O desenvolvimento cognitivo segundo Jean Piaget



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Transcrição:

O desenvolvimento cognitivo segundo Jean Piaget 1 Aleksandro B. Figueiredo A natureza e a formação do conhecimento foram estudadas por Piaget durante quase toda a sua vida. Para ele, o conhecimento não pode ser considerado uma entidade abstrata, separada do organismo. Ao contrário, sendo uma função altamente qualificada do organismo humano, o sistema cognitivo é parte integrante e inseparável do próprio organismo. Dessa forma, para entender-se o conhecimento, é indispensável buscar sua origem biológica, e a relação que esse conhecimento mantém com a biologia. Segundo Piaget, a construção do conhecimento é possível graças a forma de funcionamento dos organismos vivos, ao modus operandi característico de todo ser vivo. O funcionamento do sistema cognitivo nada mais é do que um prolongamento altamente desenvolvido do funcionamento do próprio organismo. Piaget afirma que esse funcionamento é baseado em duas características, a organização e a adaptação, que são os elementos básicos e essenciais do sistema cognitivo. Como essas características são constantes em todo o funcionamento cognitivo, independente do estágio de desenvolvimento do indivíduo, elas são chamadas invariantes funcionais. Embora existam enormes diferenças entre os inúmeros seres vivos, a simples presença de vida supõe algum tipo de organização. De forma análoga, apesar da natureza das estruturas mentais variar grandemente nas diversas fases da vida, toda ação inteligente pressupõe algum tipo de organização. Dessa forma, o que é invariante não é o tipo de organização, mas a presença de organização em qualquer ato inteligente. Essa organização é dinâmica, ela gerencia o sistema cognitivo não somente em termos de conservação das estruturas mentais, mas também em termos de ajustar o sistema às continuas mudanças dessas estruturas. De uma forma geral, toda estrutura mental, seja ela simples ou muito complexa, tem como propriedade a organização em totalidades - em sistemas de relações entre elementos. Essa organização não assume apenas a forma configuracional, da relação entre o todo e as partes, mas também em termo de meios para fins, isto é, do uso de ações (meios) para se atingir um objetivo (fim). A adaptação é a situação de equilíbrio entre a assimilação e a acomodação. É esse equilíbrio que caracteriza todo ato inteligente. A assimilação é a interpretação da realidade de acordo com algum sistema de significado existente na organização cognitiva do indivíduo, incorporando-a a esse sistema. É a "fonte de alimentação" do sistema cognitivo. No entanto, ao buscar esses "alimentos", o organismo não sabe o que buscar, pois tem como parâmetro apenas a si próprio. Dessa forma, ele tende a buscar apenas o conhecido, o "velho", em toda a realidade que encontra. Entretanto, nessa busca constante do conhecido, ele freqüentemente se encontra com o novo, e é obrigado a ajustar seu sistema cognitivo, seus "receptores intelectuais", às novas formas que a realidade lhe apresenta. Essas mudanças que o organismo se autoprocessa para incorporar o novo ao seu sistema são denominadas acomodação. A assimilação e a acomodação são indissociáveis - toda incorporação cognitiva da realidade sempre envolve uma assimilação dessa realidade à estrutura e uma acomodação da estrutura à realidade. A organização e a adaptação são dois aspectos inseparáveis do mesmo processo. A adaptação pressupõe uma coerência subjacente e as estruturas mentais (organizações) são criadas pelas adaptações. Pode-se dizer que a adaptação é o acordo do pensamento com as coisas enquanto a organização é o acordo do pensamento consigo mesmo. A adaptação é o aspecto externo e a organização o aspecto interno do funcionamento cognitivo. Apesar da invariância do funcionamento cognitivo e da organização ser um aspecto constante desse funcionamento, a forma de organização varia grandemente durante o desenvolvimento do indivíduo. Já foi dito que o que caracteriza todo ato inteligente é o equilíbrio entre a assimilação e a acomodação. Pode-se afirmar que toda a evolução mental é

uma constante busca de equilíbrio. Cada fase dessa evolução pode ser considerada como um novo patamar de equilíbrio, mais completo e estável que nas fases anteriores. Esse é um equilíbrio móvel, de forma que quanto mais estáveis as funções superiores da inteligência e da afetividade, mais mobilidade elas terão. Um maior equilíbrio interior leva a um maior progresso espiritual, e não a uma consolidação rígida das estruturas mentais. Os estados sucessivos de equilíbrio correspondem às estruturas variáveis e progressivas que marcam as diferenças entre os vários níveis de desenvolvimento. O essencial dessas estruturas sucessivas permanece nos novos estágios do desenvolvimento sob a forma de subestruturas, sobre as quais se edificam as novas características. Assim cada estágio pode ser considerado como uma forma particular de equilíbrio, efetuando-se a evolução mental na busca de uma equilibração cada vez mais completa. Em todos os estágios do desenvolvimento humano as ações do indivíduo correspondem a uma necessidade. Ora, uma necessidade é sempre a manifestação de um desequilíbrio. Ela existe quando qualquer coisa, dentro ou fora de nós, se modifica, tratandose de um reajustamento da conduta em função desta mudança. Dessa forma, a ação termina assim que a necessidade seja satisfeita, ou seja, logo que o equilíbrio seja restabelecido. Cada nova conduta, além de restabelecer o equilíbrio, tende a um equilíbrio mais estável que o do estágio anterior a esta perturbação. Logo toda ação humana consiste neste movimento contínuo e perpétuo de equilibração. As necessidades, ou interesses, de uma criança dependem de suas noções adquiridas e de suas disposições afetivas no momento, ou seja, de suas estruturas mentais variáveis. Esses interesses tendem a completar essas estruturas, sempre em sentido de um melhor equilíbrio. Essas necessidades e interesses tendem, de uma forma geral, a incorporar as coisas e pessoas a atividade própria do sujeito (assimilação) e a reajustar as estruturas em função das transformações ocorridas (acomodação). O equilíbrio psicológico é caracterizado pelo já citado equilíbrio entre a assimilação e a acomodação, que é a permanente adaptação ao mundo. Assim o desenvolvimento mental aparecerá em sua organização progressiva como uma adaptação cada vez mais precisa à realidade. Essa adaptação constante à realidade, segundo Piaget, é decorrente da especialização dos processos mais gerais de auto-regulação do organismo. De uma forma geral, toda vida supõe mecanismos de auto-regulação, que visam manter a integridade do organismo frente as continuas transformações do meio. Desde os organismos unicelulares, os processos autoreguladores garantem a sobrevivência quando se alteram as relações entre o meio e o organismo. Nos animais superiores, esses processos vão desde a regulação da divisão celular no embrião até os processos de regulações funcionais que controlam as trocas com o meio. Essas trocas podem ser materiais (digestão, respiração, etc.) ou funcionais (comportamento). Tratando especificamente da auto-regulação cognitiva, Piaget afirma que ela utiliza os sistemas gerais de auto-regulação orgânica e os adapta às trocas com o meio no âmbito do comportamento. É por isso que nas formas superiores de conhecimento humano se encontram as invariantes funcionais que caracterizam todos os níveis de auto-regulação. Dessa forma, as estruturas da inteligência são sistemas de transformações organizados de tal forma que o sistema é mantido mesmo após sucessivas transformações. Essa manutenção do todo em meio a transformações só pode ser mantida num sistema auto-regulado, implicando desta forma em compensações e correções reguladoras. No sistema cognitivo, esse mecanismo regulador corresponde a reversibilidade das operações, em suas formas inversa e recíproca. Assim o sistema cognitivo garante a adaptação do indivíduo a situações complexas, chegando até ao pensamento científico e lógico. De fato, conforme afirma Piaget: A lógica inteira... consiste essencialmente em um sistema de autocorreções, cuja função é distinguir a verdade da falsidade e fornecer os meios de permanecer na verdade. (Biologia e conhecimento, p.48) Esses fatores de auto-regulação, ou equilibração, juntamente com a programação genética e as influências do meio (físico e social), garantem a passagem de um estágio de 2

desenvolvimento para o estágio posterior. Essa seqüência de estágios pode ser dividida em vários períodos de desenvolvimento. O primeiro é o período do desenvolvimento da inteligência prática, ou sensório-motor. O segundo é o período do desenvolvimento da inteligência representativa, ou período pré-operatório. Esse período é caracterizado sobretudo pelo que a criança não pode fazer, e pelas deficiências de seu pensamento e raciocínio. Ele é, entretanto, o período de preparação para o período operatório-concreto. Este período é marcado pelo uso das operações lógicas, a capacidade de raciocinar logicamente e formar sistemas, embora ainda restritos à realidade palpável. O último período é o operatório-formal, cuja característica mais marcante é a capacidade de pensar a respeito das idéias, a pensar sobre o próprio pensamento. Período sensório-motor O período sensório-motor, que vai do nascimento até a aquisição da linguagem, por volta de dois anos de idade, é marcado pela conquista do universo prático que cerca a criança. No início, tudo é centralizado na própria criança, existe uma indiferenciação entre os objetos e a própria ação, o que caracteriza o egocentrismo no período sensório-motor. Mas através da percepção e dos movimentos, ela começa a objetivar a realidade até um ponto em que ela se considera um elemento do mundo. Um corpo entre outros, num universo que ela sente como exterior a si própria. No início, a criança tem apenas movimentos reflexos, e é a partir desses reflexos, em função de sua adaptação ao meio, que surge a inteligência. De fato, nas primeiras semanas de vida, os reflexos já começam a mudar, alterando sua forma em função da experiência, gerando os primeiros hábitos simples. Em seguida, ao se deparar casualmente com uma experiência nova em conseqüência de algum ato seu, a criança tenta refazer essa experiência, realizando os movimentos originais repetidas vezes. Esse mecanismo, denominado reação circular, é o método sensório-motor que permite adaptações novas. As reações circulares primárias são ainda bastante primitivas e centradas no corpo da criança. Começam então as primeiras coordenações entre os esquemas (sucção, prensão, visão e audição), das quais a mais importante é a coordenação entre a visão e a prensão, que permite à criança a manipulação de objetos. Essas coordenações entre os esquemas permitem o surgimento das reações circulares secundárias. A principal diferença entre estas e as reações primárias é que elas se orientam para o ambiente e não para o corpo da criança, como as primárias. As reações circulares secundárias se caracterizam pela tentativa de manter, pela repetição, uma mudança ambiental interessante que sua própria ação produziu acidentalmente. De uma forma semelhante, a criança apresenta nessa fase outro tipo característico de comportamento. Ao se deparar com um acontecimento externo interessante, em que ela não teve nenhuma participação, ela se utiliza de seus esquemas conhecidos para tentar manter ou reconstituir o acontecimento são os procedimentos para prolongar os espetáculos interessantes. Até esse momento, não se pode falar de uma intencionalidade da criança. Apesar dela tentar refazer a experiência com comportamentos orientados para o mundo exterior, esse comportamento só é intencional depois da descoberta do objetivo, na repetição. Nesse caso haveria apenas uma semi-intencionalidade. Para haver uma verdadeira intencionalidade, além do comportamento centrado nos objetos, deve haver uma distinção entre os meios utilizados e os fins a serem atingidos. Isso é demonstrado quando um maior número de ações intermediárias são necessárias antes de se atingir o objetivo. Também é preciso que a ação se configure como uma adaptação deliberada a uma situação nova. É só com a coordenação entre os esquemas secundários, pela assimilação recíproca, que tem início a verdadeira intencionalidade. Alguns esquemas são instrumentos e outros os objetivos a serem atingidos. O objetivo é conhecido desde o início e é necessário vencer algum obstáculo para alcançar o 3

objetivo desejado. Um objeto é utilizado como instrumento para atingir o alvo. Isso caracteriza os primeiros comportamentos intencionais, pois a ação alvo é adiada e é realizada uma ação intermediária que permite alcançar o objetivo o desejo de atingir o alvo é anterior a ação da criança. Como conseqüência dessa coordenação entre meios e fins, a criança passa a ser capaz de antecipar acontecimentos que independem de sua própria ação. Ela passa também a buscar a novidade. Surgem as reações circulares terciárias, onde a criança faz alterações na ação para ver os resultados são os experimentos para ver. A orientação das ações da criança é cada vez mais voltada aos objetos, ela acomoda suas ações a esses objetos, objetivando-os cada vez mais. A criança explora o mundo através de tateamentos, por tentativa e erro, e descobre novos meios de ação através dessa experimentação ativa. Com essa objetivação do universo e do eu como um objeto a mais inserido nesse universo, tem início a representação simbólica. A criança passa a ser capaz, embora de uma forma muito limitada, de fazer manipulações internas da realidade, mesmo de acontecimentos que estão fora do campo perceptual. Dessa forma, ela passa a ser capaz de combinar internamente as representações dos vários esquemas que participam de suas ações. Como conseqüência, esses esquemas podem ser combinados antes de sua aplicação, sem necessidade de tentativas reais, chegando a um resultado novo são as invenções. Durante o desenvolvimento da criança, percebe-se que a inteligência aparece bem antes da linguagem. É a chamada inteligência prática, que se refere à manipulação de objetos e que se utiliza de percepções e movimentos organizados em esquemas de ação. Nesse progresso da inteligência rumo a um universo objetivo, destacam-se quatro processos fundamentais, a construção das categorias do objeto, do espaço, da causalidade e do tempo. Os objetos, no início, não são uma realidade concreta e objetiva, mas sensaçõesimagens, cenas que a criança não consegue distinguir da ação de assimilá-los. De acordo com a evolução geral da inteligência prática, os objetos se tornam cada vez mais uma realidade concreta, independente da própria criança. Assim, no início, o objeto só é real enquanto está no campo perceptivo da criança. Em seguida, ela passa gradualmente a reconhecer a existência de um objeto que foi escondido, desde que ela o veja sendo escondido. Finalmente, a criança passa a ter o domínio dos deslocamentos invisíveis, ou seja, ela consegue inferir o deslocamento do objeto mesmo que não veja o próprio objeto. O objeto passa a ser algo concreto, que existe permanentemente no espaço, independente da ação da criança. O desenvolvimento do espaço ocorre seguindo as mesmas leis gerais vistas acima. Ele é muito importante, pois marca o início do conceito de grupo conceito totalmente prático tão importante no desenvolvimento futuro da inteligência. O grupo é caracterizado como um conjunto específico de elementos, por uma operação específica realizada com estes elementos e pelas seguintes características: Obs: A e B são elementos do grupo, é uma operação realizada entre eles. Composição: para qualquer operação entre dois elementos do grupo, o resultado também é um elemento do grupo A B = C (C é elemento do grupo). Associatividade: o resultado de uma combinação de operações entre elementos do grupo não se altera se a ordem dessas operações for mudada A (B C) = (A B) C. Identidade: existe um único elemento no grupo (X) para o qual a operação de qualquer outro elemento com ele tem como resultado o próprio elemento A X = A, B X = B. Reversibilidade: para cada elemento do grupo existe um único elemento inverso (A ) tal que o resultado da operação entre os dois é o elemento de identidade A A = X, B B = X. 4

Certas propriedades dos grupos, principalmente a reversibilidade, são válidas de uma maneira geral para todos os casos de adaptação. No caso do desenvolvimento do espaço prático, existem três tipos de grupos: Grupo prático: representa a organização de ações sensório-motoras relativas a objetos no espaço que possuem características de grupo, mas sem que a criança tenha consciência da ação e do objeto como campos separados. Grupo subjetivo: a criança percebe seus próprios atos em relação aos objetos no espaço, mas ainda não diferencia suas ações desses objetos. Grupo objetivo: a criança relaciona os objetos no espaço diretamente entre si, independentemente de suas ações sobre eles. Assim, o desenvolvimento do espaço prático é na verdade a evolução dos grupos práticos até os grupos objetivos. No início há tantos espaços não coordenados entre si quanto domínios sensoriais, cada um deles centralizado sobre movimentos e atividades próprias. No final está concluído um espaço geral que compreende todos os outros, caracterizando as relações dos objetos entre si e os contendo na sua totalidade, inclusive o próprio corpo da criança. O desenvolvimento da causalidade, como os demais, tem início numa indiferenciação da causa e do efeito, centrada no efeito percebido. Tem início então uma pré-causalidade, caracterizada pela eficácia e pelo fenomenalismo. A eficácia é a noção de que os próprios sentimentos de esforço, de desejo, etc., que estão presentes na ação, são de alguma forma responsáveis pelo acontecimento externo. O fenomenalismo se refere a percepção de que a contiguidade temporal entre dois acontecimentos significa que um causou o outro. Com o desenvolvimento da criança, ela chega ao ponto de perceber a relação entre os elementos, inclusive ela própria. A partir daí ela consegue inferir uma causa a partir de seu efeito e antecipar um efeito a partir da causa. O desenvolvimento do tempo ocorre de uma maneira semelhante, a partir de um sentimento vago de duração das próprias ações e do início da percepção e seriação das mesmas até a capacidade de recordação de acontecimentos cada vez mais remotos. Além desses processos, merece citação o desenvolvimento da imitação e do brinquedo. A imitação é a situação de acomodação quase pura do eu à realidade. No início a criança apenas imita o modelo se esse reproduziu em esquema já presente em seu próprio repertório. No final deste período, a criança é capaz de imitação imediata de modelos novos e complexos e da imitação adiada, a partir da memória, quando o modelo está ausente. O desenvolvimento do brinquedo, situação de assimilação sem regras da realidade ao eu, ocorre de forma semelhante. Começa com as reações circulares primárias, que após solidificadas pelo uso, parecem ser realizadas pelo simples prazer de fazê-lo. A criança chega ao final do período sensório-motor sendo capaz de fingir ou fazer de conta. Ela também é capaz de reativar um esquema de forma ritual a partir de objetos que apenas sugerem vagamente esse esquema, mas não tem relação direta com ele. Notamos que o desenvolvimento da criança é um todo contínuo. As diversas facetas desse desenvolvimento ocorrem de uma maneira totalmente integrada e interdependente, as divisões são apenas abstrações utilizadas para uma melhor compreensão. É por isso que os vários processos estudados têm uma evolução paralela e correspondente. Período pré-operatório O período pré-operatório marca o início da representação interna da realidade, a inteligência representativa. Essa representação interna é uma conseqüência da função simbólica, ou semiótica, que se caracteriza pela diferenciação entre os significantes e os 5

significados que estes representam. Em relação à inteligência prática, a inteligência representativa tem uma série de características que representam uma grande mudança na forma de inteligência: Ao invés de ligar as ações sucessivas, uma a uma, ela abrange simultaneamente, numa síntese interna, toda uma extensão de eventos isolados. Não se restringe à busca de objetivos concretos de ação, mas pode refletir sobre a organização de seus próprios atos. Pode ampliar seu campo para muito além das ações concretas e reais do sujeito e dos objetos concretos e reais do ambiente. Pode se socializar através do compartilhamento de um sistema de símbolos codificados, ao invés de ser um acontecimento privado, individual e não compartilhado. A função semiótica se desenvolve a partir da imitação, que proporciona às crianças seus primeiros significantes que lhe permitem representar internamente o significado ausente são as imitações internas. Junto com esse processo acomodativo (imitação), a assimilação da realidade fornece o significado ao qual o significante se refere. Nessa fase, entretanto, o equilíbrio entre a acomodação e a assimilação é bem mais complexo que na inteligência prática. Além das acomodações e assimilações aos objetos, é preciso equilibrar as assimilações e acomodações relacionadas aos esquemas simbólicos e em relação ao conjunto anterior de assimilações e acomodações. Para se entender a origem do pensamento representativo, é preciso distinguir dois tipos de significantes: Signos: códigos arbitrários cujos significados são partilhados socialmente (linguagem, matemática, etc.). Símbolos: são mais privados, individuais; não são codificados; normalmente tem semelhança física com seus referenciais. O pensamento representativo tem origem na função semiótica, os primeiros significantes são símbolos privados que surgem no final do desenvolvimento sensorial, a partir da internalização das imitações. É a função semiótica que torna possível a aquisição de símbolos privados e de signos. A linguagem, então, é uma conseqüência da função semiótica. Por sua vez, a linguagem, como principal instrumento de representação, vai apoiar o desenvolvimento posterior desta função. De fato, com o aparecimento da linguagem, as condutas são profundamente modificadas, tanto no aspecto intelectual como no afetivo. A criança torna-se capaz de reconstituir suas ações passadas sob a forma de narrativas e de antecipar suas ações futuras pela representação verbal. Isso traz importantes conseqüências para o desenvolvimento da criança. Primeiramente torna possível a troca entre os indivíduos, a socialização. Também da origem ao pensamento, pela interiorização da palavra. As ações podem ser reconstituídas internamente num plano intuitivo de imagens e experiências mentais. Além disso, a criança desenvolve seus sentimentos interindividuais e sua afetividade interior, organizando sua afetividade de uma forma mais estável. Nas relações interindividuais, a aquisição da linguagem permite a criança sair das limitações do período sensório-motor. Nesse período essas relações se limitam à imitação de gestos corporais e exteriores e a uma relação afetiva global, sem comunicação diferenciada. Com a palavra, entretanto, é a vida interna que é posta em comum, e que se constrói conscientemente, na medida em que pode ser comunicada. Nesse sentido, a linguagem tem três funções elementares: 6

Subordinação: A coação espiritual exercida pelo adulto sobre a criança. É um eu ideal que se propõe ao eu da criança. Os exemplos vindos do alto são os modelos que a criança procura copiar ou igualar. Trocas: As trocas com os adultos ou com outras crianças a levam a formular a própria ação e à narração das ações passadas, transformando as condutas materiais em pensamento. Monólogos: A criança constantemente fala a si mesma durante seus jogos e atividades. É o prenuncio dos diálogos interiores do adolescente e do adulto. Essas primeiras condutas sociais, no entanto, permanecem ainda a meio caminho da verdadeira socialização. Há uma indiferenciação entre o eu e a realidade exterior, entre o eu e os outros, de forma que a criança é incapaz de considerar seu ponto de vista como um entre muitos outros. Dessa forma ela não consegue coordenar seu próprio ponto de vista com os dos outros. É novamente a manifestação do egocentrismo, agora não mais em relação aos objetos isolados, mas em relação às representações, aos signos coletivos, em suma, ao grupo social. Em relação a gênese do pensamento, esse período é marcado pela passagem da inteligência sensório-motora, ou prática, para o pensamento propriamente dito, sob a influência da linguagem e da socialização. De fato, o ponto de partida do pensamento é a linguagem, que permite á criança reconstituir o passado e antecipar as ações futuras. Além disso, como a linguagem conduz à socialização das ações, os pensamentos não pertencem mais apenas ao eu, mas a um plano de comunicação que lhe multiplica a importância. A linguagem é um veículo de transmissão de conceitos e de noções que pertencem a todos. Isso reforça o pensamento individual com um vasto sistema de pensamento coletivo. No período pré-operatório ocorre a transição entre duas formas totalmente distintas de pensamento. De um lado está o pensamento por incorporação ou assimilação puras, característicos do egocentrismo. De outro lado está o pensamento adaptado aos outros e à realidade. Essas duas formas de pensamento, bem como as intermediárias, aparecem durante todo o período pré-operatório, com uma preponderância cada vez maior da última forma. O egocentrismo aparece de forma bastante clara no jogo simbólico jogo de imaginação e imitação. A função do jogo simbólico é a satisfação das necessidades do eu pela transformação do real. Assim a realidade é completada através da ficção, em função dos desejos da criança. Os símbolos, como já vimos, são uma forma de representação individual, elaborados sem o recurso dos outros, e que fazem sentido apenas para a própria pessoa. No outro extremo está o pensamento intuitivo, bem mais adaptado ao real. E entre os dois extremos existe uma forma de pensamento simplesmente verbal, que é um prolongamento dos mecanismos de assimilação e da construção do real do período pré-verbal. O pensamento pré-operatório apresenta uma série de características marcantes. A primeira delas é o já citado egocentrismo. Devido a ele, a essa incapacidade que a criança tem de levar em conta o ponto de vista do outro, ela não sente necessidade de justificar seu próprio raciocínio, nem de procurar contradições em sua lógica. A criança nesse período está sempre afirmando, sem nunca demonstrar, ela não consegue pensar sobre o próprio pensamento. Além disso, como tudo é modelado sobre o esquema do próprio eu, a criança tem uma visão bastante deturpada do mundo. A criança pensa que todas as coisas têm uma razão de ser, razão causal e finalística. A causa muitas vezes é entendida como uma força interna ao objeto, assim como a própria força muscular. Da mesma forma, como seus movimentos são dirigidos para um fim, a criança pensa que tudo tem uma finalidade, um objetivo. Além disso, como a realidade é animada e viva, a criança tem a tendência a conceber as coisas como vivas e dotadas de intenção é o animismo. Da mesma forma, ela considera que todas as coisas foram construídas pelo homem ou por atividade divina, que opera da mesma forma que a fabricação humana é o artificialismo. Em suma, todo o pensamento da criança é reflexo desse 7

egocentrismo, dessa centração no próprio eu. É só com o desenvolvimento da socialização, com a necessidade de levar em conta o ponto de vista do outro, que o egocentrismo acaba vencido. Assim como, de uma forma geral, o pensamento da criança é centrado nela mesma, ela tem a tendência a centrar a atenção num único aspecto do objeto sobre o qual o raciocínio incide. Essa centração sobre um único aspecto em detrimento dos demais leva a uma distorção no raciocínio. Essa distorção só será eliminada quando a criança for capaz de levar em consideração outros aspectos do objeto, que podem equilibrar e compensar esse efeito distorcivo da centração em um aspecto particular. De forma semelhante, a criança tem a tendência a focalizar a atenção nos estados ou configurações sucessivos de um acontecimento, sem prestar atenção nas transformações pelas quais um estado se converte em outro. O pensamento é estático e imóvel, não consegue ligar um conjunto de condições sucessivas num todo integrado, levando em conta as transformações que as unificam e as tornam logicamente coerentes. O pensamento pré-operatório também é caracterizado pela relativa ausência de equilíbrio entre a assimilação e a acomodação. Como ainda não existem estruturas assimilativas bem adaptadas às representações, as sucessivas mudanças empurram a criança para todos os lados, lançando-a em contradições com as cognições anteriores. Não existe ainda uma organização cognitiva estável, duradoura, internamente consistente, que permita a ordenação do mundo que a cerca e o relacionamento coerente com esse mundo. Outra característica do pensamento pré-operatório é a tendência a operar com imagens concretas e estáticas, com a interiorização de ações concretas. Dessa forma, grande parte da cognição da criança assume a forma de experimento mental, que é uma réplica isomórfica, passo a passo, das ações e dos acontecimentos concretos. Como o pensamento é extremamente concreto, a criança vive num realismo extremo, as coisas para ela são exatamente o que parecem ser na percepção imediata. A característica isolada mais importante do pensamento pré-operatório é a irreversibilidade, que pode assumir duas formas: A incapacidade de percorrer um caminho cognitivo e então inverter mentalmente a direção, voltando ao ponto de partida. A incapacidade de perceber as mudanças compensatórias que garantem a invariância do sistema. Assim, o experimento mental rígido, vagaroso e concreto do pensamento pré-operatório não é reversível, pois se limita a repetir os acontecimentos irreversíveis da realidade. Os conceitos da criança nesse período são muito primitivos e são mais propriamente chamados pré-conceitos. Os objetos são apenas nomeados ou definidos de uma forma rudimentar pelo seu uso isto serve para alguma coisa. Além disso, a criança ainda não se refere nem a indivíduos nem a classes de indivíduos semelhantes. Dessa forma, ela tem dificuldade em reconhecer a identidade estável no decorrer de mudanças contextuais. De maneira análoga, ela tem dificuldade em considerar os membros semelhantes de uma dada classe como unidades diferentes e isoladas. Além disso, o tipo de raciocínio pelo qual a criança liga esses pré-conceitos é transdutivo, isto é, passa do particular para o particular. A criança centra-se num aspecto atraente do acontecimento e tira como conclusão outro acontecimento atraente. Esse fenômeno se manifesta de duas formas: Justaposição: são as conexões associativas do tipo e, sem relações implicativas e causais. Sincretismo: vários fenômenos diferentes são relacionados dentro de um esquema global e abrangente. 8

Ainda pode ser citada a tendência da criança pré-operatória de não distinguir claramente a atividade lúdica e a realidade como áreas cognitivas diferentes que possuem regras diferentes. Em suma, todas as características do pensamento pré-operatório estão intimamente relacionadas, e não podem ser consideradas como ruins, visto que são uma etapa indispensável no desenvolvimento do indivíduo. A outra conseqüência da linguagem, a interiorização das ações e sua reconstituição no plano intuitivo das imagens mentais, tem um papel extremamente importante no desenvolvimento do pensamento em direção a uma adaptação à realidade. No período préoperatório a inteligência prática ainda tem um importante papel, prolongando a inteligência sensório-motora e preparando as noções técnicas do período operacional. A criança continua a agir sobre o real, mas com novas possibilidades devido à representação. Na verdade, a criança é mais adiantada nas ações que nas palavras. Apesar disso, até aproximadamente 7 anos, a criança ainda é pré-lógica, e suplementa a lógica pelo mecanismo da intuição. A intuição é, de fato, uma simples interiorização das percepções e dos movimentos, sob a forma de imagens representativas e de experiências mentais que prolongam os esquemas sensório-motores, sem uma coordenação propriamente racional. Dessa forma, a criança considera que existe equivalência, por exemplo, apenas enquanto existe correspondência visual. A igualdade não se conserva por correspondência lógica, não havendo, portanto, uma operação racional, mas uma simples intuição. As intuições inicialmente são bastante elementares apenas esquemas perceptivos de ação transpostos ou interiorizados como representações. Assim as intuições primárias são rígidas e irreversíveis como os esquemas perceptivos e atos habituais que as originam. Com o desenvolvimento da criança, as intuições passam a ser articuladas, na medida em que passam a ser capazes de antecipar as conseqüências das ações e de reconstituir seus estados anteriores. A intuição articulada é suscetível de atingir um nível de equilíbrio mais estável e mais móvel que as ações sensório-motoras, e esse é o grande progresso do pensamento do período préoperatório sobre a inteligência prática anterior a linguagem. No entanto ainda falta ao pensamento pré-operatório a reversibilidade, que é o que vai fazer com que as intuições articuladas se transformem em sistemas lógicos em operações propriamente ditas. Da mesma forma que a inteligência prática, a inteligência representativa deve ser considerada como um todo, onde as diversas facetas apresentadas são apenas visões de uma mesma coisa por ângulos diferentes. E ambos os períodos devem ser considerados como um movimento contínuo, uma sucessão de estados ou formas de organização em direção a um equilíbrio cada vez maior, equilíbrio que irá atingir um novo patamar com a aquisição da operatoriedade. Período operatório-concreto Na fase seguinte de desenvolvimento, o período operatório-concreto, que vai aproximadamente dos 7 aos 12 anos, a criança tem um grande progresso tanto no nível da consciência de si mesma como na relação com outras pessoas. Nessa época ela se torna capaz, pela primeira vez, de discutir, pois passa a levar em conta o ponto de vista do outro. Além disso, ela procura justificativas ou provas para a própria afirmação. Isso tudo resulta na necessidade de conexão entre as idéias e de justificação lógica das mesmas. Assim, é nesse período que tem início a reflexão, a criança pensa antes de agir. Da mesma forma, começam a ser formados os sistemas de relações lógicas, que permitem a coordenação de diversos pontos de vista. Todo esse progresso é possível graças ao aparecimento das operações racionais, ações interiorizadas organizadas em sistemas lógicos de relações. As operações nesse período são concretas, isto é, são relativas a ações reais do sujeito sobre a realidade que são interiorizadas e se tornam reversíveis. De fato, é a reversibilidade 9

que marca o início do período operatório concreto. Essas operações mentais podem assumir várias formas: Operações lógicas sistema de classes ou de relações entre elementos. Operações aritméticas adição, multiplicação, etc. e seus inversos. Operações geométricas seções, deslocamentos, etc. Operações temporais seriação dos acontecimentos e simultaneidade de intervalos. Operações mecânicas, físicas, etc. As operações são, então, sistemas de conjuntos, e se constituem sempre em função da totalidade das operações do mesmo gênero. Esses sistemas de operações, chamados por Piaget agrupamentos, possuem características de dois tipos de estruturas matemáticas, o grupo (discutido no desenvolvimento do espaço prático) e o reticulado, ou sistema de rede. O reticulado é uma estrutura composta de um conjunto de elementos e de uma relação entre esses elementos. As características de reticulado fazem com que algumas das propriedades dos grupos descritas acima assumam características próprias, não podendo ser aplicadas de forma pura. Na verdade Piaget considera os agrupamentos como modelos descritivos do funcionamento cognitivo no período operatório-concreto. Deve ser frisada a qualidade de modelos, isto é, instrumentos mentais que facilitam a compreensão da cognição da criança, o que não é a mesma coisa que a própria cognição. Piaget descreve nove agrupamentos. Um deles é o agrupamento preliminar das igualdades, ou das equivalências, que garante que se A = B e B = C então A = C. Além desse pequeno agrupamento, existem outros oito que se referem as operações lógicas de classificação (quatro) e de seriação (outros quatro). Cada subgrupo de agrupamentos é também dividido em dois agrupamentos de soma e dois agrupamentos de multiplicação. Assim, os oito agrupamentos podem ser divididos da seguinte forma: 1. Soma primária de classes: basicamente permite à criança trabalhar com um sistema hierárquico de classes, por exemplo, a classificação zoológica. Permite somar duas classes em uma hierarquicamente superior (cães fila + cães não fila = todos os cães) e subtrair de uma classe, classes hierarquicamente inferiores. 2. Soma secundária de classes: permite a criança trabalhar com classes secundárias. No exemplo acima, ela chega a compreender que a soma de quaisquer subclasses inferiores é equivalente, resultando na mesma classe superior (cães fila + cães não fila = todos os cães... cães pastor + cães não pastor = todos os cães... etc.). 3. Multiplicação biunívoca de classes: permite a criança por em correspondência duas ou mais séries de classes, onde cada elemento de uma série pode se associar com todos os de outra série. Por exemplo, os moradores de um município podem ser divididos por: raça, zona em que habitam, altura, etc. Essas características podem ser multiplicadas, por exemplo raça (preto, branco, amarelo) por altura (baixo, médio, alto), resultando numa tabela de dupla entrada com várias subclasses (preto baixo, preto médio,... amarelo médio, amarelo alto). 4. Multiplicação counívoca de classes: semelhante a multiplicação biunívoca, neste caso cada elemento de uma série pode corresponder a vários membros das demais séries. O exemplo clássico é a relação de parentesco. 5. Soma de relações assimétricas: permite a criança trabalhar com um sistema de diferenças ordenadas (A < B e B < C então A < C). Essas diferenças podem ser somadas ou subtraídas (a diferença entre A e B mais a diferença entre B e C é igual à diferença entre A e C). 10

6. Soma de relações simétricas: refere-se a soma de relações recíprocas, como por exemplo as encontradas nas relações familiares (se A é irmão de B e B é irmão de C, então A é irmão de C). 7. Multiplicação biunívoca de relações: equivalente a multiplicação biunívoca de classes, permite por termo a termo duas ou mais séries. Por exemplo, dados um conjunto de objetos ordenados por largura e altura, pode-se multiplicar a largura e a altura e descobrir que um dado objeto é simultaneamente mais largo e mais alto do que outro. Da mesma forma, se um objeto B é x mais largo e y mais alto que A e um objeto C é x mais largo e y mais alto que B, então C é x + x mais largo e y + y mais alto que A. 8. Multiplicação counívoca de relações: equivalente a multiplicação counívoca de classes, refere-se a multiplicação das relações do tipo parentesco. Por exemplo, se A é pai de B e B é primo de C, então A é tio de C. Os agrupamentos fornecem, dessa forma, um quadro de referência geral para a análise do comportamento operatório das crianças no período operatório-concreto. Descrevem o funcionamento lógico das operações mentais. Essas operações são a base para a construção das noções de conservação, de tempo, de velocidade, do espaço, etc. Essas noções não podem ser construídas isoladamente, mas constituem sempre organizações de conjuntos onde seus elementos são solidários e se equilibram entre si. Por isso é que essas noções, que são esquemas gerais do pensamento, só podem ser construídas nesse período, com a aquisição da operatoriedade. O pensamento operatório concreto possui uma série de características resultantes dessa aquisição: Descentração Ao invés de se centrar em um único aspecto saliente da realidade, o pensamento operatório concreto é capaz de levar em conta diversos aspectos, compensando as distorções causadas pela centração em um único aspecto. Transformações Capacidade de levar em conta as transformações pelas quais um estado se converte em outro, ao invés de se centrar apenas nos estados inicial e final, o que leva a formação de um todo integrado e logicamente coerente. Equilíbrio Capacidade de se acomodar ao novo, assimilando o velho de uma maneira racional e coerente, resultado de um equilíbrio entre a assimilação e a acomodação. Reversibilidade A característica que marca o início do pensamento operatório concreto. Assume duas formas: Inversão Capacidade de inverter a direção de uma operação mental, voltando ao ponto de partida. Reciprocidade Capacidade de integrar num único sistema, as diversas mudanças compensatórias resultantes de uma transformação. A criança percebe que cada mudança é anulada pelo seu inverso, garantindo a constância do sistema. Apesar desses grandes progressos, o pensamento operatório concreto é limitado pela realidade, isto é, a criança pensa sobre um problema apenas quando a realidade o propõe. A criança ainda não é capaz de coordenar suas soluções para diversos problemas, criando teorias gerais. Isso só será possível quando ela for capaz de realizar operações sobre suas operações concretas, ou seja, quando ela for capaz de refletir sobre suas operações, de pensar sobre seu pensamento. Dessa forma, ela não tem ainda interesse por problemas sem relação com sua própria realidade. Não é capaz de chegar a conclusões a partir de puras hipóteses, mas apenas através da observação real. Ela pensa logicamente, mas somente com o apoio de sua percepção, de sua experiência. 11

Período operatório-formal É só no período operatório-formal, a partir dos 12 anos aproximadamente, que o pensamento se livra dessas amarras. Segundo Piaget, a forma de raciocínio formal é a etapa final do processo de equilibração, o ponto culminante do desenvolvimento cognitivo. Já vimos que a reversibilidade marca o início do pensamento operatório, permitindo um maior equilíbrio do pensamento, libertando-o das amarras das ações irreversíveis. Entretanto, no período operatório-concreto, as duas formas de reversibilidade atuam de forma separada. Os agrupamentos de classificação possuem a reversibilidade por inversão e os agrupamentos de seriação a reversibilidade por reciprocidade. É só no pensamento operatório-formal que essas duas formas de reversibilidade se reúnem num único sistema, o grupo INRC. Na verdade, a criança operatório-concreta já possui muitos dos instrumentos necessários para o raciocínio experimental. No entanto, ao analisar o sistema de provas que ela emprega para provar alguma constatação experimental encontramos uma diferença fundamental em relação ao adolescente operatório-formal. De fato, as crianças operatórioconcretas conseguem realizar muitas combinações entre as variáveis em jogo em um experimento qualquer. Mas elas não agem de acordo com um procedimento sistemático e normalmente não esgotam todas as combinações possíveis. Além disso, se elas podem chegar a descobrir a relação entre as variáveis que produz um determinado resultado, elas não conseguem identificar o que não produz este resultado. Já os adolescentes no nível operatórioformal conseguem não somente sistematizar todas as combinações possíveis entre as variáveis dadas como descobrir o papel de cada uma na produção ou não do resultado esperado. De uma forma geral o procedimento do adolescente operatório-formal em uma situação experimental é o seguinte: 1. Combina de maneira sistemática e exaustiva os fatores em jogo (análise combinatória). 2. Examinas as possibilidades existentes e as coloca a prova. 3. Extrai deduções lógicas a respeito da causalidade do sistema que está analisando. Dessa forma o adolescente chega a integrar todos os resultados encontrados em um sistema único de explicação, que não comporta exceções. Na verdade, nem sempre é necessário realizar todas as combinações para se chegar a um resultado. O que ocorre na prática é que algumas combinações são realizadas de fato (o real). Outras combinações são realizadas apenas na mente do indivíduo e não na prática (o materialmente possível). Muitas combinações, entretanto, apesar de serem possíveis, e de o indivíduo ter capacidade de realizá-las, permanecem potenciais, ou virtuais. Essas operações são chamadas estruturalmente possíveis e não chegam a consciência do indivíduo, embora possam vir a ser conscientes. Essas operações abrangem o conjunto de todas as combinações possíveis em uma dada situação. Essas conquistas do pensamento operatório-formal podem ser explicadas pelo equilíbrio alcançado graças a presença da dupla reversibilidade do grupo INRC. Esse grupo reúne num único sistema as operações Idêntica, Inversa (negação), Recíproca e Correlata. Dessa forma, ele fornece a estrutura geral que torna possível as combinações de operações proposicionais e as deduções subsequentes. O pensamento operatório-formal possui quatro características básicas: 1. O possível assume papel preponderante em relação ao real. No operatório-concreto, o possível é uma simples extensão do real. No operatório-formal, ao contrário, o possível assume o papel principal. O real só é concebível como uma das situações possíveis. Dessa forma, um fato só pode ser a explicação de algo se ele está vinculado ao conjunto de 12

hipóteses compatíveis com a situação analisada, e após ter sido posto a prova com esse conjunto de hipóteses. 2. O pensamento é hipotético-dedutivo, isto é, parte de enunciados hipotéticos e chega as suas conseqüências necessárias (lógica das proposições). 3. O raciocínio deixa de ser exclusivamente sobre os objetos, passando a relacionar as relações encontradas entre esses objetos. Em outras palavras, o pensamento se torna capaz de pensar sobre o próprio pensamento, a raciocinar sobre as relações iniciais. 4. A constituição da combinatória, possibilitando o uso de todas as correspondências multiplicativas do operatório-concreto em um sistema global. Dessa forma chega-se ao ponto culminante do desenvolvimento cognitivo e ao equilíbrio do sistema. Esse equilíbrio é garantido pela compensação entre todas as transformações virtuais do sistema. Para toda transformação possível existe outra transformação inversa ou recíproca. Essa é a forma final de auto-regulação do sistema cognitivo, quando nenhuma transformação causa alteração estrutural no sistema. É isso que permite ao homem aventurar-se em todos os campos do saber, a descobrir e a criar. E é o que permite ao homem conhecer o funcionamento do próprio conhecimento humano. 13