Doutrina A Impossibilidade de Imputação pelo Delito de Peculato a Funcionários de Empresas Públicas e Sociedades de Economia Mista RAFAEL BRAUDE CANTERJI Advogado Criminalista, Professor de Direito Penal da PUCRS, Mestre e Especialista em Ciências Criminais, Coordenador Regional do IBCCrim, Conselheiro Seccional da OAB/RS, Diretor da Escola Superior de Advocacia da OAB/RS. ROBERTA WERLANG COELHO Advogada Criminalista, Especialista e Mestranda em Ciências Criminais pela PUCRS, Colaboradora do Caderno de Jurisprudência do Boletim do IBCCrim. CHIAVELLI FACENDA FALAVIGNO Acadêmica de Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O delito de peculato, previsto no art. 312 do Código Penal, consiste em o funcionário público apropriar-se de bem móvel, público ou particular, em razão de seu cargo. Como se observa pela descrição do tipo legal, trata-se de crime próprio, no qual o sujeito ativo deve ter a característica exigida por lei, neste caso, ser funcionário público. A definição de funcionário público para os crimes previstos no Título XI, Capítulo I, do Código Penal está disposta no art. 327 do mesmo Diploma: Art. 327. Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública. 1º Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública. 2º A pena será aumentada da terça parte quando os autores
dos crimes previstos neste Capítulo forem ocupantes de cargos em comissão ou de função de direção ou assessoramento de órgão da Administração direta, sociedade de economia mista, empresa pública ou fundação instituída pelo Poder Público. A definição constante no caput do art. 327 se refere claramente aos funcionários que exercem atividade em órgãos da Administração Pública direta, ainda que oriundos estes últimos de processos de desconcentração. Ademais, incluem-se os trabalhadores que possuem vínculo contratual ou de mera prestação de serviços para com a Administração, não sendo necessário que vigore o regime estatutário. Desta forma, em que pese a amplitude do conceito, devem ser respeitados os limites legais.
122 RDP Nº 70 - Out-Nov/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA A desnecessidade da existência de vinculação típica do serviço público é admitida, possivelmente, tendo-se em vista a importância dos órgãos nos quais o trabalho é exercido, uma vez que os danos causados a órgãos da Administração Pública direta causam grave prejuízo à sociedade como um todo, tendo-se em vista que tais órgãos não possuem intuito lucrativo, sendo a renda por eles obtida totalmente revertida em proveito social. Assim sendo, um desvio nessa verba pode ser facilmente conectado à carência na prestação de serviços por estes mesmos órgãos. Tem-se que, conforme se depreende do art. 327, 1º, do Código Penal, equiparam-se a funcionários públicos aqueles que exercem atividade laborativa em entidade paraestatal ou empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública. Faz-se necessário, para desenvolver a presente argumentação, a utilização de definição oriunda do direito administrativo, no que diz respeito à distinção do conceito de empresas públicas e de sociedades de economia mista do conceito de entidades paraestatais. Como bem leciona Hely Lopes Meirelles1, em edição atualizada em relação à primeira edição lançada nos anos 60, ao rever a matéria e apontar distinção. Em meados da década de 1960, quando o autor lançou a 1ª edição desta obra, justificava-se essa sistematização, já que - como ele próprio afirmava - a doutrina e a legislação brasileira confundiam com frequência o ente autárquico com o paraestatal. Ao longo de todos esses anos, contudo, houve acentuada evolução da matéria, embora ainda persistam muitas incongruências nos textos legislativos. Embora se tenha difundido a expressão "entidade paraestatal" com o conceito que lhe dera o autor, está hoje assentado, inclusive em decorrência das normas constitucionais, que as fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista fazem parte da Administração indireta do Estado. Ora, se fazem parte da
Administração indireta do Estado, não podem estar ao lado deste, como entes paraestatais. Assim, julgamos conveniente substituir este tópico para cuidar diretamente das empresas estatais ou governamentais, mesmo porque, em face da EC 19/1998, passaram a ter tratamento diferençado, conforme seu objeto de atuação. Nota-se claramente que as figuras não se confundem e, muito menos, tratam-se de gênero e espécie, em qualquer ordem. Ademais, sabe-se que os trabalhadores de algumas sociedades de economia mista sequer são regidos pelas leis que regulamentam o serviço público, incidindo em seu regime laborativo a Consolidação das Leis Trabalhistas. Tal determinação decorre do art. 173, 1º e 2º, da Constituição Federal.
RDP Nº 70 - Out-Nov/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA 123 Em uma leitura mais cuidadosa do artigo citado, depreende-se que é aplicado às sociedades de economia mista e às empresas públicas regime quase idêntico ao aplicado às empresas privadas, tendo em vista o fim de manutenção da concorrência e da igualdade de condições comerciais, eis que se trata de exercício de atividade econômica propriamente dita por parte do Estado em parceria com a sociedade civil. Tal, aliás, só pode ocorrer se a referida sociedade de economia mista se der na forma de sociedade anônima, o que possibilita a inserção de ações da empresa na Bolsa de Valores. Ora, se tais funcionários não se beneficiam de grande parte das vantagens usufruídas pelos servidores públicos, nem as empresas em que trabalham possuem as prerrogativas econômicas concedidas às empresas estatais, qual o fundamento de punir os primeiros com o mesmo rigor dos segundos? Trata-se de clara violação do princípio da igualdade, presente no art. 5º, caput, da Constituição Federal, uma vez que se está tratando da mesma forma indivíduos submetidos a situações diversas. É notável, aliás, que há uma série de distintas possibilidades de conceituação para o termo entidade paraestatal na legislação penal e administrativa brasileira, sendo que, na maioria delas, este é colocado em separado da definição de sociedade de economia mista ou de empresa pública, restando ainda mais claro que as últimas não se tratam de subespécies da primeira. É possível vislumbrar-se tal afirmação no art. 30, II, do Estatuto da Advocacia (Lei nº 8.906/1994), e no art. 283, 2º, do Código Eleitoral brasileiro (Lei nº 4.737/1965). O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo já decidiu que tratando-se de sociedade de economia mista, os seus empregados não podem ser considerados funcionários públicos para os fins do parágrafo único do art. 327 do CP, porque essa disposição legal só equipara a funcionários públicos os que exercem atividade em entidade paraestatal, não se referindo, expressamente, às sociedades de economia mista. 2
Nesta mesma linha, o Superior Tribunal de Justiça decidiu ser imprópria a equiparação de sociedade de economia mista e empresa pública com o termo "entidade paraestatal", em caso que analisava a ocorrência de suposta fraude perpetrada por trabalhadores da Empresa Pública de Correios e Telégrafos3. Em que pese estas decisões estejam em consonância com a correta aplicação jurídica dos termos, tanto na seara penal quanto na administrativa, não é, infelizmente, a predominante atualmente.
124 RDP Nº 70 - Out-Nov/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA Assim, conclui-se, em relação ao 1º do art. 327 do Código Penal, que sociedade de economia mista e empresa pública, diferindo do conceito de entidade paraestatal, não estão nele elencadas, sendo seu rol taxativo. Além da argumentação relativa à violação do princípio da igualdade, tem-se direta lesão, pelos motivos aqui expostos, ao princípio da legalidade, uma vez que é inviável o uso de interpretação extensiva em sede de Direito Penal. No que tange ao 2º do referido artigo, contudo, há referência expressa à sociedade de economia mista e empresa pública, determinando uma majorante no caso de os autores do delito ocuparem cargos de direção ou assessoramento nas referidas instituições. No entanto, não é possível auferir-se desse aumento de pena que a punição dos demais trabalhadores das referidas entidades na forma do caput, eis que tal deveria estar expresso, sob pena de configurar-se a utilização de analogia in malam partem, o que é vedado pelo Direito Penal pátrio. Nesse sentido, inviável que se acusem trabalhadores de empresas públicas e sociedades de economia mista pelo delito de peculato com base no parágrafo anteriormente referido. De acordo com o exposto, é possível concluir-se que, definitivamente, as hipóteses previstas no Código Penal não abrangem, no conceito de funcionário público, os trabalhadores de sociedades de economia mista e empresas públicas, principalmente pelo fato de que estas não são mais compreendidas pelo termo entidade paraestatal. Tal, admite-se, dá-se atualmente em razão da modificação doutrinária do conceito de entidade paraestatal ocorrido no direito administrativo brasileiro. Importante salientar que ainda há na legislação brasileira normas que equiparam os funcionários de entidade paraestatal aos de empresas públicas e sociedades de economia mista, como a que consta no art. 84 da Lei nº 8.666/1993. Impossível, contudo, utilizar-se dessa conceituação sem a devida alteração do texto constante no
Código Penal, eis que tal medida afronta a segurança jurídica. Assim, necessário se faz que o posicionamento jurisprudencial seja alterado, excluindo as pessoas vinculadas a "sociedade de economia mista e empresas públicas" do conceito penal de funcionário público.