Atenção primária à saúde em Portugal experiências e desafios Patrícia Barbosa Investigadora Escola nacional de Saúde Pública, Universidade Nova de Lisboa; Colaboradora do Observatório Português dos Sistemas de Saúde Vítor Ramos Médico de Família; Docente Escola nacional de Saúde Pública, Universidade Nova de Lisboa Ana Escoval Coordenadora do Observatório Português dos Sistemas de Saúde; Docente Escola nacional de Saúde Pública, Universidade Nova de Lisboa Marcos estruturantes A história da atenção primária em Portugal, tem 42 anos e um conjunto de marcos estruturantes. Em 1971 foram criados os primeiros centros de saúde (Decreto-Lei 413/71), com atividades preventivas, de promoção da saúde e de saúde pública. Em 1979 foi criado um Serviço Nacional de Saúde (SNS) universal, geral e gratuito para garantir o direito à protecção da saúde a todos os cidadãos. A partir de 1983, os centros de saúde integraram cuidados personalizados e a medicina de família. Entre 1982 e 1988 foram colocados cerca de 6000 jovens médicos nestes centros e cada cidadão passou a ter ligação personalizada ao seu médico de família (Despacho normativo 97/83 - centros de saúde, ditos de segunda geração ). O enquadramento organizativo era, então, pouco favorável à prática de uma medicina centrada na pessoa e na família. Os centros de saúde não tinham capacidade de gestão e eram controlados à distância por órgãos burocráticos, com problemas de funcionamento. Tudo isto contribuía para a insatisfação dos utentes e dos profissionais. Entre 1996 e 1999 foram feitas experiências de inovação organizativa tais como: os Projetos Alfa, baseados na auto-organização em equipas; os grupos RRE (Decreto-Lei nº 117/98 - regime remuneratório experimental), iniciando um modelo retributivo misto dos médicos de família, com uma componente associada ao desempenho; o projecto Tubo de Ensaio em que um centro de saúde, abrangendo 25.000 pessoas, passou a ser gerido autonomamente, por contrato entre o SNS e a Faculdade de Medicina do Porto. Em 1999 houve uma tentativa para reorganizar todos os centros de saúde em pequenas equipas multiprofissionais, passando os centros de saúde a ter autonomia de gestão. Esta tentativa ficou conhecida por centros de saúde de 3ª geração (Decreto-lei nº 157/99). Porém, surgiram diversos 1
obstáculos à sua concretização, quer a partir de alguns sectores do Governo quer, sobretudo, no aparelho burocrático da administração pública tradicional. Entre 2000 e 2004 viveu-se um período de contradições e de estagnação da mudança iniciada. Em 2005, um Grupo Técnico nomeado pelo novo Ministro da Saúde fez um balanço das lições aprendidas e delineou uma estratégia para relançar a mudança planeada em 1996-1999. Esta estratégia assentou em três vertentes: a) Constituição, em 2005, de uma Missão para os Cuidados de Saúde Primários (MCSP), enquanto liderança nacional, externa ao aparelho burocrático da administração, mas com poder para o influenciar; b) Estímulo e apoio à constituição voluntária de equipas multiprofissionais auto-organizadas (20 a 25 elementos, em média), capazes de mobilizar e de potenciar o brio, a criatividade e a capacidade empreendedora dos profissionais mais ousados e desejosos da mudança foram as unidades de saúde familiar (USF); c) Responsabilização destas equipas por objectivos contratualizados de desempenho, com monitorização e avaliação, assegurando-lhes proteção política, legislativa e administrativa face aos obstáculos identificados anteriormente (Decreto-lei n.º 298/ 2007). Os princípios estruturantes e as finalidades visadas eram: Melhor acesso a cuidados de saúde de qualidade, por parte do maior número possível de cidadãos; Responsabilidade de cada equipa pela prestação de cuidados à população inscrita, no próprio dia se necessário, através dum sistema inteligente de gestão de oferta de cuidados e de intersubstituição profissional; Auto-organização e auto-regulação dos profissionais, com forte espírito de pertença a um projeto comum; Contratualização do desempenho e de resultados o que requer compromissos e procedimentos claros, pré-definidos e transparentes, e sistemas de informação confiáveis; Reforço da promoção da saúde da comunidade e do envolvimento e capacitação dos cidadãos; Melhoria contínua da qualidade, através de dispositivos de governação clínica e de saúde e da promoção de boas práticas clínicas; Nova ecologia para o trabalho profissional no Serviço Nacional de Saúde (SNS), com alta capacidade de auto-regulação, trabalho em equipa com capacidade de decidir localmente, sentido de pertença acompanhadas por formas de remuneração e incentivos associados ao desempenho e por melhoria das condições de trabalho das equipas; Participação dos profissionais da primeira linha na configuração e implementação das políticas públicas de saúde; 2
Modelo avançado de gestão pública, com autonomia contratualizada. A reforma iniciada em 2005 e desafios atuais A partir de 2006, deu-se em Portugal uma mudança substancial na organização da atenção primária à saúde, a qual foi logo no seu início considerada um acontecimento extraordinário e uma rutura com a forma tradicional de conceber, transformar, organizar, gerir e prestar cuidados de saúde nos serviços públicos do país (Relatório Acontecimento Extraordinário, 2009). Esta mudança foi despoletada com a constituição voluntária de unidades de saúde familiar (USF) - pequenas equipas multiprofissionais, orientadas para a prestação de cuidados centrados na pessoa e na família. São equipas com carácter estrutural permanente no organigrama dos centros de saúde, dotadas de considerável grau de autonomia contratualizada. Para além das USF, a reforma abrange várias outras vertentes: Rede descentralizada de equipas Concentração de recursos e partilha de serviços Descentralização da gestão para o nível local Governação clínica e de saúde Participação da comunidade Equipas multiprofissionais de tipo estrutural permanente, com missões específicas: cuidados à pessoa e à família (USF e UCSP), cuidados a grupos com necessidades especiais e intervenções na comunidade (UCC), intervenções no meio físico e social e acções com alcance populacional (USP). Equipa multiprofissional que assegura e rentabiliza serviços específicos, assistenciais e de consultadoria às unidades funcionais e aos projectos de saúde comuns a várias unidades e ao ACES (URAP) Criação de ACES com diretores executivos e conselhos executivos e desenvolvimento de competências locais para a gestão de recursos (UAG), obtendo economias de escala com a agregação dos anteriores centros de saúde Desenvolvimento de um sistema de pilotagem técnicocientífica envolvendo todos os profissionais, sob orientação do conselho clínico de cada ACS e dos conselhos técnicos das suas unidades Ênfase e reforço da participação da comunidade através de órgãos como os gabinetes do cidadão e os conselhos da comunidade Fonte: A Reforma numa página, in www.csp.min-saude.pt (2011) Em 2009, quando já estavam em atividade mais de 200 USF, deu-se início à reorganização normativa dos restantes profissionais em equipas e 3
foram criados órgãos próprios da gestão local, abrangendo vários de centros de saúde - agrupamentos de centros de saúde, ACES (Decreto-lei n.º 28/2008). Tanto os ACES como as suas equipas/unidades funcionais passam a contratualizar objetivos referentes a um quadro de indicadores, num contexto de accountability e de avaliação de resultados. Apesar dos sucessos e dos resultados conseguidos, existem várias limitações, que colocam grandes desafios à atenção primária e que a seguir se resumem. Unidades de saúde familiar (USF) recrudesceram os obstáculos levantados pela administração à entrada em actividade de novas USF e à evolução das existentes para estádios mais avançados de autonomia organizacional. Existem 383 USF em actividade, mas são necessárias cerca de 830 para cobrir toda a população um objetivo possível até 2020. Paralelamente, tem havido escasso progresso na acreditação das USF. Unidades de cuidados na comunidade (UCC) ausência de investimento nestas unidades e incapacidade da administração em criar centros de custos e em contratualizar com elas. Unidades de saúde pública (USP) escassez de recursos humanos qualificados e incapacidade da administração em criar centros de custos e em contratualizar com estas unidades. Unidades de recursos assistenciais partilhados (URAP) são semelhantes às NASF do Brasil. Porém, têm em geral um reduzido skill-mix. A sua missão é a de apoiar as restantes unidades funcionais de cada ACES, mas está por iniciar a contratualização com estas URAP. Agrupamentos de centros de saúde (ACES) permanecem sem autonomia de gestão e a sua governação clínica e de saúde é, ainda, muito incipiente. Interfaces e interligação com os cuidados secundários, terciários e continuados - os cuidados centrados na pessoa, ao longo do sistema de saúde ainda é um objetivo por atingir em muitos locais. Persistem descontinuidades e deficiências de interligação e de comunicação com os cuidados hospitalares e os de longa evolução que causam desperdício de recursos e menor efetividade da atenção à saúde. Gestão de pessoal os ACES, sem autonomia de gestão, estão impedidos de resolver o problema dos recursos humanos e dos seus contratos, por vezes precários, o que coloca em risco a prestação de serviços. Esta precariedade e o atraso no pagamento de incentivos financeiros contribuem, entre outros fatores, para a insatisfação e para o atraso no desenvolvimento das unidades. 4
Contratualização existem atrasos recorrentes nos diversos passos deste processo. Se estes desafios não forem ultrapassados, a atenção primária corre o risco de regredir, com efeitos negativos para a saúde da população. 5