Representação nº 140/98 RECOMENDAÇÃO Nº 23/99 Trata o procedimento de representação formulada por Paulo Murilo Castilho Barone em face da recusa da Polícia Federal em São Paulo em lhe conceder passaporte com prazo de validade aplicável a brasileiros natos (5 anos). Esclarece e comprova ter nascido na cidade francesa de Besançon, em 12/5/69, tendo seus pais providenciado o devido registro do nascimento no Consulado Brasileiro em Paris. Em 1970 o representante e sua família retornaram ao Brasil, tendo sido providenciado o registro civil perante o Cartório do Registro Civil das Pessoas Naturais. No entanto, o Cartório do Registro Civil inseriu em seu assentamento ressalva no sentido de que até quatro anos após a maioridade deveria o representante fazer opção pela nacionalidade brasileira. Com base nessa ressalva da Certidão de Nascimento e na falta de opção de nacionalidade, a Polícia Federal estaria negando o passaporte de brasileiro nato. Solicitadas informações à Delegacia de Polícia Marítima, Aérea e de Fronteiras da Superintendência Regional em São Paulo da Polícia Federal, veio aos autos o Ofício de fls. 20 por meio do qual aquele órgão manifesta o seu entendimento de que o representante necessitaria optar formalmente pela nacionalidade brasileira, o que poderá ser feito a qualquer tempo. Por outro lado, indagado ao Registro Civil das Pessoas Naturais do Primeiro Subdistrito o motivo da ressalva, pouco esclareceu a Oficial (fls. 47/48).
2 Situados os fatos, passo a analisar a questão. O representante nasceu em França sob a vigência da Constituição Brasileira de 1967. Dispunha, então, o artigo 140, inciso I, alínea c da Constituição: Art. 140 São brasileiros: I Natos:... c) os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, embora não estendo êstes a serviço do Brasil, desde que, registrados em repartição brasileira competente no exterior, ou não registrados, venham a residir no Brasil antes de atingir a maioridade. Neste caso, alcançada esta, deverão, dentro de quatro anos, optar pela nacionalidade brasileira. Esse dispositivo, com pequenas alterações de redação, foi mantido pela Emenda Constitucional nº 1/69, como artigo 145, inciso I, alínea c. Percebe-se facilmente da norma transcrita, que, à época em que nasceu o representante, consideravam-se como brasileiros natos os nascidos no estrangeiro, filhos de pai ou mãe brasileiro que não estavam a serviço do País, desde que registrados em repartição competente do Brasil no exterior. Essa é justamente a hipótese do representante: nascido em França, filho de pai e mãe brasileiros, foi registrado no Consulado do Brasil em Paris. Logo, perante a Constituição em vigor na data de seu nascimento, Paulo Murilo Castilho Barone é brasileiro nato. De destacar que a exigência de posterior opção de nacionalidade somente existia para os casos de filhos de brasileiros que não sendo registrados em repartição brasileira competente no exterior vieram a residir no Brasil antes da maioridade. Essa não é a hipótese do representante, haja vista terem seus genitores providenciado o devido registro do nascimento no Consulado Brasileiro em Paris (fls. 8).
3 Portanto, conclui-se sem maiores dificuldades que o registro civil de nascimento realizado no Brasil incorreu em erro administrativo, pois fez constar indevida ressalva de que o representante deveria, após a maioridade, optar pela nacionalidade brasileira. Como visto, Paulo Barone já era brasileiro nato independentemente de qualquer ato posterior de opção. A Constituição de 1988, por sua vez, modificou essa regra de aquisição da nacionalidade, suprimindo a hipótese em que incorreu o representante. Ou seja, a partir de 1988, são brasileiros natos os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que venham a residir na República Federativa do Brasil e optem, em qualquer tempo, pela nacionalidade brasileira; (art. 12, I, c, com a redação da EC de Revisão nº 3/94). O fato da Constituição de 1988 não mais prever o registro perante repartição brasileira no exterior como forma de aquisição da nacionalidade ao filho de brasileiros nascidos no exterior, não significa, todavia, que aqueles anteriormente considerados natos pela norma da Constituição de 1967 tenham perdido a nacionalidade. Com efeito, não é dado ao Poder Constituinte, nem mesmo o originário, retirar de membro da sociedade, do povo, a condição de brasileiro. Isso porque o próprio Poder Constituinte pertence ao povo: Só o povo entendido como um sujeito constituído por pessoas homens e mulheres pode decidir ou deliberar sobre a conformação da sua ordem político-social. Poder constituinte significa, assim, poder constituinte do povo (Canotilho) 1. Ora, se Paulo Barone era brasileiro nato, também era um dos titulares do poder constituinte originário e, com toda certeza, não poderia ver suprimida a sua nacionalidade. Verificamos, aqui, a existência de um limite material ao próprio Poder Constituinte originário, na espécie denominada por Jorge Miranda como limite transcendente: 1 Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2ª edição. Almedina Coimbra, 1998, p. 69; grifos no original.
4 Entre eles avultam os que se prendem com os direitos fundamentais imediatamente conexos com a dignidade da pessoa humana. Seria inválido ou ilegítimo decretar normas constitucionais que gravemente os ofendessem (v.g., que estabelecessem o arbítrio no seu tratamento pelo Estado, que negassem a liberdade de crenças ou a liberdade pessoal, que criassem desigualdades em razão da raça ou em Portugal, pelo menos, que restaurassem a pena de morte). (Manual de Direito Constitucional, tomo II. 3ª edição. Coimbra Editora. Coimbra : 1996. p. 107). Na espécie não se trata de uma norma inconstitucional. Soluciona-se o aparente impasse com aplicação apenas para frente da nova norma que restringe ao menos nesse aspecto uma forma de aquisição da nacionalidade brasileira. Assim, é evidente que a regra da Constituição de 1988 não alcança quem já era brasileiro nato e, portanto, o representante era e continua a ser brasileiro nato, independentemente de passadas ou futuras alterações na ordem constitucional. Não fosse assim, e sempre boa parcela do povo brasileiro correria o risco de, advindo uma nova ordem constitucional, deixar de ser brasileiro. Bastaria, por exemplo, a adoção restrita do jus soli ou do jus sanguini. É, portanto, inaplicável ao representante a hipótese de opção de nacionalidade. Ele já é brasileiro nato e não teria nenhum interesse processual em optar novamente por uma condição que já possui. Resta, pois, ao representante requerer a retificação do seu registro civil através da ação própria, prevista no artigo 109 da Lei nº 6.015/73. Não obstante, o Poder Público deve, nas suas relações com o representante, considerar a sua efetiva condição de brasileiro nato. É o que fez, aliás, o Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo que, ao
5 dar posse para o representante exercer cargo público, reconheceu de ofício a condição de brasileiro nato (fls. 3). Isso porque o equivocado ato do Registro Civil das Pessoas Naturais não vincula a administração pública, mormente se, por outros meios, o cidadão comprova de forma inequívoca sua regular situação de brasileiro nato. Nesse sentido, resolve o Ministério Público Federal RECOMENDAR, com fundamento no artigo 6º, inciso XX da Lei Complementar nº 75/93, ao Superintendente da Polícia Federal em São Paulo, que determine a adoção das medidas necessárias ao adequado tratamento de Paulo Murilo Castilho Barone como brasileiro nato, inclusive na concessão de seu passaporte. São Paulo, 15 de outubro de 1999. MARLON ALBERTO WEICHERT Procurador da República Procurador Regional dos Direitos do Cidadão