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Apresentação/Presentation Desde a publicação da tese de doutorado de Lorenza Mondada, em 1994, intitulada Verbalisation de l espace et fabrication du savoir: Approche linguistique de la construction des objets-de-discours, a questão da referenciação tornou-se central para o campo de estudos do texto e do discurso no Brasil e no exterior em função de uma virada interacional-discursiva postulada pela autora para a compreensão do fenômeno. Para traduzir este momento, as palavras de Margarida Salomão, em seu texto Razão, realismo e verdade: o que nos ensina o estudo sociocognitivo da referência: A dimensão cujo resgate reivindicamos, e que não constitui nenhuma apolínea forma de vida, é a do trabalho ecológico do sujeito cognitivo, sujeito discursivo: tal trabalho caracteriza-se como ecológico por orientar sua ação numa específica moldura (física, mental e social) e por movimentar contínuas semioses para a construção do sentido localmente validado. 1 Ao longo deste tempo (e já se vão quase 20 anos!), os pesquisadores brasileiros, principalmente aqueles ligados aos estudos do texto e do discurso de linhagem interacionista e sociocognitivista, desenvolveram muitos trabalhos sobre a questão da referenciação que são retomados e discutidos neste número. Essa trajetória instigante e plena de bons resultados é homenageada neste volume temático, que possibilita ao leitor o acesso a um conjunto mais recente de reflexões teóricas e de análises de atividades e de processos referenciais constitutivos das práticas de linguagem. Os trabalhos aqui apresentados compartilham fortemente pressupostos teóricos de base sociocognitiva, mesmo considerando diferentes quadros teóricos. Todas as análises desenvolvidas perseguem o objetivo de revelar como se dá o trabalho do sujeito cognitivo-discursivo para a construção referencial. 1 SALOMÃO, M. M. M. Razão, realismo e verdade: o que nos ensina o estudo sociocognitivo da referência. In: KOCH, Ingedore G. V.; MORATO Edwiges; BENTES, Anna Christina (orgs.) Referenciação e discurso. São Paulo: Contexto, 2005. p. 153.

650 Em relação a aprofundamentos teóricos postulados na direção de uma ênfase em perspectivas sociocognitivas de explicação das atividades e processos referenciais, chamamos a atenção, primeiramente, para as contribuições do artigo de Cavalcante e Santos, intitulado Referenciação e marcas de conhecimento partilhado. As autoras partem de dois pressupostos: primeiro, de que a introdução e manutenção de referentes muitas vezes não dependem da explicitação de expressões referenciais e, segundo, de que a reconstrução de referentes não homologados na superfície do texto, embora guiados por pistas textuais, recorrem a mecanismos inferenciais bastante complexos, destacando-se aqueles fundados em conhecimentos prévios de variados tipos. Com base nestes pressupostos, Cavalcante e Santos discutem as relações de mútua dependência entre inferenciação, conhecimentos partilhados e os domínios discursivos onde se inserem os gêneros relatos de futebol, contos literários e humor, objeto de análise no artigo. Sobre os relatos de futebol, as autoras afirmam que a reconstrução dos objetos de discurso depende de uma atividade inferencial fundada em conhecimentos linguísticos, enciclopédicos, contextuais e superestruturais, bem como da orientação argumentativa neles incorporada. Os contos literários exigem processos inferenciais assemelhados aos relatos de futebol, mas acrescidos da exigência de os leitores se projetarem e se engajaram no espaço ficcional, firmando um pacto com o narrador. No caso do humor, os processos sociocognitivos são bastante semelhantes aos dois casos anteriores, mas apresentam mais explicitamente alusões interdiscursivas, exigindo dos leitores o acionamento de conhecimento ligado a valores e crenças. Considerando um outro domínio empírico, o artigo Referenciação e hiperestrutura em textos de divulgação científica para crianças, de Maria Eduarda Giering, faz um estudo dos processos de construção de sentidos e construção de objetos de discurso em reportagens de divulgação científica endereçadas ao público infantil, publicadas na Revista Ciência Hoje das Crianças. Os textos analisados são considerados hiperestruturas pelo fato de resultarem de um agrupamento de elementos verbais e visuais, a um só tempo fragmentados e reunidos, o que é, inclusive, corroborado pela existência de anáforas ancoradas em elementos visuais. Apoiando-se na noção de contrato de comunicação da midiatização da ciência, Eduarda Giering observa quão relevantes se mostram, no corpus, as estratégias discursivas de fazer-saber e fazer-sentir, responsáveis

651 tanto pela assimetria das relações entre enunciador e leitores como pelo caráter didático das anáforas. A autora mostra que o divulgador da ciência apoia-se nas memórias vinculadas ao universo infantil e as reorganiza no fio do texto na expectativa de que a criança nelas se ancore para reconstruir, prazerosamente e com certa facilidade, os objetos de discurso sugeridos no texto de divulgação. O artigo Processos implícitos, contextuais e multimodais na construção referencial em conversações entre afásicos e não afásicos: relato de pesquisa, produzido a sete mãos 2, de autoria de Morato, Bentes et al., dá continuidade ao aprofundamento da discussão sobre a natureza sociocognitiva da construção referencial. Os autores postulam que a construção, a continuidade e a progressão referencial não dependem apenas da introdução, retomada ou substituição linguística de referentes. Morato, Bentes et al., ao analisarem o corpus definido para a pesquisa, constituído de excertos conversacionais entre sujeitos afásicos e não afásicos, mostram que processos implícitos e multimodais atuam na referenciação de forma multifuncional i) na estruturação e gestão do tópico discursivo, ii) na articulação de aspectos macro e micro do contexto, iii) na dinâmica textual-interativa da construção referencial, particularmente na introdução e elaboração de referentes, nas atividades inferenciais que lidam com informações novas de forma até mesmo a reformular objetos anteriormente mencionados ou aludidos, bem como a propor outros, iv) nas operações de ordem meta (metalinguísticas, metaformulativas, metadiscursivas, etc.) implicadas na identificação do referente e na orientação argumentativa da referenciação. Neste sentido, a pesquisa reforça a tese de que a construção de um referente implica a consideração de vários e simultâneos processos sociocognitivos, tais como a inferenciação, o contexto social e local, a dinâmica interacional, o reconhecimento de intenções, a dimensão multimodal da interação e do sentido textual. Reforçam ainda a consideração de que a construção, a partilha e a identificação dos referentes ou objetos de discurso não são passíveis de serem analisadas com base na produção isolada do afásico ou na de seus interlocutores; é essencial a consideração das instâncias intersubjetivas da referenciação. 2 Embora a revista não publique, por princípio, artigos com mais de cinco autores, nesta edição especial abriu-se exceção para o presente caso, tendo em vista a justificativa apresentada pelos organizadores (Nota dos editores).

652 O artigo Estratégias de referenciação em textos multimodais: uma aplicação em tiras cômicas, de Paulo Ramos, se dedica a analisar a referenciação e, especialmente, a construção de objetos de discurso em tiras cômicas construídas com recursos multimodais (visuais e verbovisuais). O autor parte do pressuposto de que o referencial teórico da Linguística de Texto adequa-se teoricamente e metodologicamente para a análise de textos de natureza visual e verbovisual, dado que o conceito de texto gestado nesta corrente teórica é suficientemente englobante e potencialmente multimodal. Baseado em suas publicações anteriores, o autor enfatiza duas características das tiras que as tornam objeto relevante para o estudo da referenciação: a presença de desfechos inesperados e a expectativa de que o leitor, com base em seu conhecimento de mundo, infira o que ocorre com os objetos de discurso entre um quadrinho e outro. A investigação revelou que grande parte do efeito de humor presente nas tiras decorre de processos de construção e reconstrução de objetos de discurso, notadamente no quadrinho final de cada tira. No caso de tiras com linguagem verbovisual, Paulo Ramos mostra que as duas modalidades (verbal e visual) trabalham cooperativamente na construção e reconstrução dos objetos de discurso. Na direção de uma cuidadosa observação das relações de mútuo condicionamento entre os processos de construção referencial e a produção de gêneros discursivos, o artigo de Alves Filho e Alexandre, intitulado A construção de objetos de discurso nos perfis fakes do Twitter, toma como pressupostos as teses de que a referenciação é um processo discursivo levado a cabo pelos interlocutores durante os processos interacionais e de que gêneros de discurso particulares oferecem alguns condicionamentos para os processos referenciais. Além disso, os autores apoiam-se na concepção sociorretórica que defende que os gêneros são formas de ação social tipificadas e associadas a situações também recorrentes e tipificadas. A análise da construção dos objetos de discurso nos perfis Fakes do Twitter permitiu a observação de duas tendências: a primeira diz respeito ao fato de o fake ser, ao mesmo tempo, construído pelos objetos de discurso presentes nas postagens e servir como ponto de vista para a construção destes objetos de discurso; a segunda aponta para o fato de que o processo de compreensão das postagens depende intensamente do conhecimento compartilhado sobre (i) o perfil real do parodiado, (ii) as características eleitas para construir o perfil fake e (iii) os

653 acontecimentos ligados à narrativa de bastidores envolvendo o fake. Alves Filho e Alexandre ressaltam ainda que tudo é feito buscando a produção de efeitos de humor e divertimento tanto em relação ao criador do Fake como em relação aos seus seguidores. Por fim, os autores mostram que restrições e possibilidades específicas do gênero perfil Fake, têm impactos sobre a referenciação nele construída, destacando-se a apresentação de objetos de discurso novos nas postagens como se fossem já dados e conhecidos dos seguidores e o reenquadramento de referentes vistos, feito, muitas vezes de forma surpreendente, pela ótica do parodiado. O artigo de Clemilton Pinheiro, intitulado Objeto de discurso e tópico discursivo: sistematizando relações, traz à tona a necessária discussão sobre as relações entre dois processos de natureza textual-discursiva de fundamental importância para o entendimento da produção e compreensão dos textos e dos discursos: referenciação e progressão tópica. Para tanto, o autor retoma as principais e mais atuais discussões em torno das duas noções, na perspectiva de uma estabilização teórica mínima necessária. Em seguida, o autor faz um breve relato de alguns estudos brasileiros que realizam tentativas de explicação da relação entre elas. Por fim, analisando alguns exemplos, Clemilton Pinheiro estabelece uma sistematização, tomando como ponto de partida o princípio de que um objeto de discurso é identificado, reconhecido e definido como tal pelos próprios participantes de uma interação verbal, e assim pode ser tratado como tópico, isto é, objeto considerado e manifestado como o assunto sobre o qual o texto/discurso se reporta. Em suma, os diferentes processos referenciais anafóricos reúnem as expressões referenciais de um segmento do texto em um conjunto específico de objetos de discurso que instauram o tópico desse segmento em um dado ponto do texto. Os mesmos processos reúnem todos os conjuntos específicos de objeto de discurso em um único tópico central, que, por fim, garante o sentido global e a coerência macro do texto. Um dos principais achados do autor é o de que embora objeto de discurso e tópico sejam duas noções teóricas diferentes, linguisticamente elas não se separam. Para o autor, não se pode pensar, portanto, em duas presenças distintas, já que que o tópico é definido pela relação de interdependência entre elementos textuais, firmada por mecanismos de referenciação. Ou seja, são as expressões referenciais que configuram o

654 tópico no texto/discurso. Além disso, Clemilton Pinheiro constatou que o movimento referencial dos objetos de discurso se associa à forma de distribuição dos tópicos na linearidade do texto, o que explica processos como sequenciação, expansão, mudança e retomada de tópico. Os dois últimos trabalhos do volume enfocam fenômenos referenciais específicos. O artigo Referenciação metadiscursiva no gênero carta pessoal no interior do romance: um estudo de caso, de Renato Cabral Rezende, tem por objetivo discutir a referenciação metadiscursiva presente no gênero carta pessoal de cunho memorialístico construído no interior uma obra de ficção, o romance Relato de um certo oriente, de Milton Hatoum. A proposta de análise toma a referenciação como uma ação conjunta elaborada pelo(s) sujeito(s) da produção textual de forma que, ao longo do processamento textual, os objetos do dizer não podem ser considerados como objetos do mundo, mas objetos de discurso. O trabalho compreende o metadiscurso como uma manifestação da reflexividade da linguagem, um discurso centrado no código, mas o código tomado em sentido amplo, remetendo tanto à estrutura da língua enquanto sistema, quanto à sua ativação em situação de comunicação. Renato Cabral Rezende conclui que a interação entre dois personagens (os irmãos missivistas) do Relato de um certo oriente se constitui sob diferentes maneiras de manifestação metadiscursiva que contribuem (ora por meio de referências às instâncias coprodutoras do texto, ora por meio de referências à prática epistolar em processo) para a construção do enredo da obra e para a consideração do texto do Relato... como uma escrita reflexiva. O artigo Reflexões sobre a recategorização referencial sem menção anafórica, de autoria de Valdinar Custódio Filho, aprofundando a visão sociocognitiva sobre o fenômeno da referenciação, propõe uma descrição da recategorização sem menção anafórica, uma estratégia de construção referencial ainda raramente investigada. Custódio Filho parte do reconhecimento de duas grandes tendências, complementares e não antagônicas, de tratamento da referenciação: a primeira, cuja preocupação primordial reside em explicar, ainda que por um viés sociocognitivo, o caráter funcional das expressões referenciais, as quais são tomadas como ponto de chegada das análises; e uma segunda, na qual ele se insere, mais radicalmente sociocognitivo-discursiva, a qual visa explicar como os referentes, construtos fundamentais para a

655 produção dos sentidos, são elaborados, levando-se em conta que tal construção é passível de ocorrer dentro de uma dinâmica muito mais ampla, que não se limita, exclusivamente, ao universo das expressões referenciais. O autor reconhece a recategorização sem menção anafórica como um processo relevante e recorrente na construção de sentido, caracterizado pela ausência de expressões referenciais indicando a recategorização e intensamente dependente de variados elementos e estratégias verbais e sociocognitivas para sua construção. Mostra-se muito significativa a descrição feita pelo autor de recategorizações as quais, embora não sejam explicitadas nos textos, são muito previsíveis e, o mais importante, intensamente necessárias para a reconstrução dos propósitos comunicativos dos enunciadores. Como foi possível perceber, a riqueza deste número temático reside na consideração de diferentes domínios empíricos (gêneros literários, jornalísticos, humorísticos, digitais, práticas conversacionais cotidianas, entrevistas sociolinguísticas) para o aprofundamento da reflexão sobre as atividades e processos referenciais, com uma grande ênfase na tentativa de compreender as relações de mútua constitutividade entre a ancoragem linguística do fenômeno e os processos cognitivodiscursivos em jogo no curso das práticas referenciais explícitas e implícitas de toda e qualquer produção discursiva. Anna Christina Bentes Francisco Alves Filho Organizadores