem com as mães e as crianças. Algumas dessas pessoas estão empunhando a bandeira do Brasil ou vestidas com uniformes de associações. Em 2019 houve uma postagem em 29 de abril e há um texto longo e algumas fotos, onde é informado que a presidente da UMA participou de uma audiência no Supremo Tribunal Federal, em Brasília, em que se discutiu a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), que pedia a liberação do aborto nos casos em que a grávida estivesse infectada pelo Zika vírus e quisesse realizar o procedimento. O posicionamento da UMA era frontalmente contrário ao aborto também neste caso. A ação foi de autoria da Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadep), que requereu a liberação do aborto para grávidas infectadas pelo vírus Zika, em razão do sofrimento psicológico e contou com o apoio de diversos grupos feministas. A previsão era de que o Supremo Tribunal Federal (STF) julgaria a ação sobre a constitucionalidade do aborto para grávidas infectadas pelo vírus Zika, em outubro de 2019. No entanto, em razão da pressão de grupos cristãos e contrários ao aborto, a 8

ação acabou sendo retirada da pauta naquele momento. Em abril de 2020 a ação voltou a ser julgada pelo STF, que a rejeitou, por maioria 16. Nessa mesma postagem é destacado que Germana Soares encontrou com a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, que tem uma posição radicalmente contrária ao aborto. O objetivo foi atualizar o governo da situação das pessoas com SGZV em Pernambuco. Na ocasião foi entregue um projeto com as reivindicações das famílias. Destaco aqui alguns trechos que reforçam o posicionamento da UMA sobre o aborto: ao invés de discutir o direito de abortar alguém com deficiência, deve-se focar na discussão de políticas públicas de qualidade para atender quem está vivo. A entidade afirma que o aborto em razão da contaminação pelo Zika vírus é uma forma assassina de exclusão assassina. No momento do print, foram registrados seis comentários, 28 curtidas e 11 compartilhamentos. Todos os comentários foram elogiosos ou eram de pessoas marcando outras. Considerações finais Ao analisar o conteúdo discursivo de cada um dos vinte posts que fazem parte deste corpus, percebemos que dois elementos são recorrentes: a recusa ao aborto, baseada na argumentação religiosa, aos valores cristãos e a culpabilização da própria mulher, conforme podemos verificar em postagem de novembro de 2016. Até quando meu Pai, esses políticos farão tantas barbaridades. Não quer engravidar? Para que abre as pernas? Seres inocentes que não pediram para nascer (UMA, 2016). Já o segundo elemento é o ideal de uma maternidade resiliente, em que a mulher deve ser uma cuidadora abnegada, que abra mão de sua própria vida para cuidar de sua criança. Sendo que esse ideal é ainda mais acentuado pelo fato dessas mulheres serem mães de uma criança com deficiência, o que irá requerer ainda mais cuidados e atenção. Deste modo, a perspectiva interseccional nos auxilia a compreender melhor nosso objeto em análise, já que é importante contextualizar que as mulheres que fazem parte da associação e interagem na página são, em sua maioria, mulheres negras, nordestinas, pobres, com poucos anos de estudo, jovens, muitas com uma base religiosa forte e mães de criança com deficiência, o que as coloca em uma situação de vulnerabilidade social. Conforme Carla Akotirene (2018), a abordagem interseccional possibilita observar o embate entre as estruturas, a interação simultânea entre as identidades e também o quanto o feminismo hegemônico foi incapaz de contemplar as mulheres 16 Mais informações em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/04/30/senadores-elogiam-decisao-dostf-que-rejeitou-aborto-para-mulheres-com-zika> Acesso em 09 jan. 2021 9

negras e como o próprio movimento negro, por estar inserido em uma sociedade machista, também não conseguiu incluir as questões das mulheres negras. De maneira geral, todas as pessoas irão necessitar de cuidados em algum momento de suas vidas, algumas em maior medida do que outras. Entretanto, não podemos desconsiderar que serão as determinantes sociais, raciais e de gênero que vão apontar quem provavelmente serão as cuidadoras e as que receberão cuidados. Flávia Biroli (2018) ressalta que as mulheres que mais cuidam, seja por meio de um trabalho remunerado, ou pelo doméstico não remunerado, são as que menos são cuidadas. Assim, ao se analisar o material, nosso olhar não deve partir exclusivamente de uma única perspectiva de feminismo, pois dificultaria nossa interpretação das razões que possam levar as mães das crianças com SCZV a serem contrárias à possibilidade do aborto, já que em um primeiro momento, a ação proposta visava exatamente evitar o sofrimento psicológico e garantir o direito de escolha dessas mulheres. O olhar interseccional nos leva a refletir, conforme Djamila Ribeiro (2017) nos alerta que o grande dilema do feminismo hegemônico e branco é a universalização da categoria mulher, como se essa categoria sozinha fosse capaz de abarcar todas as peculiaridades do ser mulher. Conforme relato de Simone Costa (2006), observação obtida a partir de seu trabalho como assistente social, para muitas jovens mulheres da periferia, a maternidade pode representar um exercício de controle sobre o próprio corpo, de sua fertilidade e de seu poder enquanto mulher. A gestação muitas vezes representa a construção de suas próprias famílias. A gravidez pode vir a representar a concretização de um projeto de vida (COSTA, 2006, p.129). Em diálogo com esta afirmação, Patricia Hill Collins (2019) pontua que para algumas mulheres, ser mãe é um passo importante para a constituição de sua condição enquanto mulher. Sendo que a maternagem é uma experiência empoderadora para muitas mulheres negras (COLLINS, 2019, p. 327). Collins destaca que se há algumas mulheres que encarem a maternidade como um fardo que pode sufocar sua criatividade, explorando seu trabalho e as tornando cúmplices de sua própria opressão. Há outras que acreditam que a maternidade promove o crescimento pessoal, eleva o status nas comunidades negras e serve de catalisador para o ativismo social (COLLINS, 2019, p. 296). Assim, essas aparentes contradições coexistem tanto individualmente, quanto na comunidade negra. Collins (2019) pontua que a maternidade é historicamente central nas filosofias afrodescendentes. Lembrando que o Brasil é profundamente influenciado pela cultura africana, considerando todo o histórico da escravidão pelo qual passou milhões de pessoas do continente africano que foram trazidas a força ao país. Deste modo, essa mesma ideia de glorificação da maternidade também está engendrada em nossa sociedade e, especialmente, no repertório das pessoas 10

que são descendentes dos africanos e que hoje constituem a maior parte da população brasileira, em especial na região nordeste do país. Assim, ao analisar as postagens, percebemos que as mulheres que fazem parte da UMA e que se manifestaram nas publicações, querem mostrar que ser mãe de uma criança com SCZV não é um fardo e que todo o sacrifício compensa, pois entendem que é inerente à maternidade. O aborto pode representar, além da morte das crianças- que elas consideram mais do que crianças, mas verdadeiros anjos- uma ação anticristã e uma afronta a todo o sacrifício e luta empreendidos por elas para cuidar de seus filhos. Por fim, essas mulheres e mães de crianças com SCZV não devem ser vistas apenas como vítimas de um contexto social, político, de gênero e raça que as coloca em um lugar de vulnerabilidade, elas também se apresentam e são percebidas por quem interage no grupo, como guerreiras, empoderadas, escolhidas para serem mães de anjos e que lutarão sempre pela garantida de direitos de seus filhos, incluindo o direito que eles nasçam. Elas serem contrárias ao aborto pode causar um estranhamento se olharmos para a situação a partir da perspectiva do feminismo branco e hegemônico, mas antes precisamos compreender a partir de qual feminismo estamos examinando. Para elas, ser contrárias ao aborto pode representar um reforço de suas lutas e a construção de uma identidade enquanto mulheres e mães. Enfim, é essa a reflexão que gostaria de trazer ao debate. Referências AKOTIRENE, Carla. O que é interseccionalidade? São Paulo: Ed. Letramento, 2018. BIROLI, Flávia. Gênero e Desigualdades: limites da democracia no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018. BONONE, Luana Meneguelli. Construção de método para pesquisas de Frame Analysis. 2017. Revista Estudos em Jornalismo e Mìdia, Santa Catarina, v. 13, n.2, julho a dezembro de 2016, p. 78-87. CAMPOS, Claudinei José Gomes. Método de análise de conteúdo: ferramenta para a análise de dados qualitativos no campo da saúde. Rev Bras Enferm, Brasília (DF); 57(5) p. 611-4, 2004 set/out. CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o Encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171-187, 2002. CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. Selo Negro, 2011. COSTA, Santos Silva Simone. A gravidez desejada em adolescentes de classes populares. In: WERNECK, J.; Mendonça, M. et al. O livro da saúde das mulheres negras nossos passos vêm de longe. Rio de Janeiro: Criola/Pallas, (2ª.ed.) 2006. P. 127-129. COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. Boitempo Editorial, 2019. FACEBOOK. União mães de anjos. Disponível em: https://www.facebook.com/uniaodemaesdeanjos/. Acesso em: 07 de jan. 2021. 11

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