Acolher é Proteger, Recolher é Crime



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Transcrição:

Acolher é Proteger, Recolher é Crime Siro Darlan Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e Membro da Associação Juízes para a Democracia. A Declaração de Genebra de 1924 estabeleceu à Humanidade o dever de observância aos direitos de crianças, do qual se infere o dever prestacional de assegurar-lhes a proteção, assim como o dever de abstenção de prá cas perniciosas. Em 20 de novembro de 1959, a Organização das Nações Unidas adotou a Declaração Universal dos Direitos da Criança, posteriormente ra ficada pelo Brasil. Tal documento, em consonância à proteção especial enunciada na Declaração de Genebra, expõe que a humanidade deve à criança o que de melhor ver a dar, indicando em seu Princípio II e VII que: (...) II- A criança tem o direito de ser compreendida e protegida, e deve ter oportunidades para seu desenvolvimento sico, mental, moral, espiritual e social, de forma sadia e normal e em condições de liberdade e dignidade. As leis devem levar em conta os melhores interesses da criança. (...) Reafirmando as dire vas da Declaração Universal dos Direitos da Criança, o Ar go 3 1. prevê que (...) Todas as ações rela vas às crianças, levadas a efeito por autoridades administra vas ou órgãos legisla vos, devem considerar, primordialmente, o interesse maior da criança. (...) O melhor interesse da criança se consolida como disposição de grande amplitude, que indica a prioridade em se concre zar os direitos garan dos às crianças, vez que se deve, sob quaisquer circunstâncias, considerar as melhores soluções possíveis para essa parcela da população. A Cons tuição Federal de 1988 contempla a proteção dos direitos fundamentais antes mesmo de apresentar as normas organizadoras da a vidade estatal, revelando o seu compromisso à consecução daqueles. R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 271-277, jul.-set. 2011 271

O ar go 5º, 1º, da CRFB estabelece que as normas sobre os direitos humanos têm aplicabilidade imediata: (...) 1º - As normas definidoras dos direitos e garan as fundamentais têm aplicação imediata. (...) A efe vação dos direitos fundamentais concerne aos custos dos direitos. Em uma sociedade em que os recursos são escassos, implementar um direito fundamental, especialmente os sociais, é tarefa que exaspera os limites dos critérios jurídicos de proteção do direito para invadir a inevitável relevância dos fatos. A Carta Magna prevê, em seu ar go 227, o arcabouço do atual regramento acerca da garan a de direitos de crianças e adolescentes, in verbis: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Preleciona o Professor Wilson Donize Libera : Nossos Tribunais têm reiteradamente, e com acerto, firmado entendimento reconhecendo que o interesse da criança e do adolescente deve prevalecer sobre qualquer outro interesse, quando seu des no es ver em discussão (LIBERATTI, WILSON DONIZETI. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. São Paulo: Malheiros Editores, 1993, p. 17.) Dispõe o ar go 1º da Lei 8069/90: Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente. Crianças e adolescentes passaram a ser considerados cidadãos, sujeitos de direitos, com direitos pessoais e sociais garan dos, desafiando 272 R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 271-277, jul.-set. 2011

os governos em todas as suas esferas a formularem e implementarem polí cas públicas, especialmente dirigidas a esse segmento, amparadas na des nação privilegiada de recursos. Nesse sen do, já ve oportunidade de mencionar que a solução para problemas que envolvam crianças e adolescentes não perpassa por a tude repressiva. Ao revés, deve ser realizada mediante a consecução de polí cas públicas, cuja realização impõe a apreciação principiológica em todos os níveis e esferas de atuação pública. Ao Poder Legisla vo impõe a discricionariedade regrada de prever a legislação per nente à previsão de normas gerais que atendam aos fins propostos em sede cons tucional, de modo que todos os direitos conferidos às crianças sejam alcançados, sendo certo que tais regras devem estar balisadas pela estrutura principiológica de garan a do melhor interesse das crianças. Ao Poder Judiciário incumbe garan r a cons tucionalidade e a legalidade dos atos realizados, tendo sempre em consideração a perspec va de atuação em favor de crianças e adolescentes, des natárias das normas preven vas e prote vas. Por sua vez, não pode o Poder Execu vo, imbuído de ponto de vista repressivo, pretender realizar faxina social, mediante o recolhimento das crianças, como alhures já referi, de modo que sejam crianças expurgadas da sociedade. A solução não passa pela exclusão dos indivíduos, a consideração distorcida e dissociada da previsão cons tucional. Ao contrário, impõe o respeito a sua condição de pessoa em desenvolvimento, mediante a previsão, garan a e execução de polí cas públicas que permitam a crianças e adolescentes o alcance de seus direitos. Nesse sen do, cabe afirmar que o Ministério Público detém atribuições legais para impor a adequada realização de polí cas públicas em prol de crianças, assim como para impedir o vilipêndio acintoso de seus direitos. Nem se afirme que se estaria adentrando o mérito administra vo. Isso porque o resguardo do mérito administra vo presume a sua legalidade. No caso de recolhimento de crianças, não tendo por ó ca o seu melhor interesse, mas tão somente a maquiagem social, verifica-se a ilegalidade, sendo de atribuição do Judiciário a sua apreciação para fins de expurgar o equívoco do ato. R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 271-277, jul.-set. 2011 273

Em consonância com a recente reforma do Código Penal, Lei 12.403/2011, cabe desde logo dizer que a prisão preven va poderá ser decretada como garan a da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria. Assim, como leciona a doutrina, o periculum liberta s e o fumus commissi delic são o fundamento e o requisito da preven va, respec vamente. A nova Lei 12.403, de 04/05/2011, que alterou o parágrafo único do art. 313 do CPP, prevê que também será admi da a prisão preven va quando houver dúvida sobre a iden dade civil da pessoa ou quando esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, devendo o preso ser colocado imediatamente em liberdade após a iden ficação, salvo se outra hipótese recomendar a manutenção da prisão. O mestre Guilherme de Souza Nucci, na sua obra, Prisão e Liberdade, sobre a nova lei, assevera que o direito ao silêncio liga-se ao contexto da imputação, mas não à iden ficação do indiciado ou réu. Ainda, ressalva que a Lei 12.037/2009 prevê as hipóteses nas quais se pode iden ficar o indiciado ou réu, criminalmente, colhendo suas impressões dac loscópicas e sua fotografia. O doutrinador Aury Lopes Junior, no seu livro O novo regime jurídico da prisão processual, liberdade provisória e medidas cautelares diversas, salienta, com propriedade que lhe é peculiar, que o disposi vo em questão não autoriza a prisão preven va para averiguações e que tal ar go deve ser interpretado em conjunto com a Lei 12.037/90, que regulamentou a iden ficação criminal prevista no art. 5º, LVIII, da CF. O mestre Aury ressalva que, não sendo apresentado qualquer documento civil ou militar, ou nas hipóteses do art. 3º da Lei 12.037, será o suspeito subme do à iden ficação criminal e, dependendo do caso, à prisão preven va (desde que cabível). Como se vê, a prisão preven va, quando houver dúvida sobre a iden dade civil, somente poderá ser decretada na ausência de qualquer documento civil ou militar, ou nas hipóteses do art. 3º da Lei 12.037 (tais como o documento apresentar rasura ou ver indício de falsificação, entre outros), desde que seja cabível. 274 R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 271-277, jul.-set. 2011

Cediço que a prisão preven va somente tem cabimento nos crimes dolosos punidos com pena priva va de liberdade máxima superior a 04 anos; se o suspeito ver sido condenado por outro crime doloso com sentença transitada em julgado; se o crime envolver violência domés ca e familiar contra a mulher, criança, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garan r a execução das medidas prote vas de urgências, ou se houver descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares. Fora as hipóteses de cabimento acima mencionadas, a prisão preven va, quando houver dúvida sobre a iden dade civil ou quando a pessoa não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, é ilegal, sob pena de afronta ao princípio da presunção da inocência. Não se pode prender apenas para iden ficação pessoal. Como bem esclarece Silvio César Arouk Gemaque ninguém pode ser preso preven vamente apenas porque não tenha como comprovar sua iden dade, sem que haja qualquer indício de prá ca de crime (...). Finalizando, cumpre então dizer que a nova lei não pode autorizar a prisão de qualquer pessoa tão somente pelo fato de a mesma não fornecer elementos para a sua devida iden ficação pessoal, somente se podendo aceitá-la, desde que cabível, conforme as hipóteses acima mencionadas. Sob esse enfoque, deve-se analisar a real natureza do denominado Protocolo do Serviço Especializado em Abordagem Social no âmbito da Proteção Social Especial de Média Complexidade que está sendo implementado pelo Poder Execu vo do Município do Rio de Janeiro. Diz o citado documento (Resolução SMAS nº 20, de 27 de maio de 2011, publicado no Diário Oficial Eletrônico do Município de 30.05.2011), no seu ar go 5º, inciso XV, in verbis: Art. 5º - São considerados procedimentos do Serviço Especializado em Abordagem Social, devendo ser realizados pelas equipes dos CREAS/Equipe Técnica/Equipe de Educadores: (...) XV acompanhar todos os adolescentes abordados à Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente - DPCA, para verificação de existência de mandado de busca e apreensão e após acompanhá-los à Central de Recepção para acolhimento emergencial; (...)(grifei) R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 271-277, jul.-set. 2011 275

Cediço que a apreensão em flagrante do adolescente infrator é medida drás ca de privação de liberdade, em relação a qual devem ser rigorosamente observados os direitos e garan as previstos no ECA, sob pena de responsabilização. Registre-se que, há que deixar claro, a criança (até 12 anos de idade incompletos) não será apreendida em flagrante pela polícia por prá ca de ato infracional, mas apenas o adolescente (de 12 até 18 anos de idade incompletos). Segundo o ar go 105 do ECA, ao ato infracional pra cado por criança corresponderão as medidas previstas no art. 101 (medidas prote vas ou de proteção em espécie), a serem aplicas pelo Conselho Tutelar (art. 136, I) ou Juiz da Infância e Juventude (art. 262). Pelo ora exposto, depreende-se que, prima facie, inexis rá mandado de busca e apreensão expedido em desfavor de criança, logo, a dita abordagem, para o efeito previsto no inciso acima referido, a nge ou deveria a ngir apenas o adolescente. Por outro lado, nos termos do ECA (art. 106, caput), em norma adaptada do art. 5º, LXI, da Cons tuição, o adolescente somente será privado de sua liberdade em duas hipóteses: 1) em caso de flagrante de ato infracional ou 2) por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente. Ora, se a apreensão ou a abordagem do adolescente não se deu em razão de flagrante de ato infracional, sua condução coerci va à DPCA para verificação de existência de mandado de busca e apreensão representa claro desrespeito às garan as cons tucionais e infracons tucionais. A apreensão em flagrante do adolescente está regulada no ECA, mais precisamente, no Título VI: Do Acesso à Jus ça, Capítulo III: Dos Procedimentos, Seção V: Da Apuração de Ato Infracional Atribuído a Adolescente, valendo salientar que aplicam-se subsidiariamente as normas gerais previstas no Código de Processo Penal e leis processuais esparsas per nentes (cf. art. 152). Assim, somente se houver dúvida sobre a idade real do adolescente, cuja iden ficação não foi ob da e que alega ser menor de 18 anos, como tal será ele tratado, inclusive na lavratura dos respec vos procedimentos, até esclarecimento através do órgão de iden ficação ou perícia médico-legal. A iden ficação compulsória, em consonância com o art. 5º, LVIII, da CF ocorre nos termos do art. 109 do ECA, que dispõe que: O adolescente civilmente iden ficado não será subme do a iden ficação com- 276 R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 271-277, jul.-set. 2011

pulsória pelos órgãos policiais, de proteção e judiciais, salvo para efeito de confrontação, havendo dúvida fundada. (grifei) Realizada a iden ficação ao arrepio da hipótese legal, configura-se a responsabilidade penal do art. 232 do ECA. Deve-se, portanto, evitar a vulgarização da apreensão do adolescente, estabelecendo-a como uma ro na de abordagem social, sob o falso aspecto de que se está cumprindo a norma legal. O Poder Público, como garan dor dos direitos dos adolescentes apreendidos, deve repelir qualquer a tude que vise a expor a imagem e iden dade destes, e deve pautar seus esforços e ações no sen do de priorizar a proteção integral a que fazem jus. Destarte, o ECA cons tui paradigma de enfrentamento proporcional e garan sta das questões que envolvem a infância e juventude, e, como tal, deve ser o instrumento legal u lizado por aqueles que são incumbidos pela ordem cons tucional de assegurar, com absoluta prioridade, os direitos das crianças e dos adolescentes. Dessa forma, conclui-se que as ações de recolhimento de adolescentes realizadas ao arrepio do ECA com a aplicação subsidiária do parágrafo único do art. 313 do CPP, e a implementação do famigerado Protocolo do Serviço Especializado em Abordagem Social, em detrimento dos interesses superiores dos adolescentes, são incabíveis, inconcebíveis e flagrantemente ilegais, uma vez que afrontam a doutrina da proteção integral e contrariam os princípios de interpretação insculpidos no art. 6º da Lei 8.069/90 e no art. 227 da Cons tuição Federal. R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 271-277, jul.-set. 2011 277