As Denominações de Origem de vinhos portugueses e a recuperação de variedades nacionais de videiras (Vitis vinifera)



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Transcrição:

As Denominações de Origem de vinhos portugueses e a recuperação de variedades nacionais de videiras (Vitis vinifera) Orlando Simões CERNAS Centro de Estudos de Recursos Naturais, Ambiente e Sociedade, Escola Superior Agrária de Coimbra Introdução Segundo a legislação comunitária, o vinho de qualidade (VQPRD) só pode ser produzido com base em castas ou variedades da videira europeia (vitis vinifera). Desde os primórdios da viticultura que se têm diferenciado milhares de castas com características particulares, sendo Portugal um dos países mais ricos do mundo em termos de número e qualidade de castas autóctones. Neste trabalho discute-se a origem e o reconhecimento internacional do conceito de denominação de origem de vinhos, assim como os efeitos desta noção sobre a biodiversidade no caso da videira europeia. São ainda discutidos os efeitos de diversos processos de selecção da videira sobre a variabilidade genética das principais castas tradicionais portuguesas, usadas na produção de vinho. 1. Acerca do conceito de Denominação de Origem A ligação de um produto agrícola à sua zona geográfica de produção é muito antiga. Por exemplo, no túmulo de Tutankhamon, no Egipto, foram encontradas em 1922 embalagens de vinho com inscrições precisas acerca do vinho e do seu produtor, assim como a referência à localização geográfica da vinha. Portugal reivindica para si a criação da primeira região demarcada do mundo para a produção de vinhos, ao delimitar, em 1756, a região do Douro para a produção de vinho do Porto e ao criar um organismo regulador da produção e comércio deste produto: a Companhia Geral de Agricultura das Vinhas do Alto Douro. Em finais do séc. XIX, e na sequência das replantações pós-filoxera, o aumento da produção de vinho na maioria dos países produtores europeus, levou à necessidade de protecção das regiões produtoras que tinham alcançado maior notoriedades nos mercados. Foi assim que surgiram as primeiras delimitações administrativas das principais regiões vitícolas francesas em 1905 e a criação e regulamentação de algumas regiões demarcadas em Portugal, em 1907. Ao nível do direito internacional, o problema das denominações de origem coloca-se na sua aceitação e compatibilização em todos os países que produzem ou comercializam vinhos ou outras bebidas alcoólicas. Esta questão começou por ser tratada ao nível de acordos bilaterais, de que são exemplo os diversos acordos celebrados entre Portugal e a Inglaterra para a comercialização de vinhos portugueses, cujo primeiro acordo data de 1703 (Tratado de Methueen). Mais tarde optou-se pela celebração de convenções multilaterais. Esta via foi marcada por três acordos 1

fundamentais, diversas vezes ajustados e melhorados: 1 a Convenção de Paris de 1883, que instituiu a União para a Protecção da Propriedade Industrial, o Acordo de Madrid de 1891, sobre a Repressão de Falsas Indicações de Proveniências, e o Acordo de Lisboa de 1958. Neste último, foi adoptada uma definição conjunta para o conceito de denominação de origem e criada uma União particular para a sua protecção e registo internacional. A este respeito, a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC) veio introduzir um ponto de viragem (Tinlot, 1998). Primeiro, por apontar como meta a eliminação progressiva das barreiras à livre circulação de mercadorias, sejam de natureza alfandegária (acordo sobre a agricultura) ou técnicas (acordos sanitários e fitossanitários). Segundo, por apontar para uma harmonização mundial das indicações geográficas e denominações de origem, no quadro dos Direitos da Propriedade Intelectual. Finalmente, por se constituir como instância intergovernamental para a gestão de conflitos. Depois de 1986, Portugal seguiu a política da União Europeia no que respeita a esta matéria. A organização comum de mercado (OCM), foi estabelecida em 1970 sobre os primeiros acordos de 1962, criando-se uma regulamentação comum para o mercado dos vinhos de mesa (Reg. 816/70) e disposições particulares para os Vinhos de Qualidade Produzidos em Regiões Determinadas (VQPRD) (Reg. 817/70) 2. De uma forma geral, foi deixado a cada país membro a possibilidade de controlar os critérios de criação de zonas de produção de vinhos de qualidade, bem como os critérios da gestão da sua produção e comercialização. Pelo seu posicionamento no mercado mundial, o modelo francês veio a influenciar todo o direito internacional sobre as denominações de origem. Em termos conceptuais, uma denominação de origem é a denominação geográfica de um país, de uma região ou de uma localidade que serve para designar um produto que dele é originário e cuja qualidade ou caracteres são devidos exclusiva ou essencialmente ao meio geográfico, compreendendo os factores naturais e os factores humanos. Esta definição foi adoptada no artigo 2º do Acordo de Lisboa de 1958 e foi a consagração internacional do mesmo conceito adoptado na legislação francesa desde 1919 (Lei de 6 de Maio). Porém, ao nível comunitário, não se conseguiu o reconhecimento duma noção geral de denominação de origem, mas sim a constituição de um tratado de protecção recíproca das designações geográficas, assegurando um quadro regulamentar comum, respeitando as particularidades de cada país membro. De facto, os vinhos de qualidade (VQPRD) não se definem como denominações de origem, mas como vinhos que, colocados em categorias particulares consoante o país, devem responder às condições previamente fixadas para cada região. 3 Estas condições são definidas nos estatutos de cada região em causa, os quais, sendo da responsabilidade do país membro respectivo, 1 Estes acordos foram revistos diversas vezes até hoje, nomeadamente em Bruxelas em 14 de Dezembro de 1900, Washington em 2 de Junho de 1911, Haye em 6 de Novembro de 1925, Londres em 2 de Junho de 1934, Lisboa em 31 de Outubro de 1958 e Stockholm em 14 de Julho de 1967. 2 Esta regulamentação foi por diversas vezes modificada, encontrando-se hoje em vigor o Regulamento (CE) nº 1493/99, que estabelece a Organização Comum do mercado vitivinícola. 3 A nomenclatura dos VQPRD é diferente em cada país comunitário. Por exemplo, Appellation d'origine Contrôlée, Champagne e Vin Délimité de Qualité Supérieure em França, Marque Nationale du Vin Luxembourgeois no Luxamburgo, Denominación de Origen e Denominación de Origem Calificada em Espanha, Denominação de Origem Controlada e Indicação de Proveniência Regulamentada em Portugal, etc. 2

possibilitam uma larga margem de manobra na definição qualitativa e quantitativa de cada VQPRD. A experiência acumulada no sector vitivinícola tem sido utilizada na protecção de denominações de origem de outros produtos agro-alimentares. Assim, fora do sector vitivinícola e no âmbito do desenvolvimento de uma política de qualidade para o sector agro-alimentar, a União Europeia criou, em 1992, um sistema de protecção e valorização de denominações de origem protegidas (DOP), indicações geográficas protegidas (IGP) e especialidades tradicionais garantidas (ETG). Esta política desenvolveu-se sobretudo nos cinco países da bacia do Mediterrâneo, contando no seu conjunto 81% de todas as DOP e IGP registadas na União. Portugal, com 93 produtos registados, é o quarto país com maior numero de produtos protegidos, situando-se a seguir à Itália, com 155, à França, com 147, e Espanha com 96 (Comissão Europeia, 2007). 2. As variedades portuguesas de videira Uma das características da vinha portuguesa é a antiguidade da maioria das castas ou variedades de videiras actualmente em produção (Villa-Mayor, 1875). Em 1889, Pinto de Menezes elaborou uma lista de castas para servir de base à organização de colecções ampelográficas, tendo recolhido na altura 1482 nomes (cit. in Eiras-Dias et al., 1998: 26). É certo que muitos destes nomes referiam-se a diversos casos de sinonímia entretanto resolvidos (diferentes designações regionais para a mesma casta). De qualquer modo, considerando que no final do séc. XX se encontravam em Portugal 345 castas de videiras em produção (classificação das castas de videiras, regulamento CEE 3369/92, de 24 de Novembro), teremos de concluir que se perderam, num século, mais de mil variedades. Se a este número de castas forem retirados alguns nomes referentes a subvariedades, como tem sido comprovado por modernos métodos de análise molecular, mais cerca de 40 variedades de reconhecida origem estrangeira e recentemente difundidas em Portugal e ainda cerca de 25 obtidas por hibridação artificial, restarão cerca de 260 castas de videira antigas com origem provável no território nacional ou introduzidas num passado distante (Martins, 2007: 36). Acresce ainda que, na grande maioria dos casos, estas castas são exclusivas do território nacional, e têm como ancestrais prováveis videiras silvestres recentemente descobertas em Portugal. Contraria-se assim uma ideia anteriormente muito difundida, de que as castas portuguesas resultariam da introdução antiga de variedades provenientes de territórios do Mediterrâneo oriental (Cunha, 2003; Coelho et al., 2004). Muito provavelmente devido à variedade de condições edafoclimaticas existentes no território nacional, Portugal encontra-se dentro dos países com maior variedade de castas (por exemplo, a França terá cerca de 220 castas autóctones, a Itália um número idêntico e a Espanha bastante menos, Martins, 2007: 36). Por outro lado, grande parte das castas nacionais apresenta um elevado padrão de qualidade, potenciando vinhos com características próprias e de elevada qualidade (por exemplo, Loureiro, 2002; Monitor Group, 2003; Ronbinson, 2006; Smith, 1997). 3

3. As DO de vinhos e os processos de selecção A selecção das castas de videira em Portugal seguiu, durante séculos, as vicissitudes da produção de vinho. Sem qualquer programa de selecção organizado, os viticultores foram enxertando ao longo de gerações sucessivas as variedades que melhor satisfaziam as exigências conjunturais de produção: produtividade, resistência a doenças, vingamento dos frutos, etc. Até aos anos 60 do séc. XX, com a aposta num modelo de produção em massa (Simões, 2006: 55-110), a viticultura nacional favoreceu o cultivo das castas mais produtivas, incentivando até a criação e difusão de castas de hibridação artificial, de alto rendimento mas de baixíssima qualidade para a produção de vinho. Por exemplo, a casta Touriga Nacional, que foi a base dos encepamentos na região do Dão no séc. XIX, praticamente desapareceu do cultivo tradicional desta região, tendo sido recuperada nas plantações mais recentes. Embora a legislação comunitária não obrigue que os vinhos de qualidade (VQPRD) sejam DO, no sentido do acordo de Lisboa, a verdade é que o desenvolvimento recente da viticultura portuguesa tem assentado no melhoramento das castas tradicionais. De facto, as castas autorizadas ou recomendadas pelos diversos estatutos das regiões demarcadas portuguesas são, salvo casos pontuais, castas tradicionais de origem portuguesa. Não significa isto que não existem em Portugal plantações significativas das castas mais conhecidas internacionalmente, sobretudo de origem francesa: Cabernet Sauvignon, Sirah, Chardonnay, etc. Estas castas, que constituem o grosso dos encepamentos nos países do Novo Mundo vitícola (Austrália, Chile, USA, etc.), não entram normalmente na composição dos VQPRD portugueses. Quando aparecem, elas encontram-se sobretudo ligadas à produção de vinhos varietais, fazendo apelo à marca comercial ou classificadas como Vinho Regional. Esta classificação faz apelo a uma Indicação Geográfica, mas é muito menos restritiva que a produção de VQPRD. Sob o ponto de vista técnico, a selecção de variedades feita pelos próprios agricultores cai dentro do que se costuma designar por selecção massal (colheita e reprodução de sementes ou outro material de propagação, provenientes de indivíduos de uma população que apresentam uma ou mais características desejáveis). À semelhança da selecção natural, a que ocorre nos ecossistemas naturais, este processo garante uma maior variabilidade genética, quando comparado com outros processos de selecção, como a selecção clonal. Por outras palavras, garante uma maior biodiversidade das espécies cultivadas. Uma casta ou uma variedade de videiras é um conjunto de clones idênticos, mas que apresentam entre si diferenças agronómicas ou qualitativas mais ou menos importantes. 4 Estas diferenças constituem a variabilidade genética intravarietal, a qual pode ser medida por recurso a parâmetros de genética quantitativa, como, por exemplo, a heritabilidade em sentido lato (h 2 ) ou o coeficiente de variação genotípico (CV G ) (Martins, 2004). 4 Clone é a descendência de uma única planta propagada por via vegetativa. 4

Sendo as diferenças assinaladas originadas pela acumulação de mutações genéticas que controlam diversas características quantitativas, como o rendimento, teor de açúcares, acidez, antocianas, etc., pode concluir-se que variabilidade intravarietal depende em muito da antiguidade do cultivo de cada variedade. Deste modo, a variabilidade genética pode ser utilizada como medida aproximada da antiguidade do cultivo de uma variedade, assim como para a identificação da origem regional provável de uma variedade, quando se comparam regiões ou países diferentes. 5 4. Processos de selecção e biodiversidade As exigências da viticultura moderna não se compadecem da lenta evolução dos processos de selecção massal. Durante o século XX, um pouco por toda a Europa foram encetados programas sistemáticos de selecção de videiras, com o objectivo último de obter clones altamente produtivos, com boas características agronómicas, qualitativas e, sobretudo, sanitárias. 6 Os clones assim seleccionados são depois homologados por sistemas de certificação credenciados e colocados à disposição de viveiristas para reprodução e difusão junto dos viticultores. A fig.1 representa a metodologia clássica adoptada pela Organização Internacional da Vinha e do Vinho (OIV) para a selecção clonal da videira (OIV, 1990). Preocupada essencialmente com a obtenção de clones seleccionados isentos de vírus, esta metodologia apresenta várias deficiências quando analisada numa perspectiva de defesa da biodiversidade (Martins et al., 2005): (1) a selecção massal individual da fase I não garante a melhor selecção de genótipos, uma vez que é feita com base em observações fenotípicas e, como tal, afectadas pala variação ambiental; (2) o reduzido número de clones seleccionado para a fase II, cerca de 30, não é suficientemente elevado para garantir elevada variabilidade genética, capaz de ser aproveitada na fase III. Em alternativa, foi desenvolvida uma nova metodologia que apresenta várias vantagens comparativas (fig. 2) (Martins, 2004): (1) atendendo que a selecção massal (fase I) não distingue a variação genotípica da variação ambiental, mostra-se mais eficiente amostrar aleatoriamente um número maior de plantas, de forma a obter cerca de 300 no final de uma despistagem expedita aos vírus mais frequentes. Este procedimento reduz o período afecto a esta fase, de 3-5 anos para apenas um, aumentando ainda a variabilidade genética potencial. (2) Dado o elevado número de indivíduos de cada clone que constituem a população experimental de clones (POP) da fase II (4 plantas x 4-5 repetições), os valores quantitativos apurados fenotipicamente tendem a aproximar-se dos valores genotípicos, uma vez que a média dos desvios ambientais tende para zero. (3) O elevado número de genótipos que constituem a POP, garante uma boa representatividade da variabilidade genética da casta, sobretudo se 5 Por exemplo, a baixa variabilidade genética da casta Jaen, muito cultivada na região do Dão, indiciava uma introdução recente. Não se verificando qualquer relação de sinonímia com nenhuma outra casta nacional ou estrangeira, procedeu-se a uma prospecção sistemática de outras castas, tendo sido encontrada, em 1994, uma população da mesma variedade na região de Bierzo, Castilla-León, Espanha, onde é conhecida por Tinta Mencia (Eiras-Dias, 1998: 26). 6 As videiras são frequentemente atacadas por uma grande variedade de vírus (mais de 40), que causam quebras de rendimento e outras anomalias produtivas. A forma de eliminação destes vírus é de carácter preventivo, através da reprodução de material de propagação isento de vírus. Para isso existem diversos testes de diagnóstico, como a observação de sintomas, teste ELISA, testes moleculares e indexagem biológica. 5

forem respeitados procedimentos adequados de amostragem a nível regional ou mesmo em regiões diferentes se for caso disso. (4) Permitindo o conhecimento do potencial genético da casta, uma vez eliminada a variabilidade ambiental, a fase II permite uma avaliação eficaz do potencial de selecção de cada casta. (5) A POP permite também avaliar a variabilidade genética intravarietal das castas e das suas sub-populações nacionais ou estrangeiras. Este conhecimento permite avaliar a origem possível da casta, as suas movimentações regionais e a identificação das regiões onde apresenta maior variabilidade genética, matéria prima para futuros processos de selecção. (6) Finalmente, a POP constitui ainda uma excelente forma de conservação in situ da variabilidade genética das castas em selecção. Contrariamente à metodologia clássica, em que se pretende obter o melhor clone, a metodologia alternativa pretende seleccionar vários clones. Por outro lado, em resultado do tardio desenvolvimento do processo de selecção da videira em Portugal, verificou-se a necessidade de colocar rapidamente material seleccionado à disposição dos viticultores, mesmo antes do final do programa. Desta forma, no final da fase II, tem sido possível obter, por selecção massal genotípica, material policlonal (mistura de clones), de grande interesse agronómico e qualitativo. Uma outra característica deste material é que ele associa elevados ganhos de rendimento e outras características à manutenção de valores aceitáveis de biodiversidade, garantidos pela mistura de clones de elevado potencial. Esta mistura de clones permite ainda uma melhor adaptação a diferentes condições edafoclimáticas, muito frequentes em Portugal. A metodologia sumariamente descrita tem vindo a ser aplicada em Portugal desde 1978, envolvendo Universidades e Institutos públicos de investigação, formando, no seu conjunto, uma Rede Portuguesa de Selecção da Videira. Na actualidade existem em processo de selecção cerca de 70 das mais importantes castas portuguesas, constituindo outras tantas POP com mais de 12 mil clones, existindo planos para estender este número a cerca de 100 castas nacionais. Em conclusão, podemos dizer que, no caso das videiras, as DO apresentam efeitos divergentes no que respeita à biodiversidade (fig. 3). Por um lado, ao ligar a produção a um território específico, a definição do próprio conceito faz apelo à manutenção das castas autóctones e, consequentemente, à manutenção da biodiversidade. Por outro lado, as exigências da viticultura moderna e os processos de selecção por ela induzida, conduzem à redução das castas e clones em cultura, com forte erosão genética e perda de biodiversidade. Selecção sanitária (ELISA, Indexagem) [100] [30] [10] FASE I Selecção individual fenotípica nas vinhas FASE II Colecção de clones (delineamento experimental FASE III Experimentação clonal regional Um clone seleccionado Figura 1- Esquema da metodologia tradicional de selecção clonal da videira (os números significam a ordem de grandeza de genótipos presentes em cada fase de selecção) (adaptado de OIV, 1990). 6

Diagnóstico do enrolamento tipo 3 e nó curto, por teste ELISA ±250 30-40 FASE I Prospecção aleatória (amostragem de genótipos) FASE II População experimental de clones (POP) (4-5 repetições x 4 plantas) Avaliações culturais e físicoquímicas do mosto; Estimativas de h2, CV G Diagnóstico do virus do enrolamento e nó curto, por teste ELISA. FASE III Campos de comparação clonal (8 repetições x 7 plantas) Avaliações culturais e enológicas; Indexagem biológica ±15 Selecção massal genotípica Selecção clonal (mínimo de 7 clones) Figura 2 Esquema do método combinado de selecção massal genotípica e selecção clonal (adaptado de Martins, 2004). Efeitos positivos Ligação dos VQPRD ao território, compreendendo os factores naturais e os factores humanos (Acordo de Lisboa) Manutenção de castas autóctones Biodiversidade Efeitos negativos - Progresso da viticultura, - Exigências de qualidade, - Exigências de certificação, - Tipificação produção, - Homogeneização da cultura (redução de custos) - Redução de castas -Redução de clones Erosão genética Figura 3. Efeitos das Denominações de Origem de vinhos sobre a biodiversidade. Conclusão No que respeita à propagação vegetativa da vinha, a legislação comunitária tende a dar prioridade à certificação de material obtido por selecção clonal desincentivando a multiplicação do tipo massal. Este ascendente do clone sobra a variedade favorece, a prazo, a erosão genética, com acentuada perda de variabilidade e, consequentemente, de biodiversidade. Este percurso apresenta uma forte vulnerabilidade genética, susceptível de perdas catastróficas no caso do surgimento de novos agentes patogénicos. A solução geralmente apontada para colmatar a erosão genética é a preservação da variabilidade por meio de colecções de germoplasma. Todavia, esta solução exige grandes espaços de instalação, é onerosa e sujeita a problemas sanitários, devido à inclusão de castas susceptíveis a pragas e doenças. A selecção massal de clones 7

constitui uma situação intermédia que, embora provocando alguma erosão genética, mantém um mínimo de variabilidade (biodiversidade), aceitável para elevados padrões de produtividade. Porém, esta solução não foi ainda acompanhada por alterações de natureza legislativa, uma vez que se continua a privilegiar a homologação de clones seleccionados, sendo o material policlonal considerado como material standard, ou seja, idêntico ao material não seleccionado. Referencias Bibliográficas Coelho, I., Cunha, J., Cunha, J.P. et al. (2004), Comparação ampelométrica de populações selvagens de Vitis Vinífera L. e de castas antigas do Sul de Portugal. Ciência Téc. Vitiv., jun. 2004, vol.19, no.1, p.1-12. Comissão Europeia (2007), http://ec.europa.eu/agriculture/foodqual/quali1_pt.htm, consultado em 30.03.2007. Cunha, J.M. (2003), Localização, caracterização e preservação de populações de Vitis vinifera ssp sylvestris em Portugal. 103 p. Tese de Mestrado, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Vila Real. Eiras-Dias, J.E.; Martins, A.; Carneiro, L.C.; Cunha, J.P. (1998), As castas portuguesas e a biodiversidade. Vida Rural, ano 46, (1643) 26-27, Dez. Loureiro, V. (2004), Os melhores vinhos de Portugal. Guia Repsol Portugal, Repsol YPF. Martins, A. (2004), Métodos de selecção de plantas de propagação vegetativa - o caso tipo da videira, Boletim Informativo da Associação Portuguesa de Horticultura, (77): 3-10, Abril. Martins, A. (2007), As castas de videira portuguesas estão a morrer, mas a sua salvação ainda é possível. Vida Rural, ano 54 (1723): 36-37, Dez-Jan. Martins, A.; Carneiro, L.; Gonçalves, E. (2005), A selecção das castas de videira em Portugal, métodos inovadores proporcionam resultados relevantes para a vitivinicultura. Vida Rural, ano 52 (1704): 43-45, Fev. Monitor Group (2003), Resumo de Competitividade do Cluster e Introdução a Campanhas de Acção, ViniPortugal. OIV (1990), Programme type pour la selection clonale de la vigne. Bulletin de l OIV, 715-716: 789-800. Robinson, J. (2007), http://www.jancisrobinson.com/articles/winenews060731, consultado em 30.03.2007. Tinlot, R. (1998) Le concept de loyaute dans les echanges commerciaux vinicoles. In Les Composants Stratégiques de l Avenir de la Vitiviniculture. XXIII Congrès Mondial de la Vinhe et du Vin, III-Economie, Lisboa. Simões, O. (2006), A vinha e o vinho no séc. XX. Celta Editora, Oeiras, 246 p. Smith, R. (1997), The name of the wine. Wine & Spirits, vol.12 (3): 48-57. Villa-Mayor, Visconde (1875), Manual de Viticultura Prática. Imprensa da Universidade de Coimbra, 552 p. 8