TRANSIÇÃO SOCIAL E MUDANÇA SÓCIO-JURÍDICA NA CHINA CONTEMPORÂNEA

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Transcrição:

TRANSIÇÃO SOCIAL E MUDANÇA SÓCIO-JURÍDICA NA CHINA CONTEMPORÂNEA Avanço de investigação de Dissertação de Mestrado em andamento no Programa de Pós- Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul PPGS/UFRGS. Resumo: Gt 10: Estudos Políticos, Sócio-Jurídicos E Institucionais Vítor Eduardo Alessandri Ribeiro Logrando alcançar um rápido desenvolvimento ainda em curso no contexto recente de mudanças globais profundas, a China é atualmente uma potência em ascensão. Estudá-la é um esforço de grande proveito para as ciências humanas em geral. O presente trabalho apresenta alguns achados iniciais de pesquisa de dissertação de mestrado em curso e lança foco à questão da transformação institucional do sistema judiciário chinês implementada como forma de enfrentamento dos desafios sociais advindos do fenômeno de transição social. Palavras-chave: China, sistema judiciário, transição social Apresentação: Mapa da República Popular da China Mapa1. FONTE: Cia World Factbook. https://www.cia.gov/library/publications/the-worldfactbook/geos/ch.html A China, quarto maior país do globo em proporções territoriais, possui aproximadamente 9,6 milhões de quilômetros quadrados. Relativamente à divisão administrativa, é composta por 23 província 1, cinco regiões autônomas 2 e quatro 1 Anhui, Fujian, Gansu, Guangdong, Guizhou, Hainan, Hebei, Heilongjiang, Henan, Hubei, Hunan, Jiangsu, Jiangxi, Jilin, Liaoning, Qinghai, Shaanxi, Shandong, Shanxi, Sichuan, Yunnan, Zhejiang, além da ilha de Taiwan

2 municipalidades autônomas 3. As maiores cidades da China são, respectivamente, Xangai, no litoral, com 16,575 milhões de habitantes, Beijing, a capital, com 12,214 milhões de habitantes, Chongquing, a Oeste, com 9,401 milhões de habitantes, Shenzhen, com 9,005 milhões de habitantes e Guangzhou, com 8,884 milhões de habitantes, ambas as últimas na província de Guangdong, no litoral sul. A crise mundial na América Latina e noutras partes do mundo deixa evidente a conexão estabelecida entre os diferentes contextos regionais: impactos econômicos, sociais e políticos sentidos em certas regiões do globo terminam por se fazer sentir em todas as partes, embora com diferentes intensidades. Especialmente sensíveis são problemas ligados à violência e à cidadania, os quais podem ser melhor compreendidos quando situados no contexto de processos de mundialização da economia e da sociedade (Tavares dos Santos et al, 2011). Segundo a contribuição de Immanuel Wallerstein acerca da perspectiva analítica de sistema-mundo (Wallerstein, 1984), a reestruturação econômica e política do mundo no século XX, com a desmobilização da lógica do mundo bipolar da Guerra Fria, contribuíram para impulsionar uma ordem multipolar. Países sofrem com os efeitos do chamado capitalismo tardio (Jameson, 1996). A complexidade do mundo multipolar oferece desafios a todas as partes do mundo, incluído aí o conjunto de nações da América-Latina. Nesta ordem multipolar, a China emana como uma potência em ascensão e, portanto, estudá-la é uma tarefa cada vez mais importante. O campo das humanidades na China também se destaca pelo dinamismo. Praticamente desconhecida no Brasil, a sociologia chinesa é dinâmica e global: inserida na dimensão teórica de autores de demais partes do mundo, com eles dialoga; em sua dimensão empírica, produz sólidos dados, apóia-se sobre enquetes concretas, esforça-se por elaborar conceitos próprios. Sua diversidade é atestada pela multiplicidade de orientações teóricas, de métodos utilizados e de objetos de estudo (Wieviorka, 2011, p. 489). Em um período de pouco mais de meio século, a China logrou atingir um patamar de crescimento sem precedentes. Segundo Shen Yuan, [o]bservado em seus grandes traços e no longo prazo, o desenvolvimento da nova China possui um ritmo próprio um. Durante as três primeiras décadas após a fundação da República Popular da China, ou seja, entre 1949 e 1979, foi elaborado com sucesso um sistema totalitário típico, cuja característica fundamental era a apropriação da economia pelo do Estado. Com base nesse plano, a nova China, em um contexto de escassez de recursos após a guerra, foi capaz de estabelecer em um curto espaço de tempo, as bases iniciais da industrialização e modernização. De 1979 até hoje, o desenvolvimento da China, atravessa um segundo período caracterizado pela reforma econômica, isto é, a tentativa de libertar a economia das garras do estado, e da reorganização da economia de acordo com a regulamentação pelo sistema de preços. Nos últimos 30 anos, as reformas ajudaram a construir o quadro geral do sistema de economia de mercado e levou a um aumento sem precedentes de riqueza. (Shen Yuan., 2008, p. 299-300, tradução nossa). que é considerada pelo governo Comunista da China continental como uma província de seu território. Fonte: CIA World Factbook: https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/geos/ch.html. 2 Guangxi, Nei Mongol (Mongólia interior), Ningxia, Xinjiang Uygur, Xizang (Tibete). Fonte: CIA World Factbook https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/geos/ch.html. 3 Cidades administradas diretamente pelo poder central: Beijing, Tianjin, Chongqing e Xangai.

3 Mudanças em bases materiais da sociedade chinesa têm impactado significativamente nas instituições. Depois de muitas reformas econômicas, a estrutura da sociedade chinesa transformou-se radicalmente e se caracteriza atualmente por uma estratificação social cada vez mais clara, que produz novas desigualdades sociais. (Roulleau-Berger, 2011, p. 18). As desigualdades dão lugar a uma sociedade fraturada, no conceito de Roulleau-Berger. Li Peilin, Lu Xueyi, Li Qiang e outros sociólogos acreditam que diferentes formas de fragmentação nascem num contexto caracterizado pela sincronicidade entre processos de transição econômica e de transformação estrutural da sociedade. Nesse quadro de desigualdades sociais, aqueles que gozam de recursos sociais, econômicos e simbólicos diferenciam-se daqueles que, por não contar com tais recursos, partem para a economia informal ou mesmo para atividades criminais. Enormes também são os registros de desemprego ou mesmo exclusão mais ampla, que afligem principalmente pessoas menos qualificadas que se encontram sob condições de marginalização e de desfililação social (Roulleau-Berger, 2011, p. 33). A mudança social a partir de 1979 resulta do processo bem sucedido de transformações da economia nacional. A partir do instante em que se iniciaram os esforços oficiais para reorganização da economia nacional de acordo o princípio da regulação através do sistema de preços, a composição da população urbana e rural da China iniciou um processo de significativa alteração: no início do processo, a população rural era de cerca de 80% do total, e atualmente representa pouco menos da metade. Polução Rural Vs. População Urbana na China (1980-2010) Gráfico 1. FONTE: Banco Mundial. http://data.worldbank.org/indicator/sp.urb.totl.in.zs?page=6. Elaboração própria. De fato, o impulso ao desenvolvimento atingiu expectativas de promoção de crescimento e enriquecimento da nação, mas esse processo não se fez sem estar acompanhado de do aprofundamento da diferenciação social. De 1949, ano da subida dos comunistas ao poder na China, até 1978, ano em que Deng Xiaoping assume o poder, o aumento da riqueza nacional é sustentado a um ritmo médio acima de 6% ao ano, o que criou uma verdadeira base para sustentação ao salto que viria a ser experimentado dali em diante (Jabbour, 2010). Até o início das reformas, ou seja, antes de 1978, o maior empregador era o setor público. Com o setor público em reestruturação e a abertura à concorrência que se seguiu, surge o problema do desemprego e da desassistência com relação à proteção social. Segundo Roulleau-Berger, o

desemprego fragiliza a população menos qualificada que se encontra em situação de desfiliação social (Roulleau-Berger, 2011, p. 28). Em princípio, seriam enormes os desafios para promoção de justiça social num país com uma população de aproximadamente 1,3 bilhão de habitantes, que, apesar de sustentar um ritmo de crescimento econômico acelerado, produz crescente desigualdade social à medida que parte de sua população enriquece rapidamente. A tradição social rural chinesa não pressupunha diferenciação social, mas esta passa não só a existir, como também a se expandir em ritmo crescente. Numa leitura sociológica marxista do conceito de sociedade civil que se aproxima daquele de Michael Burawoy (Burawoy, 2003), o sociólogo chinês Shen Yuan afirma que uma característica importante do capitalismo desenvolvido é que ele produz uma sociedade civil (Shen Yuan, 2008, p. 301). A análise elaborada por Michael Burawoy, apropriada por Shen Yuan em seu estudo, reconhece que Gramsci e Polanyi, ao colocarem sociedade no centro das suas visões do Marxismo, deram ao socialismo um novo significado democrático (Burawoy, 2003, p. 243-4). Shen Yuan assume a premissa de ser a sociedade civil uma instância da vida social que não se confunde nem com o Estado, nem com o mercado, mas que com ambos entra em contato. Novos desafios surgem à vida econômica, social e política do país. De 1979 até os tempos atuais, autoridades chinesas têm realizado esforços também no sentido de reconstruir o ordenamento jurídico do país. Na nova era vivida pela China, o governo chinês tentou responder aos desafios impostos pelas mudanças econômicas e sociais e, ao mesmo tempo, preservar sua condição de liderança política e ideológica (Liang, 2008). A necessidade de promoção de reformas institucionais surge como uma força imperativa naquele país. A capacidade de gestão, bem como a manutenção da legitimidade do Partido Comunista chinês, estiveram e ainda estão em jogo. Diante desta situação vivida pelo país, é interessante lançarmos um olhar analítico a partir da ótica do estudo social do Direito. Algumas possibilidades teóricas permitem correlacionar mudanças sociais com a formatação de instituições do sistema judiciário. Dentre elas, destaca-se a investigação empreendida por Philippe Nonet e Philip Selznick sobre legalidade e moralidade, em considerando o predomínio da lei (rule of law, que também pode ser pensado como Estado de Direito) e desejos e necessidades do público, geralmente pensados como bem público. Nonet e Selznick (Nonet & Selznick, 2009) contribuíram com o entendimento que transformou o estudo social do Direito ao desenvolver uma abordagem que combina elementos tradicionais de jurisprudência com relação à natureza e fins legais, com uma análise ancorada no campo das ciências sociais, ou seja, pensando aqueles elementos sob as dinâmicas e os constrangimentos oferecidos por organizações sociais. São formas de relação que o Direito guarda com o poder. Embora tais relações posssam adquirir formas variadas e regimes legais possam diferir, se comparados uns com outros, de modo fundamental, as diferenças são identificáveis: diferentes configurações assumidas por tais regimes servem a interesses, valores e fins variados. Por toda a obra, pode-se compreender de modo geral que, em regimes que se caracterizem por códigos repressivos, as leis estão intimamente relacionadas ao poder e à política, beneficiando interesses dos mais poderosos, ao passo em que em regimes caracterizados por leis que conferem mais autonomia à comunidade, ou seja, em que as leis sejam mais responsivas às demandas sociais, o Direito encontra-se separado da política, e serve de constrangimento ao poder político (Nonet & Selznick, 2009). Guardando referência a esta noção de estudo social do Direito como em Nonet e Selznick, interesso-me por fazer uma aproximação ao sistema judiciário chinês de modo a compreender, em linhas gerais, suas transformações. Tal é o objetivo da pesquisa de mestrado ora em curso, restando importante revelar destarte que a consecução deste objetivo não será atingido no presente artigo. Mas algumas evidências podem ser apontadas neste instante. 4

De acordo com algumas das tais evidências encontradas até o presente estágio da pesquisa, parece algo evidente que algumas medidas têm sido tomadas pelo poder público chinês em direção à promoção de certo grau de transparência, embora não seja possível usar de superlativos nesta seara: se não são suficientes as transformações para afastar algumas reservas, são, contudo, animadoras (Scamparini & Tonanni, 2005). Algumas indicações podem induzir a uma compreensão mais aprofundada. A demonstração de alguns importantes achados de pesquisa segue uma elaboração que obedece à importância analítica da dominação e se atém à questão dos sistemas simbólicos na vida social (Weber, 2009). Conhecer o sistema judiciário chinês é conhecê-lo em relação a dinâmicas sociais, que estão em mudança e lhe afetam o funcionamento e a estrutura. Antes do processo de abertura e reformas, o conceito de lei era visto ideologicamente como uma ferramenta da qual dispunha a ditadura do proletariado para punir seus inimigos, algo coerente com o sistema legal chinês tradicional, em que predominavam sanções punitivas (Liang, 2008, p. 87-8). O sistema judiciário chinês após o ano de 1978 não somente é reformado, como também muitas de suas instâncias são forjadas a partir do zero. A estrutura formal básica desse sistema foi influenciada pelo ordenamento jurídico da antiga União Soviética durante a era Stálin. Possui apenas indiretamente algum fundamento compartilhado com o sistema civil romano. Em outras palavras, suas normas derivam de códigos e regulamentos editados pelos órgãos competentes e não do desenvolvimento jurisprudencial (Scamparini & Tonanni, 2005, p. 197). A China tem absorvido também, mais recentemente, elementos da chamada common law, sistema legal ancorado em desenvolvimentos jurisprudenciais, caracerizando-se, portanto, como um sistema híbrido. Entre os anos de 1966 e 1976, com a Revolução Cultural, diversas instituições chegaram a ser abolidas, mas lograram ser restabelecidas posteriormente. No entanto, leis novas foram promulgadas posteriormente, quer ab-rogando leis anteriormente existentes, quer aperfeiçoando-as. O maior exemplo de novidade no ordenamento jurídico chinês é a Constituição chinesa, de 04 de dezembro de 1982: promulgada pela Quinta Sessão do Congresso Nacional Popular, foi emendada em 1º de abril de 1988, em 29 de março de 1993, em 15 de março de 1999 e, novamente em 14 de março de 2004. Emblemático para o início de reformas mais profundas parece ter sido o reconhecimento da obsolescência da luta de classes, como convencionado pela Terceira Sessão Plenária do 11ª Comitê Central, realizada em fins de 1978, em que o Partido Comunista Chinês oficialmente manifestou que a principal contradição na China atualmente não é mais a luta de classes, mas a luta entre a crescente necessidade cultural e material do povo e o atraso da produção social (Leng apud Liang 2008, p. 47-8, tradução nossa). Daquele momento em diante, a China vivenciou um processo de burocratização (no sentido weberiano) não só de seu sistema legal, como também de outras instâncias da vida nacional, embora tal burocratização tenha ocorrido com um vetor de centralização para a política e o controle social, e de descentralização dos processos da esfera econômica. O sistema de tribunais teve rápida expansão uma vez reconhecida sua importância dentre os líderes políticos (Liang 2008, p. 53). A China possui quatro níveis hierárquicos de tribunais pelo país: Cortes locais, no nível de comarcas distritais; Cortes intermediárias, estabelecidas ao nível municipal, incluindo os municípios autônomos (adminstrados diretamente pelo poder Central em Beijing, sendo eles: Beijing, Tianjing, Shanghai e Chongqing); Cortes superiores, no nível provincial, e a Suprema Corte, sobre todas as demais. A Constituição Chinesa provê poderes concomitantes de órgão judicial do Estado (foro privilegiado a membros do Partido Comunista Chinês) e de corte com os mesmos poderes das cortes inferiores à Corte Popular Suprema. Além destas quatro, há ainda as tribunais especials: Cortes Militares, Cortes Marítimas e Cortes de Transportes Ferroviários. Todas estas possuem o 5

6 status equivalente às Cortes intermediárias e julgam casos restritos às suas demonominações. Ademais, o Comitê Central do Partido Comunista tem poderes sobre a Suprema Corte, denotando uma particularidade do modelo chinês. Como parte do sistema judiciário chinês, as Cortes chinesas têm sido fortalecidas com o processo de estruturação do âmbito legal no país (Liang, 2008). Um exemplo digno de ser mencionado: no ano de 1999, a Corte Suprema Chinesa publicou um documento com os contornos da reforma da Corte Popular para o período subsequente de cinco anos, intitulado An Outline of the Reform of the People s Court in the Next Five Years ( 人 民 法 院 五 年 改 革 纲 要 ) em evidente esforço de promover transparência com relação aos preceitos da reforma que ainda estava, quando da sua publicação, por acontecer (Liang, 2008). O gráfico abaixo, extraído como dado secundário para o presente artigo mostra a crescente tendência das cortes em primeira instância em aceitar casos para julgamento naquele período em que o sistema judiciário estava se tornando uma das mais populares organizações na China (Liang, 2008, p. 52-3). Casos aceitos pelas Cortes de Primeira Instância Gráfico 2. Fonte: LIANG, B. The Changing Chinese Legal System, 1978-present: Centralization of Power and Rationalization of the Legal System. New York: Routledge, 2008, p. 53. É destacada a prevalência de casos civis levados a juízo, seguidos por casos em litígios econômicos. Em terceiro lugar, ao contrário do que se pudesse imaginar ser o caso em país de poder totalitário, vem o arbítrio para casos criminais. Por fim, uma aparente inalteração, ao longo do intervalo dos 28 anos cobretos pelo gráfico, de casos levados a cortes de primeira instância versando sobre questões administrativas, com a exceção do salto na curva de casos cíveis de 2001 para 2002. O artigo 125 da Constituição da China estabelece a garantia do direito à ampla defesa, sendo que a legislação sobre o processo criminal estabelece procedimentos específicos para o

7 respeito a essa garantia. A estrutura do sistema judiciário chinês estipula que julgamentos são definitivos em segunda instância. Isso significa que as decisões proferidas em primeira instância podem apenas sujeitar-se a recurso por uma única vez, sendo exceções aplicáveis apenas em casos de pena de morte, que poderão ser reportados à Suprema Corte Popular para verificação e aprovação (dispositivos regulados pela Lei de Organização dos Tribunais da China e pela Lei do Processo Criminal). No caso de pena de morte, a Suprema Corte Popular poderá ainda autorizar um Tribunal Superior, instância sujeita àquela corte e localizada em nível provincial, a exercer o poder de decisão em casos previstos em lei. Ainda, processos criminais, civis e administrativos podem ser passíveis de impedimento. Por esse mecanismo, a parte acusada poderá evocar a retirada do juiz, promotor ou delegado do caso diante da possibilidade do entendimento de que estes possam prejudicar a neutralidade do julgamento. São indícios de que alguns poderes têm sido conferidos em temas sensíveis a indivíduos em processos litigantes. São indicações importantes de que há casos identificáveis de dispositivos legais instituídos no ordenamento jurídico da China que oferecem algum constranfimento ao menos formal ao poder político. Certamente, o modelo de sistema judiciário chamado por Nonet e Selznick de responsivo (Nonet & Selznick, 2009, p. 73-113) refere-se a uma categoria ideal-típica. Contudo, nos casos particulares identificados preliminarmente na pesquisa corrente, o Direito parece restar de certa forma resguardado dos ditames totalitários do poder político, o que não ocorre em sistemas caracterizados pela prevalência de códigos repressivos. Isto oferece indicação de algo importante, uma direção válida para a continuidade da pesquisa. A Constituição, as leis, os regulamentos, as portarias e as normas guardam relações hierárquicas entre si regulamentadas pela Lei de Processo Legislativo. O Artigo 78 da Lei Regulamentadora do Processo Legislativo dispõe que a Constituição da China é a autoridade legal máxima, sobrepondo-se a todas as demais norma (Scamparini & Tonanni, 2005, p. 205). Outro dispositivo que evidencia não só a transparência do sistema judiciário chinês na contemporaneidade, mas também a existência de uma ordem que confira ao menos algumas proteções aos cidadãos contra o poder de Estado é o Artigo 84 da Lei Regulamentadora do Processo Legislativo. Segundo esse artigo, as leis, os regulamentos administrativos, os regulamentos locais e autônomos, as portarias ministeriais e as normas administrativas não possuem efeito retroativo a não ser em casos que beneficiem as defesa de direitos e interesses dos cidadãos, pessoas jurídicas ou outras organizações, inclusive estrangeiros e pessoas jurídicas e organizações constituídas no exterior (Scamparini & Tonanni, 2005, p. 205). À guisa de conclusão desta apresentação, é importante retomar o ponto destacado por Bin Liang na apresentação de sua obra: [e]mbora o estudo do sistema judiciário chinês tem se expandido significativamente nas duas últimas décadas, ainda há a necessidade de realização de mais estudos por uma série de razões. Em primeiro lugar, a natureza mutável do atual sistema legal tornou muitos estudos anteriores obsoletos, e manter o passo com resenvolvimentos recentes é crucial para a compreensão do atual sistema judiciário chinês. Em segundo lugar, o sistema judiciário chinês demonstra um caráter de complexidade no atual período de transição. Novos elementos são introduzidos no sistema mesmo enquanto práticas anteriores ainda estejam vigentes. Esta situação é complicada ainda mais por diferentes níveis de desenvolvimento em diferentes regiões (por exemplo: a região costeira do leste versus a região interiorana a oeste; o urbano versus o rural). Em terceiro lugar, somente um pequeno número de estudos são baseados em coletas primárias a partir do

8 campo (...). Finalmente, com raras exceções, estudos prévios falham ao analisar o processo de legalização em um contexto global (Liang, 2008, p. 11, tradução nossa). Parece lançado, portanto, o deasfio. REFERÊNCIAS ADORNO, Sérgio. Conflitualidade e violência: reflexões sobre a anomia na contemporaneidade. Revista de Sociologia da USP 10 (s.d.): p.19-47. BAYLEY, David H. Padrões de Policiamento: Uma Análise Internacional Comparativa. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001. BURAWOY, Michael. For a Sociological Marxism: The Complementary Convergence of Antonio Gramsci and Karl Polanyi. Politics and Society 31 (2003), p. 243. GARLAND, David. The Culture of Control. Oxford: Oxford University Press, 2001. GRANET, Marcel. O pensamento chinês. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX. 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. IANNI, Octávio. Capitalismo, violência e terrorismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. IANNI, Octávio. A Sociedade Global. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992. JABBOUR, Elias Marco Khalil. Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado na China de Hoje. Tese (Doutorado em Geografia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2010. JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1996. LI, Peilin, et al. La Sociologie chinoise face à la transition sociale. In: La nouvelle sociologie chinoise, In: ROULLEAU-BERGER, Laurence, et al. (orgs.). La nouvelle sociologie chinoise. Paris: CNRS Éditions, 2008. LIANG, B. The Changing Chinese Legal System, 1978-present: Centralization of Power and Rationalization of the Legal System. New York: Routledge, 2008. NONET, Philippe Nonet; SELZNICK, Philip. Law and society in transition: toward responsive law. New York: Harper & Row, 2009. ROULLEAU-BERGER, Laurence. Pluralisme et identité de la sociologie chinoise contemporaine. In: ROULLEAU-BERGER, Laurence, et al. (orgs.). La nouvelle sociologie chinoise. Paris: CNRS Éditions, 2008, p 13-80. SCAMPARINI, Adriana; Fernando TONANNI. O Sistema Judiciário Chinês. In: Brasil- China: comércio, direito e economia. In: FURLAN, Fernando de Magalhães & FELSBERG, Thomas (eds.). São Paulo: Lex Editora, 2005, Capítulo IX, p.195-257. SHEN, Yuan. Vers les droits du citoyen: la defénse des droits des propriétaires comme mouvement citoyen dans la Chine contemporaine. In: ROULLEAU-BERGER, Laurence, et al. (orgs.). La nouvelle sociologie chinoise. Paris: CNRS Éditions, 2008, p. 299-326. SUN, LiPing. Sociologie de la transition et nouvelles perspectives théoriques. In: La nouvelle sociologie chinoise, In: ROULLEAU-BERGER, Laurence, et al. (orgs.). La nouvelle sociologie chinoise. Paris: CNRS Éditions, 2008, p. 93-118 TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. Novas questões sociais mundiais, projetos sociais e culturais e a planificação emancipatória. In: TAVARES DOS SANTOS, José Vicente, et al (orgs.) Violência e cidadania: práticas sociológicas e compromissos sociais. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2011, p. 413-437.

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