A NORMA LINGUÍSTICA: reflexão e análise em uma gramática do século XIX



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Transcrição:

A NORMA LINGUÍSTICA: reflexão e análise em uma gramática do século XIX Priscila Brasil Gonçalves LACERDA 1 Cynthia Elias de Leles VILAÇA 2 RESUMO Este texto tem por objetivo trazer reflexões acerca da constituição da norma linguística, ilustradas pela Grammatica Philosophica da Lingua Portugueza, escrita pelo filólogo e gramático português Jerónimo Soares Barbosa, em 1822. Para tanto, retomamos algumas concepções de norma linguística, delimitando por contrastes e associações o conceito de norma como prescrição. Além disso, explicitamos os principais critérios usados para legitimar essa norma de caráter prescritivo, quais sejam: o histórico, o social, o de autoridade, o racional, o estético e o natural. Em seguida, por meio de uma análise das seções de Orthoepia e de Orthographia constantes da referida gramática, detemo-nos no trabalho de investigação de como esses critérios seriam aplicáveis. Assim, verificamos que, embora a gramática em análise esteja assentada em uma perspectiva de olhar sobre a língua a partir dos preceitos da lógica, doses de norma linguística prescritiva ainda se revelam na obra e se legitimam por critérios distintos, entretanto, esse controle se faz subrepticiamente. PALAVRAS-CHAVE: Norma linguística. Legitimação de normas. Gramática do século XIX. Jerónimo Soares Barbosa. Ortoépia. Ortografia. ABSTRACT This text aims to make some reflections on the constitution of linguistic norm illustrating this process by the Philosophical Grammar of the Portuguese Language, written by philologist and grammarian Portuguese Jerónimo Soares Barbosa, in 1822. On this way, some conceptions of linguistic norm were revisited and defined by contrasts and associations. In addition, it was underlined the main criteria used to legitimize the linguistic norm prescription, namely: the historical, social, authority, rational, aesthetic and natural ones. Then, through an analysis of Orthoepia and Orthographia sections of the reported grammar, the attention of research was focused on how these criteria would be applied. Thus, although the grammar in analysis is inserted in a logic perspective of looking on the language, prescriptive norm doses still are revealed in the work and it is legitimated by different criteria, however, this control is subtly done. KEY-WORDS: Linguistic norm. Legitimation of norms. Grammar of the nineteenth century. Jerónimo Soares Barbosa. Orthoepy. Spelling. 1 Doutora em Linguística Teórica e Descritiva pela UFMG. Professora substituta da UFMG. 2 Doutora em Linguística Teórica e Descritiva pela UFMG. Professora visitante da UERJ. IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 27, p. 49-61, 2º. Sem. 2014 49

A norma linguística CONSIDERAÇÕES SOBRE A NOÇÃO DE NORMA LINGUÍSTICA Diversos são os pontos de vista a partir dos quais os fenômenos linguísticos podem ser observados segundo o objetivo estabelecido pelo pesquisador e o aparato teórico de que ele se vale na abordagem de seu objeto. Diversos também são os recortes possíveis para a delimitação do fenômeno linguístico a ser considerado. Quando a pretensão é descrever a língua em si mesma, pensa-se logo em estruturas fonológicas, morfológicas e sintáticas, consideradas como sustentação de aspectos semânticos da língua. Por outro viés, pensa-se nos estágios em que as formas da língua se encontravam em determinados períodos de sua história, seja pela circunscrição de outras sincronias, seja por uma perspectiva diacrônica, isto é, pela consideração do percurso que resultou nas formas observáveis da atualidade da língua. Há, também, perspectivas que buscam explicar a língua em funcionamento, abordando, por exemplo, questões relativas a gênero e discurso. E, mais evidentemente do que os estudos estruturais, essas abordagens colocam a língua em interface com elementos que não são ela mesma, mas que lhe são pertinentes. Ao menos em tese, contemporaneamente, todas essas perspectivas de estudo da língua, estando elas mais ou menos restritas à estrutura em si, lidam com o fenômeno linguístico tal como ele aparece, ou melhor, tal como os investimentos teóricos o recortam enquanto fragmentos empíricos. Distante dessa abordagem da língua enquanto objeto de pesquisa está o olhar dos próprios falantes. Em primeira instância, a distância entre as visões leiga, que é a do falante, e científica, que é a do pesquisador, existe porque o falante, naturalmente, não pensa sobre as dimensões mais estritas da língua, ou seja, ele não pretende definir a língua enquanto objeto. Para o falante, a língua se apresenta como idioma, instrumento de comunicação do Estado em que ele se encontra. A língua enquanto objeto é algo a que ele tem acesso na escola, onde é mensurado o seu desempenho em uso, e que está retratada em um compêndio que indica as suas formas corretas. Nesse sentido, a língua enquanto tal se apresenta ao falante como algo submetido a erro e a correção. Em outras palavras, a consideração sobre a língua já se apresenta submetida a uma norma e, tendo em vista que o erro é por vezes apresentado como não língua, a língua para o falante acaba sendo a própria norma. Considerando a língua como instrumento de comunicação natural dos homens, considerando ainda que por meio dela as pessoas lidam com a construção de sentidos e, assim, se mostram enquanto seres sociais, e tendo em vista que a sociedade está organizada por estratificações que delimitam recorrências, isto é, que descrevem normalidades, podemos dizer que, imersa no âmbito social, a língua está sujeita a normas. O que nos interessa aqui é discutir qual é a natureza dessas normas, ou melhor, em que medida elas estão vinculadas ao sentido de normalidade ou de normatividade. IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 27, p. 49-61, 2º. Sem. 2014 50

Priscila Lacerda & Cynthia Vilaça Comecemos então discutindo a noção de norma no sentido em que Coseriu (1973) compreendeu esse termo ao propor a distinção entre sistema, norma e fala a partir da dicotomia entre língua e fala estabelecida por Saussure. Segundo Coseriu, podemos inferir que a noção saussuriana de língua comporta os conceitos de sistema e de norma. Em sua dimensão de sistema abstrato de oposições funcionais, a língua seria chamada sistema; mas, enquanto instituição social (ligada a outras instituições sociais), que se compõe também de elementos não funcionais, podemos chamá-la de norma. Esta, portanto, corresponde à realização coletiva do sistema. Tal realização contém o próprio sistema investido de elementos funcionalmente não relevantes, mas normais, no sentido de recorrentes, na fala de uma comunidade. A norma é, com efeito, um sistema de imposições sociais e culturais que variam, evidentemente, segundo a comunidade. A distinção entre norma e sistema, nas palavras de Coseriu, esclarece melhor o funcionamento da linguagem, a atividade linguística que é, ao mesmo tempo, criação e repetição (re-criação) dentro dos limites e segundo as coordenadas do sistema funcional. Podemos dizer então que a atividade linguística, que se concretiza na fala (terceiro elemento da divisão tripartida proposta por Coseriu), realiza um movimento direcionado pela norma dentro das livres possibilidades oferecidas pelo sistema. Diante desse quadro, podemos afirmar que o que se impõe ao falante não é o sistema (que se oferece a ele), mas a norma. O falante tem consciência e se vale do sistema, conhecendo ou não a norma, obedecendo-a ou não. Além de uma norma estabelecida, há sempre outras possibilidades permitidas pelo sistema 3. Ainda que o conceito de norma apresentado por Coseriu a estabeleça em termos de imposição, esse autor não entende norma como normatividade. Para esse linguista, a norma se impõe aos falantes a partir dos elementos socioculturais que estão no entorno da fala, não enquanto regra a se manter dentro dos limites da língua. Dito de outra maneira, uma mudança em relação àquilo que seria normal não quer dizer que a fala transgrediu o sistema, antes quer dizer que houve um movimento além do que seria previsto pelas tendências da norma social, uma espécie demonstração de produtividade do que é previsto pelo sistema. Outros linguistas também fizeram considerações a respeito de norma linguística. Rey (2001), por exemplo, trabalhou com as noções de norma objetiva e norma avaliativa, associando-as, respectivamente, ao normal e ao normativo. Podemos dizer que a norma objetiva guarda, em linhas, certa coincidência com o que Coseriu chamou simplesmente de norma, ou seja, ela figura no âmbito das estatísticas das variantes de uso da língua socialmente determinados. A norma avaliativa, por sua vez, diz respeito aos juízos de valor atribuídos a essas variantes de uso da língua, isto é, aos comportamentos linguísticos que perfazem as normas objetivas. 3 Neste trecho, parafraseamos ou transcrevemos literalmente alguns fragmentos do texto de Coseriu (1973). A tradução a partir do espanhol é de nossa inteira responsabilidade. IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 27, p. 49-61, 2º. Sem. 2014 51

A norma linguística Segundo Rey (2001, p. 131), há uma tendência ao julgamento linguístico coerente para o conjunto da sociedade, refletindo a estrutura social (socioeconômica), determinada pressão social que conduz à unificação das normas subjetivas em uma única norma avaliativa. Esta última, refletindo uma ideologia dominante, fundamenta o que conhecemos sob o signo de norma prescritiva. A norma prescritiva, em sua natureza restritiva, tende a colocar-se como única forma legítima de uso da língua e sustenta essa legitimidade por um discurso que pretende escamotear o seu caráter arbitrário, induzindo à confusão na consciência linguística dos falantes. Explicitando melhor, o discurso da norma prescritiva a identifica ao uso correto da língua e, ao fazê-lo, acaba posicionando a prescrição no próprio lugar da língua, tomando como erro os usos que a ela não se alinhem. O falante, por sua vez, assimilando o peso ideológico da norma estabelecida (REY: 2001, p. 134), subsidia a proposta pedagógica dos compêndios gramaticais ao julgar-se pouco proficiente em sua própria língua materna. Outra visão sobre o uso da língua sustenta a normatividade obviamente é nesse sentido de norma que devemos entender o conceito de norma prescritiva veiculada pelos compêndios gramaticais. Trata-se da perspectiva purista. Definindo um modelo de língua, que coincide com a norma prescritiva das gramáticas, o purista luta pela sua conservação sob pena de que a língua se perca em meio às variações de uso que ele considera como erros. Os puristas, posicionando-se como se ignorassem que a mudança é um processo inexorável (que alcança todas as variedades em múltiplas direções) (FARACO: 2004, p. 44) e que a incorporação das mudanças mais frequentes no uso seja um processo natural de evolução das línguas, recusam a mudança histórica e lutam por um certo imobilismo linguístico, agarrando-se às correções e aos preciosismos da gramática normativa. Ainda uma contribuição importante a respeito de norma linguística que consideraremos aqui nos foi concedida por Faraco (2004) ao discutir norma culta e norma-padrão. Conhecida a relação estreita que há entre norma, no sentido dado por Coseriu (1973) a esse termo, e sociedade, Faraco nos diz que a norma culta [...] deve ser entendida como designando a norma linguística praticada, em determinadas situações (aquelas que envolvem certo grau de formalidade), por aqueles grupos sociais mais diretamente relacionados com a cultura escrita, em especial por aquela legitimada historicamente pelos grupos que controlam o poder social [...] (FARACO: 2004, p. 40). Isso significa que a norma culta é uma entre as demais normas implícitas (ALÈONG, 2001) que caracterizam um grupo social de falantes. Se em torno da escrita se agrupa um estrato social privilegiado, o avanço da escrita em si mesmo desencadeia a necessidade de uma norma estabilizada, a que chamamos de norma-padrão. Diferentemente do que se poderia pensar, essa norma-padrão, embora esteja mais próxima da IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 27, p. 49-61, 2º. Sem. 2014 52

Priscila Lacerda & Cynthia Vilaça norma culta do que das demais, não coincide com ela. Explicitando melhor, a relativa estabilidade da normapadrão faz com que ela não tenha coincidência nem mesmo com a norma culta que, enquanto norma em plena utilidade social, está também sujeita a variações suscitadas por interferências de outras normas. Ou seja, a [...] relativa estabilidade do padrão cria um natural descompasso entre ele e a fala culta (FARACO: 2004, p. 49). Na verdade, é possível dizer que o descompasso é entre a norma-padrão e qualquer variedade de uso, o que a caracteriza como artificial. Enfim, retomando diversas concepções de norma linguística, pudemos observar que, se por um lado o uso real da língua se dá na relação entre os fenômenos sociais e linguísticos, que impõe aos falantes uma norma em acepção de normalidade, por outro lado, diante da variedade de usos e, portanto, de normas, se sobressai uma variedade de língua que é associada ao prestígio socioeconômico e que se impõe sobre as outras sob o signo da correção e do bon usage. Em linhas gerais, podemos associar essas duas concepções de norma linguística ao que Alèong (2004) chamou de norma implícita e de norma explícita, respectivamente. Em suma, diríamos que as normas implícitas (no plural, porque seriam múltiplas) se assentam nas diversas atividades de linguagem e conformam, por exemplo, o teor de formalidade ou informalidade do registro apropriado para uma comunicação proferida em uma mesa de simpósio ou em uma mesa de botequim. Em alguma medida, as normas implícitas estariam consubstanciadas, então, na estabilidade relativa dos gêneros de texto orais ou escritos. A norma explícita, por sua vez, seria aquela que se impõe enquanto normatividade, parâmetro de correção, e que, subsidiada pelo complexo de ignorância linguística que assola os falantes nativos da língua portuguesa no Brasil, por exemplo, se impõe enquanto parâmetro de língua. Essa norma é a que se encontra, como já dissemos, em nossos compêndios gramaticais e que, quando não se apresenta como verdade natural, se vale de argumentos para se justificar. Esboçaremos a seguir o perfil dos argumentos utilizados para legitimar uma norma prescritiva. Vale dizer que, doravante, ao utilizarmos o termo norma somente, estaremos nos referindo à norma em sentido normativo. NOTAS SOBRE OS CRITÉRIOS DE LEGITIMAÇÃO DE UMA NORMA Nesta seção, apontaremos a natureza de alguns critérios de legitimação das normas prescritas em nossos compêndios gramaticais. Tais critérios ou argumentos são os fundamentos apresentados por um gramático para a escolha de uma forma em detrimento de outra, isto é, são o que legitima as formas entendidas como corretas ou como preferíveis a outras. Enumeremos e caracterizemos então alguns desses argumentos: IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 27, p. 49-61, 2º. Sem. 2014 53

A norma linguística 1. Argumento histórico: propõe-se a fazer prevalecer [...] um uso atestado há muito mais tempo que seu concorrente (REY: 2001, p. 134). Arriscaríamos a dizer que a origem desse critério está nos estudos alexandrinos, que já se interessaram por linguística histórica com o objetivo de fixar o texto genuíno de Homero, uma vez que foram encontradas variações nos testemunhos. Mas as justificativas dessa natureza, presumimos, conquistaram espaço de fato no período romântico. Primeiramente, porque esse período é caracterizado por um desejo de retorno ao passado como tentativa de resolução dos conflitos presentes. E, em segundo lugar, porque foi nessa época que se desenvolveram os estudos comparatistas que visavam à reconstrução da protolíngua, o que ofereceu subsídios para a remontagem histórica das formas. 2. Argumento racional: também chamado de argumento lógico, ele procura [...] fazer coincidir semântica do discurso e regularidade, lutando, por exemplo, contra os idiomatismos desmotivados, como eu custo a crer ou há anos atrás (REY: 2001, p. 134). A origem desse argumento está em Aristóteles, que [...] funda a lógica gramatical, condição da adequação do enunciado a seu objeto (CASEVITZ; CHARPIN, 2004, p. 30); mas é com a gramática especulativa dos escolásticos que esse critério ganha novo fôlego, retomando a doutrina de Aristóteles e estabelecendo como objetivo central a reflexão teórica, o pensamento sobre os fundamentos lógicos das regras e conceitos gramaticais (ROBINS, 1983). 3. Argumento de autoridade: muito recorrente, esse critério baseia-se na consideração de que os autores clássicos possuem um grau de proficiência linguística mais elevado e que, por isso, seus escritos servem de parâmetro de correção. Sob certo aspecto, podemos remontar a raiz desse critério à Grécia, porque, segundo Casevitz & Charpin: [...] a norma na gramática grega, nascida do sentimento da unidade da língua apesar de sua diversidade e de uma certa consciência de sua regularidade, se desenvolveu num esforço pedagógico por fixar a língua um certo estado de pureza e por permitir [justamente] o estudo dos escritores da época áurea (CASEVITZ; CHARPIN, 2001, p. 31-32). 4. Argumento social: esse critério, especialmente, coloca em conflito as acepções de norma implícita e norma explícita. Tendo em vista que a norma implícita é resultante da interface entre as dimensões social e linguística que norteiam o uso da língua, fundamentar a norma explícita sobre a variante de um determinado grupo, privilegiado do ponto de vista socioeconômico e cultural, agride a normalidade das demais variantes de uso da língua. A despeito disso, admitimos que, pela recorrência, esse critério está no cerne da legitimação construída na gramática que analisaremos a IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 27, p. 49-61, 2º. Sem. 2014 54

Priscila Lacerda & Cynthia Vilaça seguir. Podemos dizer ainda que a justificativa social pra a legitimação de normas linguísticas teve grande impulso no período renascentista, já que nesse período [...] a língua escrita das classes cultas foi a base dos estudos gramaticais além do fato de que [...] o Renascimento anunciou uma época de mudanças na sociedade inglesa: a cuidadosa preservação das normas linguísticas próprias das classes superiores e a aquisição de tais normas [era tida] como passo imprescindível para qualquer promoção social (ROBINS, 1983). 5. Argumento estético: segundo esse argumento, usos e elementos são apreciados ou [...] depreciados por razões complexas de eufonia [ou] de conotações (REY, 2001, p. 134), ou seja, no escopo deste critério, a norma é legitimada por justificativas demasiado relativas e fluidas. Ele denuncia, mais do que os outros, que a escolha entre determinadas formas é, por vezes, motivada em primeira ordem por um gosto pessoal do gramático. 6. Argumento natural: este critério justifica a norma simplesmente por uma questão de natureza ou de convencionalidade dos próprios fatos linguísticos. A fim de ilustrarmos a aplicação de alguns desses critérios, analisaremos o trabalho de legitimação de normas no âmbito da ortoépia e da ortografia, presente na gramática de Jerónimo Soares Barbosa (1822). GRAMMATICA PHILOSOPHICA DA LINGUA PORTUGUEZA (1822): ANALISANDO A LEGITIMAÇÃO DE NORMAS NAS SEÇÕES DE ORTHOEPIA E DE ORTHOGRAPHIA Filiada à concepção logicista que norteou a Gramática de Port-Royal dois séculos antes, a Grammatica Philosophica da Lingua Portugueza (1822), de Jerónimo Soares Barbosa (doravante J.S.B.), privilegia a explicitação teórica e a descrição dos fenômenos linguísticos enquanto vinculados às categorias de pensamento. Dessa forma, os lances de normatividade não se mostraram tão numerosos e, quando estão presentes, raramente se apresentam com nitidez. Apresentaremos abaixo trechos da referida gramática, extraídos da parte dedicada a Ortoépia, que se ocupa do estudo dos caracteres fônicos e da boa pronúncia das palavras, e da parte de Ortografia, que aborda questões relativas à correção da representação escrita das palavras. Os trechos são acompanhados de uma breve consideração a respeito da justificativa dada à norma. IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 27, p. 49-61, 2º. Sem. 2014 55

A norma linguística a) Orthoepia Após um longo trecho em que descreve a pronúncia das palavras da língua portuguesa, J.S.B. inicia suas considerações sobre o que ele denominou de vícios de pronunciação (p. 50). O gramático justifica de antemão o seu posicionamento, as preferências que serão apontadas na sequência, declarando a superioridade das pronunciações da Corte, isto é, por um argumento de natureza social e, em seguida, se vale também de um argumento estético, dizendo que as formas em descarte são desagradaveis ao ouvido (p. 50). Vejamos abaixo o trecho em que ele se justifica por um critério relacionado ao prestígio social. Figura 1 Grammatica Philosophica da Lingua Portugueza (J.S.B., 1822, p. 50) E sob essa perspectiva, são abordados os seguintes fatos linguísticos (J.S.B., 1822, p. 51-55): Troca das vozes Nas palavras do gramático, os Brasileiros costumam, na pronúncia, trocar o a grande em pequeno, dizendo vadio [breve] em vez de vadio [longo]. Também costumam trocar o e grande e aberto pelo pequeno e breve e, ainda, trocam este último pelo i. Dizem, por exemplo, pregar [breve] no lugar do aberto e longo. Os Algavios, por sua vez, costumam trocar o i em e dizendo dezer no lugar de dizer. E os Minhotos trocam o u oral pelo u nasal, dizendo hua [com u nasal] no lugar de huma. Além de trocarem o o grande fechado pelo o [til nasal], dizendo bõa no lugar de bôa. Entretanto, segundo o autor, os Rustico são os que mais cometem erros de troca de vozes, dizendo, por exemplo, rezão no lugar de razã ou precurador no lugar de procurador, entre outros. E não só os Rusticos, mas também muita gente polida, cometem o engano de pronunciar o plural tal como o singular, como ô fechado, quando o o deveria ser aberto: soccôrros no lugar de soccórros ou gostôsos no lugar de gostósos. IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 27, p. 49-61, 2º. Sem. 2014 56

Priscila Lacerda & Cynthia Vilaça Troca das Consonâncias Aos Brasileiros, é atribuída a impropriedade de se pronunciar o z no lugar do s líquido como, por exemplo, dizer mizterio no lugar de misterio. Os Rusticos, por sua vez, tendem a colocar g, l, v, x e l, respectivamente, no lugar de z, d, x, s e r, ou às avessas. Também mudam frequentemente o lhe/lhes dizendo le disse/les disse no lugar de lhe disse/lhes disse. Troca de Diphtongos e de Syllabas Os Minhotos trocam sempre o ditongo nasal ão por om, pronunciado, por exemplo, sujeiçom e razon no lugar de sujeição e razão. E ainda articulam ou como ão : Estão bem no lugar de Estou bem. Já os Algavios e Alemtejãos trocam êi por êu ao dizerem mêi pai, por exemplo; enquanto os Rusticos da Provincia e dos arredores de Lisboa trocam por ãe os ditongos nasais ão e õe, pronunciando tostães e grães no lugar de tostões e grãos. Acréscimo, subtração ou inversão de vozes Segundo o gramático, os Beirões, compartilhando este vício com os Algarvios e com os Alemtejãos, descaracterizam muitas palavras com acréscimos supérfluos. Eles tendem a juntar um i ao ô grande fechado, ao a e a 3ª pessoa do verbo ser há, ao é grande aberto e ao u, dizendo côive no lugar de couve, ai agua e hay alma, héi justo e fruita. O chamado Povo rustico costuma errar pelo excesso acrescentando um a ao início de muitas palavras, dizendo alanterna, avoar... Em contrapartida, também costuma subtrair as vozes das palavras, dizendo calidade no lugar de qualidade ou masginação no lugar de imaginação; ao passo que os Brasileiros também cometem o erro de subtrair o a do ditongo ai dizendo, por exemplo, pixão no lugar de paixão. Há ainda os vícios que correspondem à inversão dos sons das palavras, uma perturbação da ordem de suas sílabas, como dizer frôl no lugar de flor ou percissão no lugar de procissão. Nos termos do próprio gramático, este é o pior vício, sendo o que mostra mais a rusticidade. Podemos observar com nitidez que o critério utilizado por J.S.B. para legitimar a norma no âmbito da ortoépia é o critério social. A pronúncia da corte lisboeta é claramente tomada como parâmetro de correção em detrimento da pronúncia de outros estratos sociais, considerados de maneira depreciativa como rústicos. Ao final da seção, o gramático firma a sua avaliação negativa a respeito das variantes de pronúncia IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 27, p. 49-61, 2º. Sem. 2014 57

A norma linguística propondo, como vemos na Figura 2 logo abaixo, uma metodologia de ensino de pronunciação realizada a partir da leitura de textos impressos, o que, mais uma vez, atesta como parâmetro de correção o uso linguístico das classes socioeconômica e culturalmente privilegiadas, isto é, das classes que estão imersas em uma cultura letrada. Vejamos em seguida a consideração da norma no âmbito do estudo ortográfico. Figura 2 Grammatica Philosophica da Lingua Portugueza (J.S.B.: 1822, p. 54) b) Orthographia Ortografia dos ditongos nasais J.S.B. coloca como norma que, nos ditongos em que houver confusão entre os sons o e u nas prepositivas, deve-se escolher sempre a grafia em o, e naqueles cuja sonoridade oscilar entre e e i, deve-se optar por e nos ditongos õe e ẽe, e por i caso sejam os ditongos ãi e ũi. Segundo o autor (p. 63), assim o atestam as escrituras mais autorizadas dos antigos escritores. Em contrapartida, o gramático afirma que as más escrituras cometem o equívoco de escrever os ditongos nasais, sem qualquer confusão de pronúncia, como se fossem ditongos simples, escrevendo irmam IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 27, p. 49-61, 2º. Sem. 2014 58

Priscila Lacerda & Cynthia Vilaça no lugar de irmão, por exemplo. Tais escrituras de má qualidade ainda cometem o erro de grafarem com n, sinal de nasalidade, nomes que deveriam ter o til sobre a prepositiva do ditongo. Assim, escrevem saons no lugar de sãos ou tostoens no lugar de tostões (p. 64). Nesse caso, podemos perceber que o gramático legitima a norma ortográfica que está a ser apresentada, tomando, enquanto contraexemplos, escritores avaliados negativamente, o que não deixa de ser uma justificativa construída às avessas sobre o critério de autoridade. Ortografia de palavras de origem grega Segundo J.S.B., o uso já tem autorizado a escrita de palavras como salmo e salteiro no lugar de psalmo e psalteiro. Nesse ponto, vemos a sobreposição do critério estético sobre o critério histórico. O autor afirma que a forma sem o p, apesar de produzir um distanciamento da origem do vocábulo, é melhor porque privilegia a docilidade da pronúncia (p. 71). A grafia do som de ô seguida de consoantes líquidas Adotando novamente um critério estético, J.S.B. afirma que ao escrever o som do ô grande fechado como o ou ou é indiferente aos ouvidos, sendo pertinente tanto a escrita louvár quanto lôvar. Porém, acrescenta o gramático, quando ao ô se seguem as consoantes l, r ou s, na medida em que são consoantes líquidas, é melhor grafar em ô do que em ou ; isto é, prefere-se louvôr, sôldo e gôsto a louvour, souldo e gousto (p. 78). Podemos perceber então que, no escopo das regras ortográficas, o critério social não foi prevalecente como na apresentação das regras em ortoépia. Em compensação, embora as justificativas sociais não tenham sido relevantes para a atribuição de preferência entre duas possibilidades, na seção dedicada à ortografia, por diversas vezes, J.S.B. sugere que os demais falantes da língua estão em um estágio deficitário de domínio das regras ortográficas se comparados aos falantes cultos. Ou seja, o gramático acaba manifestando que os falantes não pertinentes ao círculo social privilegiado não sabem a própria língua e, assim, ressalta o propósito pedagógico da gramática. Vejamos nas Figuras 3 e 4 dois trechos em que o autor reproduz essa ideologia que sustenta a própria normatividade da gramática. IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 27, p. 49-61, 2º. Sem. 2014 59

A norma linguística Figura 3 Grammatica Philosophica da Lingua Portugueza (J.S.B.: 1822, p. 78) Figura 4 Grammatica Philosophica da Lingua Portugueza (J.S.B.: 1822, p. 82) CONSIDERAÇÕES FINAIS Considerando inicialmente as concepções de norma e verificando o mecanismo pelo qual uma dessas normas, a prescritiva, é legitimada no discurso gramatical, pudemos perceber que, a despeito da consideração de que as normas linguísticas são variantes de natureza social que se alinham às possibilidades do sistema, essas normas estão sujeitas a avaliações, também sociais, que acabam por lhes conferir um caráter paradoxal de não língua. Nessa posição, sustenta-se uma ideologia que confere poder de autoridade àqueles que dominam a variante escolhida como representante única da verdadeira língua, os social e culturalmente privilegiados. E a gramática normativa, então, firma a sua posição pedagógica: ensinar a língua portuguesa àqueles que a corrompem pelo mau uso. Nesse contexto, o conceito de norma implícita ou norma objetiva, vinculada a um estrato social, mostra-se completamente esvaziado. Podemos ver isso em evidência, considerando a definição dada por Jerónimo Soares Barbosa às duas partes da gramática que consideramos aqui: a Orthoepia ensina a distinguir, e a conhecer os sons articulados, proprios da Lingua, para bem os pronunciar (p. 01) e a Orthographia he a Arte de escrever certo (p. 56). IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 27, p. 49-61, 2º. Sem. 2014 60

Priscila Lacerda & Cynthia Vilaça REFERÊNCIAS ALÈONG, Stanley. Normas linguísticas, normas sociais: uma perspectiva antropológica. In: BAGNO, Marcos (Org.). Norma linguística. São Paulo: Loyola, 2001. p. 145-174. BARBOSA, Jerónimo Soares (1737-1816). Grammatica philosophica da lingua portugueza ou princípios de grammatica geral applicados à nossa linguagem. Lisboa: Academia Real das Sciencias, 1822. XVI, 466 p. Disponível em: <https://play.google.com/books/reader?id=xpeuaaaayaaj&printsec=frontcover&output=reader&hl=pt_br&p g=gbs.pa8>. Acesso em: 30 de novembro de 2014. CASEVITZ, Michel; CHARPIN, François. A herança greco-latina. In: BAGNO, Marcos (Org.). Linguística da norma. São Paulo: Loyola, 2004, p. 37-61. COSERIU, Eugenio. Sistema, norma e habla. In:. Teoria del lenguaje y linguística general: cinco estudios. 3 ed. rev. e cor. Madrid: Gredos, 1973. p. 11-113. FARACO, Carlos Alberto. Norma-padrão brasileira: desembaraçando alguns nós. In: BAGNO, Marcos (Org.). Linguística da norma. São Paulo: Loyola, 2004, p. 201-216. REY, Alain. Usos, julgamentos e prescrições linguísticas. In: BAGNO, Marcos (Org.). Norma linguística. São Paulo: Loyola, 2001. p. 115-144. ROBINS, Robert H. Pequena história da linguística. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1983, p. 7-160. Data de submissão: dez./2014. Data de aprovação: fev./2015. IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 27, p. 49-61, 2º. Sem. 2014 61