SHAKESPEARE REALIZA O IDEAL DO ANALISTA



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Transcrição:

SHAKESPEARE REALIZA O IDEAL DO ANALISTA Luiz Carlos Bresser-Pereira Valor, 2.6.2000. Apresentado originalmente como comentário ao filme (de Mazursky) e à peça (de Shakespeare) A Tempestade, em debate promovido pela Sociedade Brasileira de Psicanálise e a Cinemateca Brasileira. São Paulo, 9 de agosto, 1999. Nunca me perguntei seriamente por que os psicanalistas prezam tanto Shakespeare. Ou mais precisamente, por que usam tanto as obras de Shakespeare para ilustrar seu próprio pensamento ou como objeto de análise clínica. Talvez não o tenha feito porque a resposta me parecia óbvia. Afinal ninguém melhor do que ele retratou a alma humana, ninguém escreveu de forma mais sublime sobre o ódio e o amor, a traição e a lealdade, a inveja e a generosidade do que esse gênio renascentista. Se perguntarmos hoje a um grupo de pessoas cultas qual foi o maior dos escritores, quase certamente o nome mais citado será o dele. Entretanto, depois de ver o filme A Tempestade, de Paul Mazursky, e de comparálo com a peça que lhe serviu de inspiração, surgiu-me uma outra resposta, que complementa a anterior: a psicanálise usa tanto Shakespeare porque sua obra encara o ser humano de forma objetiva, porque ele é sempre o observador ao mesmo tempo apaixonado e frio, que conta uma história, mas nela não se envolve, nem transforma seus personagens em sujeitos angustiados em busca da própria felicidade. E ao fazer isto Shakespeare realiza o ideal do próprio analista, ao mesmo tempo que lhe dá material precioso para seu trabalho. Esta resposta torna-se mais clara quando comparamos as duas obras. Enquanto a peça de Shakespeare é uma obra clássica, própria do pensamento renascentista, em que os personagens são apresentados objetivamente, o filme de Mazursky é o fruto típico do pensamento moderno, subjetivo, ansioso e culpado. Enquanto no primeiro caso os homens

e mulheres são corajosos ou covardes, fiéis ou traiçoeiros, generosos ou cheios de inveja, ou um misto complexo de tudo isto, mas o são objetivamente, sem culpa, e o que importa é a história a ser contada, não os sentimentos e aspirações dos personagens, no segundo é exatamente o oposto. O personagem ao invés da história é o centro de tudo. Mas agora os infinitos personagens deixam de representar mitos, como na tragédia grega, ou de exprimir modelos complexos de pessoas, como em Shakespeare, para se transformarem em indivíduos imersos em sua própria subjetividade. Tereza Menezes, em sua dissertação de mestrado, A Presença de uma Nova Subjetividade no Drama Moderno a Partir da Obra de Ibsen (São Paulo: USP/Escola de Comunicações e Artes, janeiro 2000) fez a análise do surgimento de uma nova subjetividade, que tem em Ibsen um dos seus formuladores. O destinatário das obras de Ibsen é um ser em ruptura. O homem da Modernidade está dividido entre forças igualmente poderosas a racionalidade e a subjetividade e busca uma forma de abarcar a si mesmo que admita essa oposição (p.3). De fato, com o dramaturgo escandinavo esta nova subjetividade encontra plena realização, mas ela já se manifesta no movimento romântico, quando as artes deixam de ser religiosas ou quase, como o eram na antigüidade, com seus deuses e semideuses, ou aristocráticas, com seus reis e seus príncipes, como se tornam plenamente na Renascença, para se tornarem profanas, ou, mais precisamente, burguesas. Conforme observou Janine Ribeiro, existe uma diferença essencial entre o tempo dos antigos e o dos modernos. No primeiro o que interessava eram os fatos, no segundo, as intenções. Para os antigos, que incluem os renascentistas, a responsabilidade é pelos atos praticados, enquanto que para os modernos o que importa é a intenção do autor. Para os antigos a diferença entre o dolo e a culpa, entre o crime deliberado e o resultante de imprevidência ou imperícia, é secundária, enquanto que para os modernos, assume papel central, conforme vemos no Direito Penal. Em suma, para os antigos e os renascentistas ou clássicos a realidade significativa é a objetiva, para a moderna, a subjetiva. Estas distinções estão muito claras quando comparamos a Tempestade de Shakespeare com a de Mazursky. 2

Shakespeare escreveu tragédias, comédias, dramas históricos e fantasias ou romances. A Tempestade, como Sonhos de uma Noite de Verão, inclui-se entre as suas fantasias. É a história de Próspero, o duque de Milão e de como se vinga de seus inimigos, e acaba por perdoá-los. Interessado nos estudos da magia Próspero havia delegado boa parte de seu poder a seu irmão, Sebastião, que, auxiliado pelo rei de Nápoles, Antônio, a quem prometera vassalagem, o depôs, e o colocou em um barco à deriva, com sua filha Miranda, de três anos. O pequeno barco, entretanto, chega a uma ilha deserta, habitada apenas por um gênio selvagem e deformado, Caliban, e por um espírito etéreo, Ariel. Doze anos depois, quando Antônio, seu filho Fernando, e Sebastião voltam de Cartago, onde a filha do primeiro se casara, e passam perto da ilha, Próspero, que através de suas capacidades mágicas, tem agora o comando de tudo, provoca uma tempestade que traz os três e seus auxiliares ilesos para a ilha. Fernando chega primeiro ao local onde se encontram Próspero e Miranda, e por ela se apaixona, sendo correspondido. Antônio e Sebastião chegam mais tarde, e acabam sendo perdoados por Próspero, que retoma seu ducado. Temos assim uma linda fantasia, uma história de aventura e de amor, de magia, de traição e de perdão. Uma história que assegurou a esta peça de Shakespeare uma constante popularidade. Não está, provavelmente, entre suas obras-primas, mas tem toda a beleza do texto e a complexidade dos sentimentos que definem seus trabalhos. E é, sob todos os aspectos, uma obra objetiva, clássica. Muito diferente é o filme de Mazursky. Não apenas porque se trata de um diretor menor, embora pessoal e merecedor de respeito. Mas principalmente porque neste filme de 1982, que não pretende basear-se na peça de Shakespeare mas apenas nela se inspirar, temos uma situação completamente diferente, em que os elementos subjetivos são dominantes. Próspero é substituído por Philip e se transforma em um arquiteto novaiorquino em crise existencial, que tem como principal cliente um mafioso dono de cassinos, Alonso. A crise o leva a abandonar a mulher, Antônia, e o cliente, e partir para uma ilha na Grécia com sua filha adolescente, Miranda, e com uma jovem americana que encontra em Atenas, Aretha. Na ilha temos um único morador, Calibanos. A crise existencial termina quando Alonso e Antônia, que tiveram depois da partida de Philip, um caso, encontram Philip e Miranda na ilha, atraídos por uma tempestade provocada pelo arquiteto. Philip pede perdão a todos, e volta para Antônia. 3

Enquanto na peça Próspero é o duque que a todos domina, vive seu próprio papel de mago seguro do seu poder, e afinal perdoa seus inimigos, no filme Philip é o pobre arquiteto em crise existencial, que nos aborrece com suas aspirações e ansiedades indefinidas. Próspero é o personagem clássico, objetivo, enquanto Philip é expressão pobre da subjetividade moderna. Isto não significa que a subjetividade não possa ter grandeza. Ela a tem em Ibsen e em Proust, em Tenessee Williams e Nelson Rodrigues, em Ingmar Bergman e Federico Fellini. A subjetividade apresenta-se com imensa grandeza em Dostoievski; não em Mazursky, porque a grandeza só se alcança com personagens-limite, que não precisam ser deuses, nem príncipes, nem heróis, mas devem viver de forma plena suas próprias paixões ou a sua repressão. A subjetividade moderna, entretanto, é provavelmente menos interessante para o trabalho psicanalítico do que a objetividade clássica porque enquanto aquela reflete as preocupações que permitiram a Freud fundar a psicanálise, esta é isenta de qualquer interpretação psicanalítica. Dickens ou Balzac escreveram antes que Freud desenvolvesse sua teoria do inconsciente, mas já vivem um tempo em que a preocupação individualista e burguesa com o sujeito havia-se tornado dominante. Desta forma já existe em suas obras uma reflexividade em relação à psicanálise que não está presente nos autores clássicos. Esta reflexividade torna-se evidente nos autores deste século, e chega ao seu limite em Woody Allen e seu terrível (inclusive porque engraçado) Desconstruindo Harry. Aqui já não é mais possível separar a psicanálise do objeto psicanalizado. Allen psicanalisa-se a si próprio, e a seu personagem, que não existe sem a psicanálise. Imagino que este seja um problema central para os psicanalistas de hoje. Ao contrário de Freud, que fez suas primeiras análises com pacientes que nada sabiam da psicanálise, hoje isto é praticamente impossível. Um trabalho fundamental do analista é o de criticar as teorias ou preconceitos que o paciente elaborou a respeito de si próprio, a partir do seu conhecimento ainda que vulgar dos conceitos psicanalíticos. É provavelmente por isso que Wilfred Bion afirmava que o psicanalista não deveria ter memória. Quando, porém, o analista usa os personagens de Shakespeare, apesar de toda a riqueza que eles possuem, este problema não se coloca. Os personagens existem em estado 4

puro. Por isso Shakespeare é tão atrativo para a psicanálise. Mais atrativo não apenas do que criadores secundários, como Mazursky, mas do que criadores maiores como o próprio Dostoievski. Os modernos são irremediavelmente subjetivos, os antigos e os clássicos não. Obras-primas podem existir em ambos os momentos, mas enquanto os modernos lidam com indivíduos cuja vida já está comprometida com a psicanálise, ela refletindo, os antigos e os clássicos escapam desta sina. E ninguém melhor do que Shakespeare realiza esta tarefa sem sacrificar a complexidade da existência humana. 5