ALÔ AMÉRICA DO SUL! - OS ESTEREÓTIPOS SUL AMERICANOS NA PROPAGANDA DE GUERRA ESTADUNIDENSE.



Documentos relacionados
A GLOBALIZAÇÃO UM MUNDO EM MUDANÇA

GRUPO IV 2 o BIMESTRE PROVA A

Daniel Chaves Santos Matrícula: Rio de Janeiro, 28 de maio de 2008.

Professor: MARCOS ROBERTO Disciplina: HISTÓRIA Aluno(a): Série: 9º ano - REGULAR Turno: MANHÃ Turma: Data:

A VISÃO DE MEIO AMBIENTE DE ALUNOS DO SEGUNDO CICLO DO ENSINO FUNDAMENTAL: ANÁLISE DE DESENHOS

JUQUERIQUERÊ. Palavras-chave Rios, recursos hídricos, meio-ambiente, poluição, questão indígena.

Educação Patrimonial Centro de Memória

JOGOS NAS AULAS DE HISTÓRIA ATRAVÉS DO PIBID: UMA POSSIBILIDADE DE CONSTRUÇÃO DE CONHECIMENTO E DE INTERAÇÃO

A PRÁTICA PEDAGÓGICA DO PROFESSOR DE PEDAGOGIA DA FESURV - UNIVERSIDADE DE RIO VERDE

1) Explique quais foram os efeitos das inovações tecnológicas industriais sobre a agricultura. 2. A partir do texto e de seus conhecimentos, responda.

MUSEU HISTÓRICO DO EXÉRCITO E FORTE DE COPACABANA

Associação Catarinense das Fundações Educacionais ACAFE PARECER DOS RECURSOS

Eixo Temático 1 Instrução e Cult uras Escola res

Terra de Gigantes 1 APRESENTAÇÃO

Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas 10 de Junho de 2010

Colégio Ser! Sorocaba Sociologia Ensino Médio Profª. Marilia Coltri

JONAS RIBEIRO. ilustrações de Suppa

Presidência da República Casa Civil Secretaria de Administração Diretoria de Gestão de Pessoas Coordenação Geral de Documentação e Informação

Uma volta no tempo de Atlântida

História da Mídia Impressa na Educação

BANDEIRAS EUROPÉIAS: CORES E SÍMBOLOS (PORTUGAL)

JUSTIFICATIVA DA INICIATIVA

A formação moral de um povo

O mundo lá fora oficinas de sensibilização para línguas estrangeiras

Relatório: Os planos do governo equatoriano: incentivo ao retorno da população migrante 38

Construção, desconstrução e reconstrução do ídolo: discurso, imaginário e mídia

A IMPORTÂNCIA DE SE TRABALHAR OS VALORES NA EDUCAÇÃO

Curso: Diagnóstico Comunitário Participativo.

Meu Mini Mundo 1. PALAVRAS-CHAVE: livro; mini mundo; literatura infantil; kirigami; comunicação.

Realizado de 25 a 31 de julho de Porto Alegre - RS, ISBN

O USO DE TECNOLOGIAS NA EDUCAÇÃO: A UTILIZAÇÃO DO CINEMA COMO FONTE HISTÓRICA Leandro Batista de Araujo* RESUMO: Atualmente constata-se a importância

BRINQUEDOS E BRINCADEIRAS NOS ANOS INICIAIS: UMA PERSPECTIVA INTERGERACIONAL

São Paulo/SP - Planejamento urbano deve levar em conta o morador da rua

MÓDULO 5 O SENSO COMUM

Aceite Amar 1. Ed Carlos dos Santos SILVA 2 Thalysa DONATO 3 Lamounier LUCAS 4 Centro Universitário Newton Paiva, Belo Horizonte, MG

Violações das regras do ordenamento do território Habitação não licenciada num parque natural EFA S13 Pedro Pires

Motivos de transferência do negócio por parte dos franqueados

Manoel Pastana na Amazônia do início do século XX

CONSTRUÇÃO DE QUADRINHOS ATRELADOS A EPISÓDIOS HISTÓRICOS PARA O ENSINO DA MATEMÁTICA RESUMO

O céu. Aquela semana tinha sido uma trabalheira!

O USO DO TANGRAM EM SALA DE AULA: DA EDUCAÇÃO INFANTIL AO ENSINO MÉDIO

Elaboração de Projetos

Três grandes impérios, além de dezenas de outros povos, que encontravam-se subjugados aos grandes centros populacionais, viviam nas regiões almejadas

Geografia da Fome. Geopolítica da fome

O TIGRE E A DEMOCRACIA: O CONTRATO SOCIAL HISTÓRICO

Deus: Origem e Destino Atos 17:19-25

- Como o Torta de Climão surgiu - Quem é o seu criador - Como o quadrinho se tornou um projeto profissional

IGREJA DE CRISTO INTERNACIONAL DE BRASÍLIA ESCOLA BÍBLICA

VIOLÊNCIA NO ESPAÇO ESCOLAR: UMA ANÁLISE A PARTIR DA ESCOLA CAMPO

Fascículo 2 História Unidade 4 Sociedades indígenas e sociedades africanas

A EDUCAÇÃO PARA A EMANCIPAÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE: UM DIÁLOGO NAS VOZES DE ADORNO, KANT E MÉSZÁROS

LUDICIDADE: INTRODUÇÃO, CONCEITO E HISTÓRIA

Daniele Renata da Silva. Maurício Carlos da Silva

A Crítica do Discurso Poético na República de Platão

RESENHA. Desenvolvimento Sustentável: dimensões e desafios

Coordenadores: Prof. Luis E. Aragón, Universidade Federal do Pará, Belém Prof. José Aldemir de Oliveira, Universidade Federal do Amazonas, Manaus

PROJETO MEDIAR Matemática, uma Experiência Divertida com ARte

II MOSTRA CULTURAL E CIENTÍFICA LÉO KOHLER 50 ANOS CONSTRUINDO HISTÓRIA

*Doutora em Lingüística (UNICAMP), Professora da Universidade Federal de Viçosa (UFV).

PEDAGOGIA EM AÇÃO: O USO DE PRÁTICAS PEDAGÓGICAS COMO ELEMENTO INDISPENSÁVEL PARA A TRANSFORMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA AMBIENTAL

12 DE JUNHO, DIA DE COMBATE A EXPLORAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL: RELATO DE EXPERIÊNCIA NO PIBID DE GEOGRAFIA

Reaproveitamento de Máquinas Caça-Níqueis

Estratégia de escuta psicanalítica aos imigrantes e refugiados: uma oficina de português

REDE DE EDUCAÇÃO SMIC COLÉGIO SANTA CLARA SANTARÉM-PARÁ RESUMO DOS PROJETOS

A origem dos filósofos e suas filosofias

E Deus viu que tudo era bom

20 Anos de Tradição Carinho, Amor e Educação.

Redes Sociais na Era da Conectividade ( The good, the bad and the ugly )

BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O BINÔMIO ESTADO - FAMÍLIA EM RELAÇÃO À CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA NOS PROGRAMAS TELEVISIVOS

China e seu Sistemas

UNIDADE 4 A CRISE DO GUERRA MUNDIAL. CAPITALISMO E A SEGUNDA. Uma manhã de destruição e morte.

TRIBUTO AOS MAÇONS. uma cerimônia aberta emitida pelo. Supremo Conselho da Ordem DeMolay para a República Federativa do Brasil

A IMPORTÂNCIA DA NATUREZA NA CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO GAÚCHO POR MEIO DA MÚSICA

Sumário executivo. ActionAid Brasil Rua Morais e Vale, 111 5º andar Rio de Janeiro - RJ Brasil

DataSenado. Secretaria de Transparência DataSenado. Março de 2013

História/15 6º ano Turma: 2º trimestre Nome: Data: / / RECUPERAÇÃO FINAL 2015 HISTÓRIA 6º ano


02/12/2012. Geografia

Anna Júlia Pessoni Gouvêa, aluna do 9º ano B

CHILE INFORMAÇÕES GERAIS

4 o ano Ensino Fundamental Data: / / Atividades de Língua Portuguesa Nome:

O homem transforma o ambiente

Água, fonte de vida. Aula 1 Água para todos. Rio 2016 Versão 1.0

O ESTÁGIO SUPERVISIONADO COMO ESPAÇO DE CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DOCENTE DE LICENCIANDOS EM MATEMÁTICA

A IMPORTÂNCIA DO PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO PARA OS CURSOS PRÉ-VESTIBULARES

Apresentação. Cultura, Poder e Decisão na Empresa Familiar no Brasil

A Alienação (Karl Marx)

FACULDADE DE ENSINO SUPERIOR DE LINHARES - FACELI SELEÇÃO E COMENTÁRIO DE CENAS DO FILME GLADIADOR LINHARES

Projeto - por que não se arriscar com um trabalho diferente?

Geografia. Exercícios de Revisão I

SANEAMENTO BÁSICO E SAÚDE. Desenvolvimento é sinônimo de poluição?

AMÉRICA LATINA Professor: Gelson Alves Pereira

Guerra e Política: origens da política italiana de emigração. Daniela Gallimberti Gagliardi.

1. Nome da Prática inovadora: Coleta Seletiva Uma Alternativa Para A Questão Socioambiental.

Gustavo Noronha Silva Higina Madalena da Silva Izabel Cristina Ferreira Nunes. Fichamento: Karl Marx

SIGNIFICADOS ATRIBUÍDOS ÀS AÇÕES DE FORMAÇÃO CONTINUADA DA REDE MUNICIPAL DE ENSINO DO RECIFE/PE

Cronos, Natal-RN, v. 10, n. 1, p. 9-11, jan./jun. 2009

Por que há sonhos dos quais não nos esquecemos?

Transcrição:

ALÔ AMÉRICA DO SUL! - OS ESTEREÓTIPOS SUL AMERICANOS NA PROPAGANDA DE GUERRA ESTADUNIDENSE. Aline Vanessa Locastre Mestranda UEL Bolsista Capes O mundo encantado da Walt Disney é sem dúvidas muito conhecido no mundo hoje. Seus personagens mais importantes como o esperto Mickey Mouse e o engraçado Pato Donald marcaram a infância de milhares de crianças (e adultos também) ao redor do mundo, tanto em suas aventuras nos quadrinhos quanto no cinema. Aparentemente ingênuos esses personagens, assim como as aventuras que os cercam, carregam intenções, mensagens subliminares, que procuram atender a determinados motivos, em determinados momentos da história. Assim, o estudo do cinema, ou da mídia, cada vez mais desperta o interesse dos historiadores, que procuram perceber a intencionalidade dessas produções midiáticas e o impacto que elas proporcionam em seu público. Marc Ferro em O Filme: uma contra-análise da sociedade? ( FERRO, 1989, p.199-215) levanta questões pertinentes sobre esse tipo de entretenimento, que tomado por historiadores pode se tornar uma imagem objeto. Para Ferro, fica muito evidente que todo filme, que parece proporcionar um puro e simples entretenimento, defende os interesses de grandes empresas privadas ao mesmo tempo em que passa por uma ferrenha censura por parte do Estado. O cinema seria capaz, segundo Ferro, de destruir aquilo que professores, juristas, pensadores demoraram décadas para construir. Essa fonte de diversão alterou padrões, instaurou outros tipos de pensamentos, fez surgir uma História que não é necessariamente a História ( FERRO, 1989, P.208). Porém, várias precauções devem ser tomadas na análise filmitica. Jamais um filme deve ser tomado como prova do que aconteceu, já que se trata de uma obra de arte que está concretamente ligada ao seu presente. Ângelo Moscariello, autor da obra Como ver um filme (MOSCARIELLO, 1985) afirma que fazer dos protagonistas de uma story os supostos protagonistas de uma História significa repor a esfera do verdadeiro sob a do verosímil (MOSCARIELLO, 1985, p. 83). Para uma análise do cinema, ainda segundo Ferro, é necessário haver uma combinação entre as partes visíveis e não visíveis dos filmes. Assim, É necessário aplicar esses métodos a cada substância do filme (imagens, imagens sonoras, imagens não sonorizadas) (FERRO, 1989, p. 203), juntamente com a narrativa, o cenário, o texto, as 142

relações do filme com o que não é filme: o autor, a produção, o público, a crítica, o regime (FERRO, 1989, p.203). Diante dessas problemáticas levantadas poderíamos chegar a conclusões acerca da realidade ao qual o filme, em análise, referencia. Da mesma forma que as entrelinhas contidas em imagens como fotografias ou pinturas devem ser levadas em consideração, o filme também deve considerado por meio da ótica não visual. Na ausência dessas informações, os por quês dessas lacunas podem significar muito para averiguar os sentidos ocultos das imagens estáticas ou em movimento. Por se tratar de imagens em movimento, diferentes de outros tipos de arte, o cinema oferece ao seu espectador a sensação de vivenciar aquilo que está sendo reproduzido na película. Derivado dessa sensação, inúmeras vezes os filmes não se limitam a divertir seu público. Consciente ou inconscientemente eles reproduzem valores, modismos de seus produtores. Em sua dissertação de mestrado, Alexandre Maccari Ferreira defende que todos os filmes poderiam ser enquadrados em algum tipo de propaganda, contudo, há obras em que esse caráter propagandístico faz mais notável em determinadas épocas (FERREIRA, 2008, p. 68). Um exemplo foi a década de 1940, onde em decorrência da Segunda Guerra Mundial, várias empresas, como a Walt Disney estava diretamente ligadas ao esforço de guerra, ora lançando produções que justificavam o conflito, ora desmoralizando o inimigo. Analisaremos nesse artigo o desenho/documentário produzido pelos estúdios da Walt Disney chamado Alô Amigos, datado de 1943. Nele encontramos uma grande quantidade de elementos para análise sobre o teor da propaganda de guerra estadunidense na América Latina, assim como a visão de seus produtores sobre a população e as sociedades localizadas abaixo das fronteiras estadunidenses. Enfocaremos nossas atenções às imagens sul americanas disseminadas pela produção, que de alguma maneira, reflete uma visão não apenas dos empregados Disney, mas de uma parcela muito mais ampla da sociedade estadunidense sobre os vizinhos americanos em meados dos anos 1940. Novas relações entre americanos Foi em um contexto conturbado, após a depressão de 1929 e estranhamento da imagem estadunidense com os latino-americanos que o presidente Franklin Delano Roosevelt assumiu a presidência da república dos Estados Unidos. Durante seu mandato viabilizou uma 143

série de programas econômicos e políticos (o New Deal), que tiraram o país do abismo financeiro que ainda se encontrava no pós crise (TOTA, 2000, p. 38). A necessidade de exportação e comércio dos artigos industrializados dos Estados Unidos, assim como a carência por alguns gêneros de matérias primas requeriam a urgência do estreitamento das relações diplomáticas com os países latino-americanos. O livre comércio teria que encontrar uma fresta para entrar definitivamente nas fronteiras americanas. Entre 1935 e 1939 buscou-se a tentativa de provar que a melhor maneira de transação comercial teria que advir do livre comércio entre as nações (MOURA, 1984, p. 18). Franklin Roosevelt será eternizado como o grande implementador da Política da Boa Vizinhança, como estratégia de estreitamente nas relações Estados Unidos e América Latina. Porém, atento aos empecilhos que a Doutrina Monroe causava ao próprio desenvolvimento econômico de seu país, o anterior presidente da república, Herbert Hoover, em uma viagem que fez a Honduras, proferiu pela primeira vez o termo Good Neighbor, em referência aos vizinhos de continente (TOTA, 2000, p.28). Vemos que não foi apenas uma iniciativa de Franklin D. Roosevelt a tentativa de mudança nas relações diplomáticas dos Estados Unidos com a América Latina. Esse caráter impositivo e inflexível perante a liberdade de governabilidade dos vizinhos latinos afetou por demasia a imagem estadunidense na América. A disparidade cultural existente entre americanos também era um fator de desagregação. Enquanto os Estados Unidos praticavam o protestantismo (religião de vertente cristã), os latino-americanos professavam, em grande parte, a religião Católica (também vertente do cristianismo). Os aspectos culturais, como mistura étnica, organização econômica e política fomentavam um abismo entre a América de origem Anglo Saxã e a América Latina. No imaginário estadunidense, durante muito tempo, não era possível estabelecer laços entre as Américas, uma vez que, a superioridade civilizacional dos Estados Unidos parecia inquestionável. Não havia sentimento de irmandade, já que eles não pareciam irmãos. Americans eram os nascidos nos Estados Unidos da América e seus vizinhos, de origem latina os Other Americas, eram os residentes em terras distantes, com imensos vazios populacionais (TOTA, 2000, p.36). Em um momento primordial da história dos Estados Unidos, o mundo natural já havia sido vencido, principalmente após a Marcha para o Oeste. O Mundo natural, nesse sentido, havia sido transformado em função do progresso material que os desbravadores almejavam. Ao comparar esse ideário com a América Latina, automaticamente provava-se que os imensos territórios despovoados dessa região representavam o atraso dos habitantes 144

latino-americanos. O modelo estadunidense precisava ser aceito e praticado para a América Latina crescer economicamente (JUNQUEIRA, 2000). Entretanto, como adentrar no solo vizinho sem criar hostilidades, uma vez que, durante tanto tempo, os Estados Unidos representavam uma ameaça à soberania dos governos Latino americanos? A estratégia foi optar por uma forma mais sutil, onde o jeito de viver, o American Way Of Life, fosse almejado pelas mais diversas camadas sociais das outras Américas. Assim, a sociedade estadunidense foi disseminada através dos meios de comunicação, programas de apoio à saúde e empréstimos para o desenvolvimento dos países latino-americanos. A forma pelo qual a Política de Boa Vizinhança foi implementada, no que diz respeito a uma coerção militar ou sanções econômicas, foi mais branda. Podemos dizer que a roupagem da política de Roosevelt destoava da do Big Stick, porém, os objetivos de ambos eram idênticos: impedir que países europeus adentrassem as fronteiras econômicas da Latino- América; proteger o livre comércio estadunidense na região; garantir ao governo de Tio Sam o território americano, pois ele possuía uma posição estratégica importantíssima aos Estados Unidos. (MOURA, 1984, p. 18) Para adentrar o território vizinho, de uma forma que não ocasionasse maiores problemas, o governo Roosevelt buscou parcerias, nesse caso com os estúdios Walt Disney, com o qual incentivou a produção de filmes com o sentido de transmitir aos americanos informações sobre o território e sua população, lançando mecanismos para impedir que as forças nazi-fascistas penetrassem no território americano. Elaborando desde desenhos animados que abordavam a escassez de comida em decorrência do conflito armado, até gibis ou produções onde retratavam a inferioridade moral dos alemães, japoneses e italianos, a Walt Disney foi uma grande parceira das Forças Armadas estadunidense na década de 1940. (FERREIRA, 2008, p. 13-25) A América do Sul segundo Walt Disney O desenho animado Alô Amigos, no original Saludos Amigos datado de 1942/43, tem uma duração de 42 minutos e até hoje impressiona pela tecnologia empregada para sua produção. O desenho/documentário pode ser dividido em quatro partes, sendo que, em cada uma delas, uma região da América do Sul é enfocada. O Rio de Janeiro, no Brasil, os 145

pampas argentinos, o Lago Titicaca no Peru e Bolívia e o monte Aconcagua no Chile, servem de cenário para as aventuras dos personagens da Disney e de inspiração para seus roteiristas. Entretanto, nessa produção percebemos inúmeros estereótipos, ainda hoje presentes, acerca da América do Sul e da sua população. Em um estudo elaborado pela historiadora Mary Anne Junqueira, desde o desbravamento do Oeste estadunidense a conquista de um território hostil foi necessário para a implantação da civilização. Assim, o wilderness (que na tradução de Junqueira adquire um caráter de espaço selvagem, com vazios populacionais ) serviu de motivação para a luta dos cidadãos estadunidenses em vários momentos da História, entre eles as lutas nazi-fascistas, comunistas e em guerras como a do Vietnã. (JUNQUEIRA, 2000, p. 70-71) Esse mito, da conquista de espaços selvagens, fez e ainda faz sucesso na literatura e cinema estadunidenses, que mostram cowboys desbravando o West do país. No século XX esse Wilderness será comumente associado ao território sul americano, que constantemente é mostrado pela imprensa como um lugar de vazios populacionais, homens e mulheres com culturas primitivas e uma natureza ainda não desbravada. É a partir desse pensamento de Junqueira, em pensar a associação entre Wilderness e América do Sul no imaginário dos Estados Unidos, que procuraremos analisar a difusão desse pensamento através da mídia, partindo do desenho animado Alô Amigos. Logo no início do desenho/documentário Ed PLumb e Paul Smith, ambos funcionários da cinematográfica, compõem uma pequena música que simboliza a amizade entre os vizinhos americanos: Saudamos a todos, da América do Sul A terra onde o céu sempre é bem azul Saudamos a todos, amigos de coração Que lá deixamos, de quem lembramos Ao cantar essa canção Quem possivelmente, em meados da década de 1940, lembrava do histórico intervencionista estadunidense na América Latina e das enormes disparidades sócio-culturais entre os Estados Unidos e os vizinhos americanos, possivelmente questionaria o verdadeiro sentimento dessa canção. Amigos de coração retrata a política de aproximação entre as Américas, pretendida por Franklin D. Roosevelt, que tentava transformar as Américas em seu protetorado para impedir sua adesão às forças nazi-fascistas. 146

A América do Sul, nessa canção, é também descrita como uma terra onde o céu sempre é bem azul. Um lugar onde possui sempre um céu azul nos dá a impressão de um lugar paradisíaco, sem problemas, de clima agradável e de belas paisagens. O solo sul americano possui inúmeras paisagens, lugares belíssimos e encantadores, porém, possui grandes problemas que passam a ser irrelevantes face a esse céu azul. Os objetivos que motivaram vários músicos, roteiristas, desenhistas da Disney a saírem em expedição pela América do Sul são colocados logo no início do desenho/documentário. As motivações teriam sido encontrar novos companheiros para Mickey e Donald e conhecer novas músicas e danças. O primeiro objetivo foi alcançado já que, é a partir desse desenho, que o personagem José Carioca ou Zé Carioca (representando o malandro do Rio de Janeiro) se junta aos companheiros da Disney World. Zé Carioca em sua primeira aparição no mundo Disney (Cenas: Alô Amigos) O segundo objetivo, que pretende conhecer a dança e música sul americana nos mostra a forma como os estereótipos dessa região são apresentados no desenho. A cultura desses países é apresentada como estranha, pitoresca, esquisita. Por vezes, assemelham as tradições americanas com a cultura local estadunidense. Nas imagens abaixo, em que retratam música e dança típicas dos pampas gaúchos o narrador faz uma aproximação com as danças e músicas do Faroeste. 147

Bailes e músicas típicas argentinas: (Cenas: Alô Amigos) Junqueira narra que por muito tempo houve o mito da superioridade do povo argentino, por este ser predominantemente branco. Ao contrário do restante da América Latina que foi formada por povos indígenas e negros, a Argentina ganhava um lugar de destaque na produção Alô Amigos, já que foi esse país comparado ao Oeste estadunidense. Segundo Junqueira, essa similaridade cultural entre Argentina e Estados Unidos, confirma um pensamente muito disseminado entre os estadunidenses de que a civilidade pertence aos povos de pele branca. (JUNQUEIRA, 2000, p. 140) A música boliviana e peruana é caracterizada como herança direta dos Incas e segundo a narração do desenho é uma música nostálgica e exótica. Assim, toda essa nostalgia é ressaltada na tentativa de uma aproximação com as antigas tradições do Oeste estadunidense. Há uma tentativa em criar uma origem comum que assemelha e une os americanos, mesmo que essa tradição seja, na realidade, muito diferente. Música nostálgica e exótica herdada dos Incas (Cenas: Alô Amigos) 148

No caso do gaúcho argentino essa tentativa de aproximação com o Cowboy dos Estados Unidos é tão explícita que em uma parte do desenho eles trocam a roupa do personagem Pateta (vaqueiro do Faroeste) pelos trajes típicos do gaúcho, pois segundo o narrador do desenho, os dois possuem muita semelhança, apesar de seu vestuário variar ligeiramente entre um e outro. Roupas típicas do gaúcho (Cenas: Alô Amigos) O samba brasileiro é a dança que parece chamar mais a atenção dos funcionários da Disney. Tal é o encanto que eles próprios tentam aprender alguns instrumentos para a sua execução e os passos da dança. Mesmo sem executar os passos e os instrumentos corretamente, a equipe de Disney parece muito compenetrada em aprender com os brasileiros. Em momento algum a origem da dança é citada, concomitantemente, a população negra no Brasil parece não existir. O samba brasileiro (Cenas: Alô Amigos) 149

Outro ponto a ser destacado nessa análise é o carinho que a população sul americana parece sentir pelos seus vizinhos continentais. Por meio do personagem Zé Carioca, que representa o povo brasileiro, Pato Donald é recebido prazerosamente pelo papagaio. Com um abraço quebra costelas, típico carioca, segundo Zé Carioca, o Pato Donald é recebido calorosamente no Brasil. Essa possível hospitalidade e alegria dos brasileiros é até os dias de hoje disseminado pelos meios de comunicação como marca de seu povo. A hospitalidade brasileira (Cenas: Alô Amigos) A malandragem do carioca perante os problemas cotidianos também se faz presente no cartoon. Em um passeio de Donald e Zé Carioca pelo Rio de Janeiro, os dois sentam em uma mesa de bar e tomam a tradicional cachaça brasileira. O papagaio parece muito familiarizado com a bebida e não sofre alteração nenhuma em sua fisionomia. Donald, entretanto, não agüenta uma dose de cachaça e passa mal. Fica claro na animação que o objetivo é mostrar que o sul americano induz o estadunidense ao consumo de bebida alcoólica, este por sua vez parece ingênuo ao ponto de se deixar levar pelo convite de seu novo amigo. 150

Zé Carioca leva Donald para um passeio no Rio de Janeiro (Cenas: Alô Amigos) A paisagem natural da América do Sul é muito ressaltada, dando a impressão de um grande vazio populacional, como aborda Mary Anne Junqueira. O mundo natural ainda não foi desbravado e se apresenta como algo a ser conquistado e domado pelo homem civilizado. Na parte do desenho que se destina ao Chile, Walt Disney optou por homenagear os pioneiros dos correios que enfrentavam jornadas perigosas e longas para a entrega de correspondências. Para tal, o personagem principal, um aviãozinho de nome Pedro, enfrenta todo o tipo de perigo para cumprir sua missão: entregar a tempo as correspondências de Mendoza a Santiago. A paisagem que cerca tal história está concentrada na Cordilheira dos Andes e em nenhum momento cidades ou populações humanas são mostradas. Aquarelas dos Alpes chinelos (Cenas: Alô Amigos) Na cena em que o aviãozinho Pedro atravessa o monte Aconcágua, ele é atingido por uma grande tempestade, que por sorte e por suas habilidades não é destruído. Vemos que, em terras sul americanas a natureza mostra-se hostil ao personagem principal. Essa hostilidade 151

adquire um sentido de América selvagem. Para Junqueira, a Cordilheira sul americana foi vista, na maioria das vezes, como entrave geográfico para o progresso, barreira que impedia a comunicação entre os povoados espalhados pela região (JUNQUEIRA, 2000, p. 137). O aviãozinho Pedro em meio a uma tempestade (Cenas: Alô Amigos) Nas partes do desenho/documentário Alô Amigos que aborda os pampas argentinos e o Lago Titicaca, essa natureza hostil também pode ser observada. Nas cenas abaixo vemos um cavalo dominando o vaqueiro Pateta, ao invés deste o dominar e uma Lhama, animal típico da região andina, dominando o personagem Donald. Em ambos os casos, percebemos uma América do Sul com personalidade, que não modifica seu cotidiano, nem sua natureza quando em seu contato com os seus vizinhos estadunidenses. O cavalo domina o personagem Disney ( Cenas: Alô Amigos) 152

A Lhama domina Pato Donald (Cenas: Alô Amigos) Pudemos perceber que o governo de Franklin Roosevelt procurou estratégias para conter o nazi-fascismo nas Américas e manter os latino-americanos sobre seu protetorado. Uma das medidas foi buscar parcerias com estúdios (no caso analisado a Disney) para, através de produções midiáticas e de entretenimento, disseminar o modelo estadunidense de sociedade, assim como descaracterizar os inimigos de guerra (Alemães, Japoneses e Italianos) e ressaltar os demais países da América Latina. Porém, ao estudarmos a produção Alô amigos, percebemos que, muitas vezes, ao tentar abordar os latino-americanos nas produções midiáticas, muito estereótipos acerca da cultura dos vizinhos dos Estados Unidos eram reproduzidos. O peso do imaginário estadunidense de dominação do Wilderness (espaço vazio, selvagem) para a concretização da civilização foi difundido nas Américas, na medida em que a única alternativa para o desenvolvimento econômico, político e cultural da América do Sul parecia depender da dominação de seu povo sobre os espaços despovoados.(junqueira, 2000) Algumas características atribuídas à cultura da América do Sul, como a de possuir músicas e danças semelhantes às do Oeste estadunidense, nos oferece indícios de que se tentou criar uma aproximação cultural entre americanos, mesmo estando nitidamente claro a disparidade cultural entre eles. O país em que essa tentativa de semelhança cultural é mais enfocada é a Argentina, onde o vaqueiro Pateta é transportado para os pampas gaúchos, a fim de mostrar a grande semelhança entre sua vida do Texas com a vida dos campos argentinos. A difusão do carioca como malandro e adorador do samba, ganha em Alô Amigos, grande destaque. Em todo o episódio dedicado ao Brasil, o samba e a malandragem de Zé Carioca estiveram presentes. Uma imagem do povo brasileiro como acolhedor e 153

receptivo aos estrangeiros, assim como envolto por belíssimas paisagens naturais estão até os dias de hoje presentes na imagem que o Brasil adquire no exterior. Concomitantemente, serve como quesito de identificação de uma grande parcela da população, que acredita realmente possuir essas características. Uma América do Sul selvagem, ainda hostil, de padrões culturais muito diferentes dos Estados Unidos, está contido de forma enfática em Alô Amigos. A todo o momento os personagens Disney são dominados pelos personagens ou território sul americanos. Intencional ou não, nos dá a impressão de ingenuidade por parte dos visitantes e da não alteração dos costumes sul americanos quando em face da interação com os vizinhos estadunidenses. Assim, visando não somente ao entretenimento, vemos que muitas vezes as produções cinematográficas trazem consigo intenções e pontos de vista, pois atendem a interesses privados e em algumas vezes estatais. Não podemos desvincular um filme do contexto que o permeia, por esse motivo Marc Ferro o trata como imagem objeto. Uma produção cinematográfica contribui para o entendimento do momento histórico ao qual pertence e nos oferece elementos para a análise do jogo de poder que este reflete. Referências: FERREIRA, Alexandre Maccari. O cinema Disney agente da História: A cultura nas Relações Internacionais entre Estados Unidos, Brasil e Argentina (1942-1945). Dissertação apresentada em 2008 ao programa de Mestrado em Integração Latino-Americana da Universidade Federal de Santa Maria RS. FERRO, Marc. O filme: uma contra-análise da sociedade? In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre (Orgs.) História: novos objetos. Rio de Janeiro: F. Alves, 1989. JUNQUEIRA, Mary Anne. Ao sul do Rio Grande. Imaginando a América Latina em Seleções: oeste, wilderness e fronteira (1942-1970). Bragança Paulista, SP: EDUSF, 2000. MOSCARIELLO, Angelo. Como ver um filme. Lisboa: Presença, 1985. MOURA, Gerson. Tio Sam chega ao Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1984. 154

TOTA, Antonio Pedro. O Imperialismo sedutor. A americanização do Brasil na época da Segunda Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 155