À PESQUISA INTRODUÇÃO



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Transcrição:

INTRODUÇÃO QUALITATIVA À PESQUISA E SUAS POSSIBILIDADES ARTIGOS *Arllda Schmidt Godoy Uma revisão histórica dos principais de pesquisa em Ciências Sociais. autores e obras que refletem esta metodologia A historical review of the main authors and their writings that are representative of this particular kind of methodological research in Social Sciences. PALAVRAS-CHAVE: Pesquisa qualitativa, pesquisa social, metodologia da pesquisa, história da pesquisa qualitativa, Ciências Sociais. KEYWOROS: Gualitative research, social research, research methodology, qualitative research history, Social Sciences., C? *Professora do Departamento de Educação da UNESP, Rio Claro. Revista de Administração de Empresas São Paulo, v. 35, n. 2, p. 57-63 Mar./Abr. 1995 57

l1~léartigos 58 A expressão" ciências sociais" costuma ser usada para indicar as diferentes áreas do conhecimento que se preocupam com os fenômenos sociais, econômicos, políticos, psicológicos, culturais, educacionais, ou seja, aqueles que englobam relações de caráter humano e social. Pois bem, a pesquisa nas ciências sociais tem sido fortemente marcada, ao longo dos anos, por estudos que valorizam a adoção de métodos quantitativos na descrição e explicação dos fenômenos de seu interesse. Hoje, no entanto, é possível identificar, com clareza, uma outra forma de abordagem que, aos poucos, veio se instalando e se afirmando como uma frutífera possibilidade de investigação para essas áreas do conhecimento. Estamos aqui fazendo referência à pesquisa identificada como "qualitativa", a qual, apesar de ter sido regularmente utilizada pelos antropólogos e sociólogos, só nos últimos trinta anos começou a ganhar um espaço reconhecido em outras áreas, como a psicologia, a educação e a administração de empresas. Embora nas duas abordagens - quantitativa e qualitativa - a pesquisa se caracterize como um esforço cuidadoso para a descoberta de novas informações ou relações e para a verificação e ampliação do conhecimento existente, o caminho seguido nesta busca pode possuir contornos diferentes. Em linhas gerais, num estudo quantitativo o pesquisador conduz seu trabalho a partir de um plano estabelecido a priori, com hipóteses claramente especificadas e variáveis operacionalmente definidas. Preocupa-se com a medição objetiva e a quantificação dos resultados. Busca a precisão, evitando distorções na etapa de análise e interpretação dos dados, garantindo assim uma margem de segurança em relação às inferências obtidas. De maneira diversa, a pesquisa qualitativa não procura enumerar e/ ou medir os eventos estudados, nem emprega instrumental estatístico na análise dos dados. Parte de questões ou focos de interesses amplos, que vão se definindo à medida que o estudo se desenvolve. Envolve a obtenção de dados descritivos sobre pessoas, lugares e processos interativos pelo contato direto do pesquisador com a situação estudada, procurando compreender os fenômenos segundo a perspectiva dos sujeitos, ou seja, dos participantes da situação em estudo. As expressões" pesquisa de campo" e "pesquisa naturalística" podem ser vistas como sinônimos de "pesquisa qualitativa". Pesquisa de campo é um termo bastante comum entre antropólogos e sociólogos, que passaram a utilizá-lo na tentativa de diferenciar os estudos conduzidos em "campo", ou seja, no ambiente natural dos sujeitos, daqueles desenvolvidos em situações de laboratório ou ambientes controlados pelo investigador. Na designação "naturalística" também está implícita a idéia de que os sujeitos são observados em seu hábitat, de forma não-intervencionista. Além disso, o próprio nome indica que tais observações são relatadas em linguagem não-técnica, por meio de palavras e conceitos familiares, que possibilitam a compreensão do fenômeno minimizando o papel de pressuposições admitidas a priori. Sob a denominação "pesquisa qualitativa" encontram-se variados tipos de investigação, apoiados em diferentes quadros de orientação teórica e metodológica, tais como o interacionismo simbólico, a etnometodologia, o materialismo dialético e a fenomenologia. Essa diversidade de enfoques muitas vezes confunde e dificulta a leitura de livros, obras de referência e artigos de pesquisa na área. Nota-se que o vocabulário específiconem sempre apresenta a uniformidade esperada pelo leitor, não sendo incomum encontrarmos uma mesma palavra com diferentes significados, dependendo do autor que a utiliza, do ano em que o texto foi escrito e do campo de estudo enfocado. A existência de diferentes matizes, no entanto, não descaracteriza o todo, preocupação essencial deste artigo, cujo objetivo é apresentar os traços essenciais da pesquisa qualitativa. Isso será feito em dois tópicos. No primeiro, vamos percorrer um pouco da sua história, apresentando os principais autores e obras que originaram e sedimentaram essa maneira de se investigar em ciências sociais. No segundo, examinaremos as características próprias dos estudos que se intitulam qualitativos. PESQUISA QUALITATIVA: ALGUMAS NOTAS HISTÓRICAS 1995, Revista de Administração de Empresas / EAESP / FGV, São Paulo, Brasil. Embora a abordagem qualitativa não seja central em vários campos de estudo dos fenômenos humanos e sociais, uma

INTRODUÇÃO À PESQUISA QUALITATIVA E SUAS POSSIBILIDADES rica tradição desse tipo de pesquisa tem se desenvolvido na sociologia e na antropologia. Aqui faremos um breve relato histórico, demonstrando como esta abordagem de investigação, aos poucos, foi se instalando nas ciências sociais. Os primórdios O que hoje denominamos estudos qualitativos começaram a aparecer no cenário da investigação social a partir da segunda metade do século XIX. O estudo sociológico de Frédéric Le Play (1806-1882) Les ouvriers européens, publicado em 1855, sobre as famílias das classes trabalhadoras da Europa, pode ser citado como uma das primeiras pesquisas a usar a observação direta da realidade. A partir dos dados coletados em inúmeras viagens que realizou pela Europa, Le Play desenvolveu uma série de monografias de famílias 1/ típicas" da classe trabalhadora, identificadas entre pessoas que exerciam determinadas ocupações. Do ponto de vista metodológico, ele inovou ao desenvolver um estudo comparativo dessas monografias. Na obra de Henry Mayhew London labour and the London poor, publicada em quatro volumes entre 1851e 1862,são utilizadas histórias de vida e entrevistas 1/ em profundidade" na coleta de informações sobre as condições de pobreza dos trabalhadores e desempregados de Londres. A primeira obra sobre os aspectos metodológicos do que hoje denominamos 1/ abordagem qualitativa" parece ter surgido com os Webbs. Sidney (1859-1947) e Beatrice (1858-1943)Webb contribuíram muito para o desenvolvimento da sociologia inglesa. Desenvolveram uma grande quantidade de estudos sociais e políticos e, constantemente, estavam envolvidos em atividades de caráter público. Descreveram sua técnica de investigação social numa obra denominada Methods of social investigation, publicada em 1932.A produção dos Webbs apoiava-se fundamentalmente na descrição e análise das instituições e não em uma teoria estabelecida a priori. Valorizavam as entrevistas, os documentos e as observações pessoais. Nos Estados Unidos, o estudo denominado Pittsburgh Survey, publicado em três volumes entre 1908-1909,pode ser considerado pioneiro em sua tentativa de aco- RAE v. 35 n. 2 Mar./Abr. 1995 plar dados qualitativos aos quantitativos na análise de problemas de cunho social. Nesse trabalho também encontramos a apresentação de descrições detalhadas, entrevistas, retratos e fotos da época. A utilização da abordagem qualitativa, nos Estados Unidos, também pode ser encontrada nos trabalhos realizados pelo Departamento de Sociologia da Universidade de Chicago durante o período de 1910a 1940. Um dos grandes trabalhos produzidos pela Escolade Chicago- The polish peasant in Europe and America -, desenvolvido por William I. Thomas e Florian Znaniecki, publicado em 1927, ocupava-se dos problemas sociais e instituições da época. Uma vez que as massas de imigrantes pareciam agravar os problemas de cunho social, a sociologia empírica voltou-se às questões relacionadas ao estudo dos imigrantes, dos negros e demais grupos étnicos que viviam no país. A ênfase sobre aspectos da vida urbana foi uma importante característica desse grupo. Um dos seus grandes expoentes, Robert E. Park (1864-1944), estimulava seus alunos para que desenvolvessem estudos intensivos de comunidades particulares, tentando percebê-las como um todo. Segundo entrevista de Howard Becker! para a revista Ciência Hoje, em novembro de 1990, não se pode falar em clareza metodológica naquela época, quando os pesquisadores de Chicago simplesmente inventavam, criavam métodos, coletando autobiografias, analisando cartas e outros documentos, e fazendo entrevistas. Posteriormente denominaram abordagem inter acionista à perspectiva adotada pelo grupo na interpretação dos resultados de suas investigações. Enfatizando a natureza social e interacional da realidade, reco- 1. A ESCOLA de Chicago na visão de Howard S. Becker, Ciência Hoje, v. 12, n. 68, 1991, p. 54-60. 59

i1~1eartigos 60 nheciam que todas as opiniões, públicas ou privadas, são um produto do meio. O papel do pesquisador era o de captar a perspectiva daqueles por ele entrevistados. Na antropologia, os estudos de Franz Boas (1858-1942)e Bronislaw Malinowski (1884-1942)constituem exemplos de trabalhos de campo realizados em uma perspectiva qualitativa. Boas teve muita influência na estruturação da antropologia na América do Norte. Desenvolveu estudos de caráter essencialmente descritivo em função do seu ponto de vista acerca dos limites da generalização nas ciências sociais. Acreditava que cada cultura estudada deveria ser abordada indutivamente, a partir do ponto de vista dos seus membros. Apesar de estar entre os primeiros antropólogos a permanecer" em campo" durante a fase de coleta de dados, essa permanência não era muito prolongada. Utilizava com mais intensidade dados documentais obtidos por meio de informantes do que observações de "primeira mão". Já Malinowski achava fundamental a permanência do pesquisador junto às populações nativas durante longos períodos de tempo. Sua primeira expedição de campo à Nova Guiné, realizada de 1914a 1918, acabou por produzir um trabalho inovador do ponto de vista metodológico à medida que se tratava de um estudo intensivo de alguém que havia vivido em meio a um povo durante mais de dois anos, falando a língua nativa e agindo como um observador participante. Suas primeiras monografias, "Argonauta of the Western Pacific" (1922), "Sexual life of savages" (1929), "Coral gardens and their magic" (1935), retratam de maneira precisa as técnicas de campo por ele utilizadas. É importante salientar que, enquanto a abordagem qualitativa foi amplamente aceita pelos antropólogos, continuou, durante algum tempo, ignorada por muitos sociólogos devido à forte influência dos primeiros trabalhos de Durkheim, que utilizavam métodos estatísticos na organização e análise de dados. O estudo Le suicide. Étude sociologique, de 1897,representativo dessa fase, tem sido considerado um modelo da pesquisa social a ser seguido, dada a utilização da análise multivariada, que, supostamente, permite aprofundar o tratamento dos dados, garantindo generalizações seguras. Em trabalhos posteriores, no entanto, Durkheim passa a utilizar um novo enfoque metodológico, representado pela adoção da abordagem etnográfica. A monografia De quelques formes primitives de classification, publicada em 1901-1902e elaborada em parceria com Marcel Mauss representa essa nova fase metodológica que culminou com a publicação, em 1912, de Les formes élémentaires de la vie religieuse. Le systeme totémique en Australie. De 1930 a 1960 O período compreendido entre os anos 30 e 60 foi marcado por um declínio na produção de trabalhos de caráter qualitativo. Mas, do ponto de vista metodológico e conceitual, a Escola de Chicago trouxe importantes contribuições. Foi neste período, no ano de 1937,que Herbert Blumer cunhou o termo "interacionismo simbólico" para essa escola do pensamento sociológico, marcada por algumas características essenciais. Ao conceber a sociedade como um processo, o "interacionismo simbólico" entende que indivíduo e sociedade mantêm constante e estreita inter-relação e que o aspecto subjetivo do comportamento humano é necessário na formação e na manutenção dinâmica do self social e do grupo social. Atribui importância fundamental ao sentido que as coisas (como os objetos físicos, seres humanos, instituições, idéias que são valorizadas, situações vivenciadas) têm para os indivíduos, ressaltando que esse sentido surge do preces- RAE v. 35 n. 2 Mar./Abr. 1995

INTRODUÇÃO À PESQUISA QUALITATIVA E SUAS POSSIBILIDADES so de interação entre as pessoas. Tais sentidos (significados) são manipulados e modificados por meio de um processo interpretativo que as pessoas usam ao se depararem com as coisas do mundo no seu dia-a-dia, na vida cotidiana. Assim, a realidade empírica existe somente na experiência humana e aparece sob a forma como os seres humanos vêem a realidade. Do ponto de vista metodológico, a melhor maneira para se captar a realidade é aquela que possibilita ao pesquisador" colocar-se no papel do outro", vendo o mundo pela visão dos pesquisados. Por isso Blumer propõe a investigação naturalista do mundo, ou seja, a investigação do mundo empírico, tal qual ele se apresenta. Como procedimentos, sugere a observação direta, o trabalho de campo, a observação participante, a entrevista, o uso da história de vida, das cartas, diários e documentos públicos. Ainda dentro da tradição do interacionismo simbólico, vemos o surgimento, na década de 40, da etnometodologia de Harold Garfinkel, da Universidade da Califórnia, em Los Angeles (UCLA). A etnometodologia estuda e analisa as atividades da vida cotidiana dos membros de uma comunidade ou organização com o objetivo de detectar os "métodos" que as pessoas usam no seu convívio diário em sociedade a fim de construir a realidade social. Procura ainda descobrir a natureza da realidade que elas constroem. Sob essa perspectiva, a estrutura social é continuamente construída pelos membros da sociedade, que nunca cessam de tentar interpretar o mundo e explicar o que nele acontece. Muitos estudos desenvolvidos nessa linha incluem a análise da conversação entre sujeitos em processos de interação. O exame da interação não-verbal também pode ocorrer. A técnica de coleta de dados mais utilizada é a observação. Dos trabalhos qualitativos realizados pela Escola de Chicago é importante destacarmos a pesquisa de Howard S. Becker sobre o comportamento dos estudantes de medicina da Universidade de Kansas. Desenvolvido durante a década de 50, o estudo exigiu que Becker convivesse três anos com esses alunos, indo às aulas com eles, freqüentando seus espaços preferidos e observando-os em suas atividades. Essa pesquisa resultou no seu primeiro livro, RAE v.35 n.2 Mar./Abr. 1995 Boys in white: student culture in medical culture, publicado em 1961. A Universidade de Chicago também contou com a colaboração de antropólogos sociais que começaram a utilizar suas técnicas de trabalho de campo na análise de questões próprias da cultura americana da época. Os seis volumes da pesquisa intitulada Yankee city series, sobre Massachusetts, desenvolvida sob a direção de Lloyd Warner e publicada em 1941, representa um excelente exemplo desse esforço. Do ponto de vista metodológico, é possível observar ainda a aceitação da entrevista como uma estratégia fundamental da investigação qualitativa. Na década de 50, vários autores começaram a escrever sobre ela: suas forças e fraquezas, suas várias formas e possibilidades de utilização nos trabalhos de campo. No ano de 1956, o American [ournal of Sociology dedicou um dos seus números à essa técnica de coleta de dados. A partir dos anos 60 Nos anos 60, podemos sentir a incorporação da pesquisa qualitativa em outras áreas além da sociologia e antropologia. O aumento do interesse pela abordagem qualitativa também pode ser observado com o aparecimento de publicações (livros, artigos e revistas) voltadas para a teoria e a metodologia que dão sustentação a esse tipo de estudo. Na administração de empresas o interesse pela abordagem qualitativa começa a se delinear a partir dos anos 70, culminando com a publicação, em 1979, de um número da revista Administrative Science Quarterly, totalmente dedicado ao tema 61

ij~léartigos -, C7 2. LAWRENCE,P. R., LORSCH, J. W. Differentiation and integration in complex organizations. Administrative Science Quarterly, v. 12, n. 1, 1967, p. 1-47. 3. HIRSCH, P.M. Organizational effectiveness and the institutional environment. Administrative Science Quarterly, v. 20, n. 3, 1975, p. 327-44. 4. SEBRING, R. H. lhe fivemillion dollar misunderstanding: a perspective on state government-university interorganizational conflicts. Administrative Science Quarterly, v. 22, n.4, 1977, p. 505-23. 5. BOGDAN, R. C., BIKLEN, S. K. Qualitative research for education: an introduction for to theory and methods. Boston: Allyn and Bacon, 1982. 62 "qualitatíve methodology". No estudo das organizações, o enfoque qualitativo foi se mostrando útil e apropriado, produzindo interessantes trabalhos, como os de Lawrence e Lorsch-, Hirsch-, Sebring', todos publicados na Administrative Science Quarterly. Ainda nesta década é possível detectar que, embora os debates metodológicos entre "pesquisa quantitativa versus qualitativa" continuem, a tensão entre os representantes desses dois grupos diminui e um diálogo começa a acontecer. Alguns pesquisadores proeminentes nos círculos quantitativos, como D. Campbell e L. Cronbach, começam a valorizar essa possibilidade de se fazer pesquisa em ciências sociais e advogar seu uso. Esses dados históricos mostram que o desenvolvimento da perspectiva qualitativa gerou uma grande diversidade de métodos de trabalho, estilos de análise e a apresentação de resultados e diferentes considerações quanto aos sujeitos. Muitos pesquisadores de orientação qualitativa fazem seu trabalho de campo através de observação e entrevista, empregando muito do seu tempo no local da pesquisa, em contato direto com os sujeitos. Registram suas notas, analisam seus dados e escrevem os resultados obtidos, incluindo descrições de trechos de conversas e diálogos. Outros advogam uma abordagem mais empírica, apoiada em filmagens destinadas a captar atos e gestos das pessoas. Existem ainda aqueles que se utilizam de vários tipos de documentos escritos, de natureza pessoal e / ou oficial. Fotos coletadas ou tiradas pelo pesquisador também podem compor o conjunto dos dados. Enquanto alguns investigadores deixam claros e compartilham os objetivos da pesquisa com os sujeitos, outros consideram que não devem expô-los ao grupo. No que se refere à postura do pesquisador junto aos informantes, encontramos aqueles que defendem uma atitude de empatia e identificação, enquanto outros posicionam-se de uma forma mais neutra, evitando o envolvimento com os sujeitos. Apesar dessas diferenças, esses estudos apresentam características básicas que, em maior ou menor grau, devem estar presentes nas pesquisas que se intitulam "qualitativas". CARACTERíSTICAS BÁSICAS DA PESQUISA QUALITATIVA Embora haja muita diversidade entre os trabalhos denominados qualitativos, alguns aspectos essenciais identificam os estudos desse tipo". A pesquisa qualitativa tem o ambiente natural como fonte direta de dados e o pesquisador como instrumento fundamental Os estudos denominados qualitativos têm como preocupação fundamental o estudo e a análise do mundo empírico em seu ambiente natural. Nessa abordagem valoriza-se o contato direto e prolongado do pesquisador com o ambiente e a situação que está sendo estudada. No trabalho intensivo de campo, os dados são coleta dos utilizando-se equipamentos como videoteipes e gravadores ou, simplesmente, fazendo-se anotações num bloco de papel. Para esses pesquisadores um fenômeno pode ser mais bem observado e compreendido no contexto em que ocorre e do qual é parte. Aqui o pesquisador deve aprender a usar sua própria pessoa como o instrumento mais confiável de observação, seleção, análise e interpretação dos dados coleta dos. A pesquisa qualitativa é descritiva A palavra escrita ocupa lugar de destaque nessa abordagem, desempenhando um papel fundamental tanto no processo de obtenção dos dados quanto na disseminação dos resultados. Rejeitando a. expressão quantitativa, numérica, os dados coleta dos aparecem sob a forma de transcrições de entrevistas, anotações de campo, fotografias, videoteipes, desenhos e vários tipos de documentos. Visando à compreensão ampla do fenômeno que está sendo estudado, considera que todos os dados da realidade são importantes e devem ser examinados. O ambiente e as pessoas nele inseridas devem ser olhados holisticamente: não são reduzidos a variáveis, mas observados como um todo. RAE v. 35 n. 2 Mar./Abr. 1995

INTRODUÇÃO À PESQUISA QUALITATIVA E SUAS POSSIBILIDADES Os pesquisadores qualitativos estão preocupados com o processo e não simplesmente com os resultados ou produto. O interesse desses investigadores está em verificar como determinado fenômeno se manifesta nas atividades, procedimentos e interações diárias. Não é possível compreender o comportamento humano sem a compreensão do quadro referencial (estrutura) dentro do qual os indivíduos interpretam seus pensamentos, sentimentos e ações. O significado que as pessoas dão às coisas e à sua vida são a preocupação essencial do investigador Os pesquisadores qualitativos tentam compreender os fenômenos que estão sendo estudados a partir da perspectiva dos participantes. Considerando todos os pontos de vista como importantes, este tipo de pesquisa /I ilumina", esclarece o dinamismo interno das situações, freqüentemente invisível para observadores externos. Deve-se assegurar, no entanto, a precisão com que o investigador captou o ponto de vista dos participantes, testando-o junto aos próprios informantes ou confrontando sua percepção com a de outros pesquisadores. Pesquisadores utilizam o enfoque indutivo na análise de seus dados Como os pesquisadores qualitativos não partem de hipóteses estabelecidas a priori, não se preocupam em buscar dados ou evidências que corroborem ou neguem tais suposições. Partem de questões ou focos de interesse amplos, que vão se tornando mais diretos e específicos no transcorrer da investigação. As abstrações são construídas a partir dos dados, num processo de baixo para cima. Quando um pesquisador de orientação qualitativa planeja desenvolver algum tipo de teoria sobre o que está estudando, constrói o quadro teórico aos poucos, à medida que coleta os dados e os examina. CONCLUSÕES Procuramos, através deste artigo, mostrar que as ciências sociais podem recorrer, fundamentalmente, a duas possibilidades - pesquisa quantitativa e pesquisa qualitativa - no estudo dos fenômenos que lhe interessam. Aqui, exploramos a natureza dos estudos qualitativos, que, apesar de historicamente sempre estarem presentes na investigação de natureza social, foram por algum tempo minimizados em sua importância e utilidade, devido a uma forte influência das metodologias quantitativas, inspiradas nos pressupostos positivistas. Hoje em dia, a abordagem qualitativa, por meio de seus diferentes subtipos de pesquisa (alguns analisados em artigo que se seguirá), tem lugar assegurado como uma forma viável e promissora de trabalhar em ciências sociais. Em função da natureza do problema que se quer estudar e das questões e objetivos que orientam a investigação, a opção pelo enfoque qualitativo muitas vezes se torna a mais apropriada. Quando estamos lidando com problemas pouco conhecidos e a pesquisa é de cunho exploratório, este tipo de investigação parece ser o mais adequado. Quando o estudo é de caráter descritivo e o que se busca é o entendimento do fenômeno como um todo, na sua complexidade, é possível que uma análise qualitativa seja a mais indicada. Ainda quando a nossa preocupação for a compreensão da teia de relações sociais e culturais que se estabelecem no interior das organizações, o trabalho qualitativo pode oferecer interessantes e relevantes dados. Nesse sentido, a opção pela metodologia qualitativa se faz após a definição do problema e do estabelecimento dos objetivos da pesquisa que se quer realizar. O 80950207 Artigo recebido pela Redação da RAE em junho/1994, avaliado em agosto/1994 e janeiro/1995, aprovado para publicação em janeiro/1995. 63