Crônica da destruição do cerrado

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Transcrição:

Crônica da destruição do cerrado A ideologia mórbida do capitalismo rural detonou o bioma mais antigo no país - responsável por quase 20 mil nascentes - e isso impacta o Brasil inteiro.2 de março de 2015 08h57 Por Najar Tubino Da Carta Maior O professor Altair Sales Barbosa, da PUC de Goiás, criador do Memorial do Cerrado, em Goiânia, nos últimos anos tem argumentado que o cerrado como bioma não existe mais, tamanha a destruição pelo avanço do agronegócio. Ele não é o único. Os mais otimistas consideram que em 2030 o cerrado não existirá mais, seguindo a média de extinção de dois milhões de hectares por ano. Ou seja, em 45 anos, contando do início da década de 1970 O Programa de Desenvolvimento do Cerrado, chamado polo centro pelos militares, foi instituído em 1975-, a ideologia mórbida do capitalismo rural brasileiro detonou o bioma mais antigo no país, responsável por quase 20 mil nascentes, que abastecem oito das 12 regiões hidrográficas. As quatro mais importantes: do rio Paraná, do rio São Francisco e dos rios Araguaia e Tocantins. Como diz o professor Altair Sales as águas que nascem no cerrado abastecem as grandes bacias do continente sul-americano, e todas elas nascem de aquíferos, sendo os três mais importantes o Guarani, o Bambuí e o Urucaia. O cerrado é conhecido pela pobreza de nutrientes no solo, embora tenha 12.365 espécies de plantas catalogadas, além do excesso de alumínio, o que aumenta o problema. Então são plantas que crescem retorcidas, as folhas parecem couro, a densidade é menor, embora o bioma em si tenha algumas divisões, desde regiões com gramíneas, arbustos até árvores de 30 metros. Na rota da morbidez Por ser o mais antigo e por ter problemas de nutrientes, também é, por ironia da história, o que mais limpa a atmosfera, porque as plantas captam mais gás carbônico. Porém, o cerrado é conhecido por ser uma floresta de cabeça para baixo, em função do intrincado de raízes e da profundidade que atingem. Justamente por isso, seguram a água da chuva, carregam o lençol freático e abastecem os aquíferos. Parece perfeito. Mas o cerrado entrou na rota da morbidez do agronegócio. Um detalhe importante: ele é plano na sua maioria, tinha um clima estável, com duas estações bem definidas das águas e da seca. E o definitivo: suas terras eram desvalorizadas. Hoje são mais de 50 milhões de hectares de pastagem, mais de 14 milhões de lavouras permanentes e milhares de carvoarias. Além da ocupação para produção de carne e grãos também queimaram o cerrado para abastecer os fornos das siderúrgicas de Minas, depois as guzeiras do Maranhão, da Bahia, do Pará. O Brasil é rico em ferro, mas ele precisa ser limpo das impurezas, então o ferro precisa ser queimado e transformado em ferro-gusa, que é o ingrediente do aço. Oito das 12 regiões hidrográficas dependem do cerrado Os escravos faziam isso na época do império, enterravam a madeira em covas e transformavam 100 toneladas em seis toneladas de carvão, fato descrito no livro de Warren Dean A Ferro e a Fogo -, que conta a destruição da Mata Atlântica. Minas Gerais sempre

centralizou a produção de ferro gusa no país, foi onde o cerrado sofreu o primeiro golpe. Dali para o Centro-Oeste, onde o boi já havia aberto o caminho foi um passo. Em seguida os pesquisadores descobriram as fórmulas para corrigir a acidez das terras e o resto a indústria química resolveu fertilizantes e veneno. Sem dúvida, o Brasil é o maior produtor de soja, o maior exportador e tem o maior rebanho comercial do mundo. Mais da metade disso é a contribuição do cerrado. Entretanto, a história não acaba aqui. Vejam o que informa o pesquisador da Embrapa, Jorge Inoch Werneck Lima: - O cerrado contribui para oito das 12 regiões hidrográficas do país, 70% da água que sai na foz do rio Tocantins-Araguaia vem do cerrado, 90% do que sai na foz do rio São Francisco também vem do cerrado e 50% do que sai na foz do rio Paraná, inclusive da água que chega a Itaipu. Mas 100% da água que abastece a represa de Três Marias (MG) são do cerrado, 90% da água que abastece a represa de Xingó e 70% da água que chega a Tucuruí são do cerrado. Cerrado transformado em carvão A recarga dos aquíferos, que abastecem as bacias dos rios citados ocorre pelas bordas, nas áreas planas, onde a água pluvial infiltra e é absorvida cerca de 70% pelo sistema radicular da vegetação nativa, alimentando num primeiro momento o lençol freático e lentamente vai se armazenando nos lençóis mais subterrâneos, explica o pesquisador da Embrapa. Se não tem mato nativo, que foi transformado em carvão a lenha do cerrado queima três dias dentro do forno - ou simplesmente queimou ao léu para dar lugar a pastagens africanas, a soja chinesa ou a cana europeia, o que acontecerá? Ora, dedução lógica, simples: não haverá água. Pois justamente é essa a essência da morbidez do agronegócio: destruir para construir e depois, como diziam os colonizadores portugueses, azar de quem vem atrás. Uma citação do professor Altair Sales Barbosa: - Em média, 10 pequenos rios do cerrado desaparecem a cada ano. O rio que abastece a bacia vê seu volume diminuindo. Hoje, usa-se ainda a agricultura irrigada, porque há uma reserva nos aquíferos. Mas daqui a cinco anos não haverá mais essa pequena reserva. Estamos colhendo os frutos da ocupação desenfreada que o agronegócio impôs ao cerrado a partir dos anos 1970. Vai chegar um tempo, não muito distante, em que não haverá mais água para alimentar os rios. Então esses rios vão desaparecer. Por isso, falamos que o cerrado é um ambiente em extinção. O espectro da destruição continua Claro, na década de 1970, os arautos da morbidez argumentavam dessa maneira, não tínhamos informação suficiente sobre a importância das matas ciliares, de preservar pelo menos 20% da vegetação nativa, como diz a lei, entre outras medidas simples e eficazes. Nada disso, basta ver as novas implicações do código florestal recentemente aprovado restringir matas em córregos, afluentes, rios; diminuir áreas de preservação permanente ou compensar em outras regiões. Só para esclarecer: o cerrado tem apenas 2% em unidades de conservação e pouco mais de 2% de áreas indígenas. Ainda não acabou. A fronteira agrícola chegou ao sul do Piauí e ao sul do Maranhão e ao oeste da Bahia, onde já tem mais de um milhão de hectares plantados com soja e algodão no Piauí o número passa dos 600 mil hectares. Se somarmos as duas áreas de cerrado do Maranhão e Piauí são mais de 20 milhões de hectares. Os arautos da morbidez pretendem ocupar seis

milhões. Qual a notícia no sul do Piauí? As carvoarias estão detonando as áreas de cerrado. Qual a informação mais atualizada sobre uso de carvão de mata nativa no Brasil? Pelo menos a metade da produção total é de mata nativa. Um trecho do manifesto divulgado pela Associação da União das Aldeias Apinagés, do Tocantins, em dezembro de 2014: - Denunciamos a forma criminosa como as empresas estão chegando e avançando sobre as matas ciliares e nascentes, que correm dentro da terra Apinagé, com licenças ambientais liberadas pelo Instituto Natureza do Tocantins. Corrida por poços clandestinos Última semana de fevereiro o IRPAA, de Juazeiro (BA) divulga um comunicado dizendo que algumas comunidades da região estão com problemas de falta de água para beber, que os caminhões pipa não estão atendendo a demanda. Juazeiro fica abaixo do lago de Sobradinho, o maior da América Latina e que está com pouco mais de 15% da sua capacidade. Água agora só para produção de energia elétrica. E em São Paulo. O Aquífero Guarani abastece 80% dos municípios do estado. Com a realidade da crise hídrica, como dizem os arautos da morbidez urbana, fiz uma pesquisa sobre construção de poços artesianos. O Centro de Pesquisa de Águas Subterrâneas, da USP, dirigido pelo professor Reginaldo Bertolo realizou um levantamento entre as empresas construtoras, no final do ano passado. Diz ele: - A corrida para construção de poços profundos clandestinos é grave, tanto pela possibilidade de esgotamento dos aquíferos, quanto por causa dos riscos da qualidade da água extraída. Na região metropolitana foram 400 perfurações realizada pelas construtoras, o que aumenta em 43 milhões de litros/dia retirado dos aquíferos. Segundo o Departamento de Águas e Energia de São Paulo, que autoriza a construção de poços artesianos, são 27.312 cadastrados. Em Ribeirão Preto, por exemplo, já é proibido construir poço artesiano na área central da cidade, em consequência do rebaixamento do Aquífero Guarani. Consultei outra região São José do Rio Preto -, também abastecida pelo aquífero. O Diário da WEB, jornal da cidade, apontava em dezembro passado que 88% dos poços da região são irregulares. Segundo a unidade do DAEE, de Rio Preto, dos 3,5 mil poços perfurados no município apenas 400 estão cadastrados. No próximo dia 11 de setembro, o Dia Nacional do Cerrado decretado desde 2003, comprem velas, chorem e lamentem o fim do bioma mais antigo do país.

TUBINO, Najar. Crônica da destruição do cerrado. Carta Maior, 24 fev. 2015. [Republicado no blog do MST]. http://www.mst.org.br/2015/03/02/cronica-da-destruicao-do-cerrado.html 1. Quais os rios mais importantes cujas nascentes são abastecidas pelo Cerrado? 2. Onde se encontram as nascentes das bacias Guarani, Bambuí e o Urucaia? 3. Como são as plantas do Cerrado? 4. Qual o impacto ambiental imediato da fauna do Cerrado? 5. Qual a relação desta região ambiental com os meios de produção voltados ao lucro? 6. Por que as visões mais otimistas projetam o fim destas questões para 2030? Como a exportação de um produto pode influenciar nesta projeção? Quais os três principais produtos associados a esta questão? 7. O fim dos rios é uma preocupação histórica ou atual? Por quê? Houve diferenças históricas? 8. Procure o significado de poço artesiano e responda qual a relação dele com a realização de construções. Mídia Ninja. Famílias do MTST recebem chaves de 910 apartamentos em Santo André. 18 mar. 2019. https://www.youtube.com/watch?v=9es6q4ll4fy 1. Qual evento marcou o bairro Jardim do Estádio? O que fez com que este tempo fosse tão extenso? 2. Por que utilizar a expressão vale a pena em vez de valeu a pena ou valerá a pena? 3. Qual o significado de plantar os sonhos? Por que o emprego da palavra plantar em vez de simplesmente substituir a expressão por sonhar? 4. Para quem se dirige a expressão Para que a gente mostre que deu certo e replique pra todo o Brasil? O que será replicado no restante no país?

O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É E A QUE VAI O meu nome é Severino, não tenho outro de pia. Como há muitos Severinos, que é santo de romaria, deram então de me chamar Severino de Maria; como há muitos Severinos com mães chamadas Maria, fiquei sendo o da Maria do finado Zacarias. Mas isso ainda diz pouco: há muitos na freguesia, por causa de um coronel que se chamou Zacarias e que foi o mais antigo senhor desta sesmaria. Como então dizer quem fala ora a Vossas Senhorias? Vejamos: é o Severino da Maria do Zacarias, lá da serra da Costela, limites da Paraíba. Mas isso ainda diz pouco: se ao menos mais cinco havia com nome de Severino filhos de tantas Marias mulheres de outros tantos, já finados, Zacarias, vivendo na mesma serra magra e ossuda em que eu vivia. Somos muitos Severinos iguais em tudo na vida: na mesma cabeça grande que a custo é que se equilibra, no mesmo ventre crescido sobre as mesmas pernas finas, e iguais também porque o sangue que usamos tem pouca tinta. E se somos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina: que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença é que a morte severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida). Somos muitos Severinos iguais em tudo e na sina: a de abrandar estas pedras suando-se muito em cima, a de tentar despertar terra sempre mais extinta, a de querer arrancar algum roçado da cinza. Mas, para que me conheçam melhor Vossas Senhorias e melhor possam seguir a história de minha vida, passo a ser o Severino que em vossa presença emigra. MELO NETO, João Cabral de. Morte e vida severina: e outros poemas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010. [Eletrônico]. 1. Por que ser Severino da Maria do finado Zacarias ainda diz pouco? 2. Qual a profissão de Severino? 3. Procure o significado de sesmaria e responda como é possível ser Severino uma vez que seu pai era o Zacarias, mais antigo senhor desta sesmaria? 4. Severino é um nome ou uma característica? Por quê? 5. Qual o significado de cabeça grande (1º verso da 2ª coluna)? 6. Qual ou quais os destinos do(s) Severino(s)?

João Cabral de Melo Neto é um autor reconhecido na literatura brasileira pelas poesias modernistas. Pertencente à geração de 45 do modernismo nacional, João Cabral apresentou características surrealistas em suas poesias, que eram marcadas pelo rigor formal e pela estruturação fixa. Nascido em Recife, Pernambuco, o contato com a literatura de cordel marcou os primeiros contatos de Cabral com as letras. Ainda menino, o escritor lia as histórias para os funcionários do engenho do seu pai. Já no Rio de Janeiro, frequentou encontros literários e conheceu importantes autores nacionais. Lembrado pelo talento para escrever, o autor também foi diplomata, tendo morado em vários países. Posse de João Cabral de Mello Neto na Academia Brasileira de Letras (ABL). Imagem do Fundo Correio da Manhã (1969). Globo. João Cabral de Melo Neto. Biografia. Com base na biografia da ABL http://www.academia.org.br/academicos/joao-cabral-de-melo-neto/biografia.