Os movimentos católicos juvenis na sociedade portuguesa



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Transcrição:

G E R A Ç Õ E S E V A L O R E S Depoimentos Os movimentos católicos juvenis na sociedade portuguesa Dentro da Igreja éramos minoritários em número e em concepção de Igreja, éramos vistos como pertencendo aos Movimentos Progressistas, nos Partidos Políticos éramos as aves raras por sermos cristãos, quando a maioria dos outros militantes partidários eram ateus, ou agnósticos desconfiando que a Fé fosse o ópio do Povo. Maria Alfreda Ferreira da Fonseca Professora de Filosofia 1. Nenhum discurso é neutro e etéreo. Uma história de vida, como o nome indica, é um percurso situado no espaço e no tempo, concreto pois, e o seu interesse, para além do relato biográfico mais ou menos rico conforme a qualidade do vivido e a capacidade de o saber comunicar, depende em grande parte de ser extensivo a vivências similares que possibilitem alargar o horizonte da experiência singular englobando-a num todo significativo que possa ser pensado num âmbito mais vasto. Assim «a minha história» não é senão uma versão mais pessoal «da nossa história» que compartilhamos em diversos tempos e lugares. É o relato daqueles que cresceram na década de 70, para quem a História portuguesa ainda se divide entre antes do 25 de Abril e depois dele. É a história daqueles que tinham 18 anos nesse dia e que experimentaram a urgência da Democracia desde o seu primeiro minuto, procurando um mundo melhor pelo empenhamento eclesial e político, acreditando que todos os sonhos eram possíveis imediatamente. É a geração dos «quarentões», dos chamados «amigos de Alex», que emergem aqui e ali na sociedade portuguesa mais ou menos intervenientes nos mais diversos campos, profissional, cívico, político e eclesial. Como se forjou esta geração? Que contributos os Movimentos Eclesiais de Juventude deram à formação deste pequeno universo que pretendemos caracterizar? Eis a nossa questão. 2. Como se chega aos movimentos de juventude? O que leva uns a aderirem e outros não? O caso mais extraordinário que conheço é o do meu amigo Júlio que aderiu REVISTA PORTUGUESA DE CIÊNCIA DAS RELIGIÕES Ano I, 2002 / n.º 2 73-77 73

MARIA ALFREDA FERREIRA DA FONSECA ao Movimento Católico de Estudantes -MCE, indo à lista telefónica saber a morada para lá ir bater à porta. Regra geral começa-se a aparecer por convite directo de alguém que já é membro e nos diz «Vem e vê» como no Evangelho. O contacto pessoal é pois o primeiro anúncio. Reflectimos pouco como Igreja, na responsabilidade de manter a porta aberta e de acolher quem chega, creio que se não me tivesse sentido bem acolhida nos dois movimentos que marcaram a minha juventude, os Escuteiros (CNE Corpo Nacional de Escutas) e a JUC (Juventude Universitária Católica) não teria voltado a aparecer por lá e teria perdido imenso. A necessidade dos membros dos movimentos manterem a sua rede de contactos sociais para além das fronteiras sociológicas do grupo em que estão inseridos torna possível fazer o convite a mais gente para virem a aderir. Se essa rede de contactos não existir o movimento corre o risco de se tornar um grupinho maior ou menor, mas apenas fechado sobre si-mesmo. A visibilidade, na sociedade e na Igreja, dos movimentos é importante. É por aí que as pessoas que não conhecem ninguém lá dentro, podem ter a ideia de aderir. Se a JUC não tivesse na altura o jornal «Encontro» à venda no final das missas das paróquias, talvez eu não me tivesse lembrado que esse poderia ser um movimento interessante para mim. Actualmente há variados movimentos juvenis de Igreja e quase todos eles são bastante minoritários, como já eram na década de 70 depois da crise da Acção Católica, sendo uma riqueza a sua existência plural, é no entanto pequena a sua visibilidade eclesial e social, dá ideia que estão tão centrados na sua vida interna que não tomam posições públicas no âmbito da Igreja ou nas questões sociais, logo isso torna-se um obstáculo à simples adesão de novos membros, além ser uma perda de conteúdos para um debate mais alargado. Parece-me que esse risco de fechamento existia há 25 anos tal como existe hoje. É um aspecto a rever. 3. A comunidade é o cerne da experiência de qualquer grupo na Igreja, seja movimento de juventude formalmente organizado ou simples grupo juvenil paroquial ou afins. A dimensão comunitária da Fé, vivida e celebrada em grupo onde as pessoas têm nome, rosto e história pessoal, é o lugar privilegiado de encontro com o Cristo que afirmou que «Onde dois ou três estiverem reunidos em Meu Nome, Eu estarei no meio deles». É o espaço onde as pessoas se entreajudam de forma concreta e visível, onde juntas fazem um caminho que não é apenas feito de ideologia, seja ela qual for, mas de vida partilhada, em que todos aprendem com todos, e a riqueza interior que cada um transporta e é posto ao serviço da comunidade. Como largos milhares de jovens deste país, então como agora, foi nos Escuteiros, (primeiro em Leiria, depois em Santarém, por último em Lisboa,) que fiz essa aprendizagem entre os meus treze e os dezoito anos, toda a minha adolescência, sem muitas teorias, à boa maneira dos Escuteiros, através da prática concreta vivida na Patrulha e no Agrupamento e sobre tudo nos inesquecíveis acampamentos que tinham tanto de lúdico como de formativo. Foi o tempo da descoberta que «a Fé sem obras é morta», que associada a ela há uma ética de serviço ao irmão que no lema escutista é o «sempre alerta para servir». Nos dois últimos anos do liceu tínhamos um pequeno grupo «das aulas de Moral» que se reunia semanalmente para uma Celebração partilhada e para um Curso Bíblico, outro espaço em que a dimensão comunitária se enraizava no concreto da vida, neste caso na escola, onde os desafios intelectuais, éticos e sociais, do ser cristão num meio secularizado se punham claramente. Descobrimos então como éramos minoritários e como a nossa tarefa era «ser fermento na massa que leveda». Já na Faculdade, quando o país dava à luz a sua nova Democracia, a dimensão comunitária foi vivida na JUC, na Equipa de Letras e nos espaços do movimento a nível diocesano e nacional, procurando fazer sínteses criativas entre Fé e Vida, num momento em 74 REVISTA PORTUGUESA DE CIÊNCIA DAS RELIGIÕES

OS MOVIMENTOS CATÓLICOS JUVENIS NA SOCIEDADE PORTUGUESA que as utopias pareciam todas possíveis imediatamente, em que não havia receitas de como ser Igreja e de como intervir no meio estudantil que era o contexto em que nos movimentávamos. Foram inesquecíveis os debates acalorados sobre o sistema de ensino, o momento político vivido na sociedade portuguesa em transformação, e as Celebrações de sábado, onde à luz da liturgia dominical partilhávamos o nosso viver. Ainda hoje me provoca uma certa irritação o uso e abuso da expressão «comunidade» que se faz na Igreja, de facto a Igreja é a soma de pequenas comunidades e chamar comunidade ao ajuntamento de pessoas desconhecidas que se reúnem, durante uma hora semanal, de costas umas para as outras e viradas só para o altar, lá longe no alto, parece-me um abuso de linguagem! É de facto nos pequenos grupos, sejam formalmente chamados de Movimentos ou não, que a experiência comunitária se faz. Essa é uma virtualidade que se deveria incentivar em vez de uma pastoral de massas que, tendo o seu lugar na Igreja, não deverá ser o figurino único. É mais fácil de organizar, certamente, mas menos eficaz na transformação das pessoas por dentro, a Metanoia, a que como cristãos somos chamados. 4. O sucesso dos Movimentos na Igreja deve-se em grande parte à especificidade das respectivas Metodologias que partem de uma intuição inicial que foi sendo desenvolvida e testada pelo tempo e pelos frutos que daí advieram. A Pedagogia do Escutismo parte das actividades colectivas, de cariz lúdico, e da Lei e dos Princípios que consubstanciam uma ética cristã. A Pedagogia da Aventura é na minha experiência foi ideal para a fase de formação a que corresponde a Adolescência. Nessa idade, quer-se pouca teoria e muita acção, ora o Escutismo responde eficazmente a este desejo. Mas embora o CNE seja confessional, seja católico, não é evidente a formação na fé que ali se faz. Sem dúvida que se propõe a fé, sem dúvida que a ética é cristã, mas a síntese entre fé e vida não costuma ser explicitada, fica muitas vezes implícita. Os adultos presentes no Movimento, sejam eles Dirigentes ou Assistentes provavelmente poderiam aprofundar as mediações pedagógicas necessárias para que esse crescimento na Fé ocorra. Eu tive sorte nos Agrupamentos por que passei, mas tenho visto muitos párocos, que de Escutismo só conhecem a farda, e que vão celebrar aos acampamentos, julgando que assim cumprem a missão de serem Assistentes do Movimento. Há que mostrar-lhes que há mais que isso, que deveria haver um acompanhamento concreto das pessoas e de as ajudar a fazer o seu caminho na Fé. A Pedagogia que para mim foi marcante na JUC, como de resto em todos os Movimentos da Acção Católica, é a chamada «Revisão de Vida» consubstanciada nos seus três momentos: Ver, Julgar e Agir. É uma metodologia que não está em crise embora tenha passado de ser usada por movimentos de massas para pequenos movimentos. A intuição mantém-se viva e actuante pois faz uma síntese perfeita entre Fé e Vida. Partilham-se casos concretos do nosso quotidiano, tenta-se iluminá-los à luz do Evangelho e buscam-se as mediações apropriadas para a sua transformação de acordo com o que muitos chamam uma leitura crente da realidade, conscientes de que a História dos Homens é a História onde o Reino de Deus se manifesta e que é aí que os cristãos são chamados a agir. Embora difícil de realizar, esta intuição pedagógica tem se revelado útil para o crescimento na Fé e para o compromisso militante de transformar a pequena parcela do mundo que cabe a cada um. 5. Uma das características mais interessantes dos Movimentos é eles serem um óptimo espaço de aprofundamento da Fé, não só do ponto de vista da sua vivência concreta, mas também da compreensão intelectual da mesma. Lembro-me de ter pensado, quando fui para a faculdade estudar Filosofia, que se a minha fé não fosse suficientemente esclarecida e aprofundada não resistiria ao embate da razão, e então não valeria a pena tê-la. REVISTA PORTUGUESA DE CIÊNCIA DAS RELIGIÕES 75

MARIA ALFREDA FERREIRA DA FONSECA Se nos Escuteiros não se dava um grande enfoque a este aspecto, o que é uma limitação objectiva deste tipo de movimento, sempre saliento como excepção, o Programa de Formação de Dirigentes que se fez na Região de Lisboa mesmo antes do 25 de Abril, que procurou fomentar uma análise mais séria quer da experiência eclesial, quer da situação social e política do país. Mas foi na JUC que tive oportunidade de fazer esse caminho de aprofundamento das razões da Fé, quer em Lisboa, quer a nível mais global, nos dois anos em que estive na coordenação europeia JECI (Juventude Estudantil Católica Internacional) / MIEC (Movimento Internacional dos Estudantes Católicos), em Bruxelas, no início dos anos oitenta. Os recursos humanos para este trabalho partiam do interior do próprio movimento, pela contribuição natural dos Assistentes, que sendo Padres com uma formação teológica profunda e actualizada, procuravam acompanhar as nossas intensas vivências pessoais e colectivas, iluminando-as com a linguagem da Fé. Os Documentos do Concílio Vaticano II, além da Bíblia e de alguns livros básicos de Teologia, faziam parte das referências que todos partilhávamos. Devo referir agora que está fora de moda a importância que teve para mim e para toda a nossa geração, a Teologia da Libertação de que me sinto profundamente filha. Sem ela dificilmente teria podido compreender à luz da Fé, os desafios da situação revolucionária do pós-25 de Abril e do empenhamento político e cívico em que nos envolvemos. É uma justa homenagem quando parece que a Igreja hierárquica quer deitá-la para o caixote do lixo da História considerando-a um subproduto da defunta ideologia marxista. O aprofundamento teológico foi sendo feito em inúmeros Encontros de Reflexão que se sucediam a um ritmo mais ou menos anual e em múltiplas conferências e debates para os quais eram convidados peritos que vinham de fora do movimento. Essas lufadas de ar fresco vinham por vezes desinstalar as nossas pequenas ideias feitas, os nossos modelos de Igreja preferidos, ajudando a procurar a verdade para além do nosso horizonte, alargando as nossas perspectivas. Esta abertura a outras referências parece-me fundamental para evitar o risco de dogmatizar o estilo de reflexão teológica de cada movimento, confrontando-o com diferentes pesquisas teológicas que no seu conjunto enriquecem a Igreja universal. Outra forma de fazer formação teológica decorreu da ligação informal que a JUC então tinha com o CRC (Centro de Reflexão Cristã), o que fez com que muitos de nós frequentássemos os cursos que este Centro organizava sobre temática teológica. Anterior à actual Escola de Leigos, o CRC teve um papel fundamental na formação teológica de leigos de todas as idades, nomeadamente dos jovens que então éramos. 6. A dimensão social e política da experiência cristã vivida no concreto marcou a vida daqueles que como eu viveram na JUC ou na JEC e na JOC o momento político da transição democrática da sociedade portuguesa. Éramos todos herdeiros do Catolicismo Social e do Progressismo Católico que marcou a era pós-conciliar dos anos 60. Lembro-me, aos 16 anos, de ter descoberto o Direito à Greve, então proibida em Portugal, num documento do Concílio. A célebre Vigília contra a Guerra Colonial na Capela do Rato em 31 de Dezembro de 72, e que acabou nos calabouços da PIDE, aconteceu quando estávamos no liceu, marcou-nos e ajudou-nos a situarmo-nos nas áreas diversas da esquerda. Com a chegada da Democracia, sentiamo-nos no dever (e no prazer) de participar na construção de um Portugal melhor. Os empenhamentos foram múltiplos, quer ao suprir carências sociais, quer na participação cívica, ou ainda através da adesão a partidos políticos de esquerda. 76 REVISTA PORTUGUESA DE CIÊNCIA DAS RELIGIÕES

OS MOVIMENTOS CATÓLICOS JUVENIS NA SOCIEDADE PORTUGUESA Num tempo de grande mudança social como o que vivíamos, acreditávamos firmemente que as mediações políticas eram eficazes para conduzir a um mundo mais justo. Hoje em dia já ninguém acredita (nem nós) que o mundo se pode mudar com a simples intervenção de gente bem intencionada e um tanto ingénua, armada com uma certa dose de ideologia e muito voluntarismo. Mas na altura estávamos a protagonizar uma Revolução e a utopia era o nosso horizonte. Tudo era possível. Apesar de uma certa homogeneidade ideológica da JUC, havia a experiência concreta da diversidade de posicionamentos políticos entre os seus membros. Havia os militantes do M.E.S., da U.D.P, da U.E.D.S. (que era o meu caso), os próximos do PS e assim por diante, além de uma maioria que não tinha aderido a partido nenhum. As discussões políticas eram fascinantes. Mas era para nós claro que, como Movimento de Igreja, a JUC, como tal, não tinha que se imiscuir no quadro ideológico de referência dos seus membros. Da Fé podem decorrer vários empenhamentos político e ideológicos, quer à direita, quer à esquerda e nenhum Movimento de Igreja deve ter a veleidade de impor um único modelo de militância. Muito embora para nós fosse «natural» a opção pelos pobres que a nosso ver, se situava à esquerda. Deste empenhamento resultava uma dupla sensação de marginalização; dentro da Igreja éramos minoritários em número e em concepção de Igreja, éramos vistos como pertencendo aos Movimentos Progressistas, nos Partidos Políticos éramos as aves raras por sermos cristãos, quando a maioria dos outros militantes partidários eram ateus, ou agnósticos desconfiando que a Fé fosse o ópio do Povo. Enfim, uma experiência de duplo desconforto! Um aspecto muito interessante da formação da consciência cívica e política dos militantes da JUC, como paralelamente acontecia na JEC e julgo na JOC, eram as Sessões de Estudo sobre problemática social, tal como os Encontros de Reflexão Teológica, aconteciam anualmente e contavam com a contribuição de peritos no tema em análise. Se na minha curta experiência partidária tinha encontrado muito activismo e pouca reflexão teórica de fundo sobre a sociedade que queríamos transformar, na JUC encontrei a possibilidade de fazer uma leitura mais profunda e rigorosa das dinâmicas sociais sem qualquer sentido de luta pelo poder. Há que conhecer o que se quer transformar. As Sessões de Estudos foram preciosos contributos para que se compreendessem os Sinais dos Tempos. Esta função é eficientemente realizada pelos Movimentos e creio que fora deles existem poucos espaços em que esse trabalho se faça, quer do ponto de vista intra-eclesial quer na sociedade em geral. Uma última palavra para dizer que tudo somado, a experiência de ter passado pelos movimentos valeu a pena essencialmente a dois níveis; fez-nos crescer na Fé e fez-nos crescer como Pessoas responsáveis e livres, e além disso tecemos laços que permanecerão para sempre. É por isso uma experiência que gostaríamos que os jovens de hoje pudessem fazer à sua maneira. REVISTA PORTUGUESA DE CIÊNCIA DAS RELIGIÕES 77