Gênero, cibercultura e novas tecnologias de comunicação digital: reforçando ou desconstruindo preconceitos? ST. 36 Maria Aparecida Padilha Ribeiro i Vera Helena Ferraz de Siqueira ii Nilma Gonçalves Lacerda iii UFRJ Palavras-chave: Gênero, blogs, formação da identidade Gênero e tecnologia: os Blogs como espaços de construção das identidades iv Os avanços da tecnologia acarretam tanto mudanças econômicas quanto culturais, proporcionando outras formas de apropriação do conhecimento e novas possibilidades de relacionamento através do meio eletrônico. Mensagens são mediadas e disponibilizadas nos mais diversos contextos por indivíduos e grupos que passam a viver práticas globalizadas. Nesse sentido, o meio eletrônico torna-se um espaço central não só para comunicação e difusão da informação, mas também para a construção das identidades sociais. A experiência vivida no presencial é fundamental, porém há uma crescente substituição dessas pelas experiências mediadas pelos discursos da mídia (Thompson, 1998), o que provoca grande influência na construção da vida social. As mudanças provocadas pela contemporaneidade ocorrem no interior dos discursos, que são práticas sociais construídas na interação realizada nos diversos contextos sociais, históricos e culturais. Ao interagirmos com o outro nesses contextos construímos o outro e a nós mesmos via discurso. Os sujeitos agem no mundo através da linguagem, a qual sempre carrega marcas dos valores, crenças e interesses pessoais. Relações de poder estão envolvidas nas interações. Existem tentativas de cooptar o receptor e de agir sobre ele ou sobre o mundo por seu intermédio (Pinto, p.63). Em uma interação, tanto o sujeito que fala se modifica, como o receptor. Isso significa que as identidades se modificam situacionalmente e que a relação social pode mudar a cada interação realizada. É nesse sentido que Hall (2005) coloca as identidades como fragmentadas, múltiplas e contraditórias. Ou seja, discurso e identidade são ações conjuntas, pois construímos uns aos outros em um processo interativo, contínuo e dinâmico. É através dos discursos presentes nas interações que ocorre a instauração dos saberes. A ressignificação dos saberes, a partir das experiências e influências culturais, contribui para a construção das identidades. Segundo Fairclough (1992), o discurso é um modo de ação, uma forma pela qual as pessoas podem agir sobre o mundo e espacialmente umas sobre as outras, 1
tão bem quanto um modo de representação (p. 63). Desta forma, o discurso é de natureza social na medida em que usamos a linguagem em relação a alguém e a nós mesmos. Os discursos relacionados à sexualidade estão em constante circulação na sociedade: matérias jornalísticas, livros juvenis, filmes, outdoors, campanhas de prevenção, etc. Conforme evidenciado em trabalhos como o de David Huffaker v (2004), os jovens mostram sua intimidade nos espaços virtuais, especificamente, nos blogs, onde expõem seus dilemas e desejos, trazem questões referentes ao corpo e à sexualidade. Essas questões aparecem com freqüência porque esse espaço permite a liberdade de expressão que não é oferecida por outras instituições. Os temas relacionados à sexualidade ainda hoje são tabus para a família e para a escola. O blog vi é uma página web onde são publicados textos curtos em ordem cronológica decrescente e, em alguns casos, com links para documentos, fotos, outros sites, etc. Os primeiros blogs nada tinham a ver com diários pessoais, mas com diários de bordo. As pessoas os utilizavam para registrar por onde navegaram. A partir de sua publicação na Internet, esse uso foi se transformando em espaço da escrita de si, de discussão, divulgação, entre outros fins. Transformaram-se em espaços de expressão coletiva. É comum encontrarmos blogs de jornalistas, músicos, intelectuais que querem não apenas discutir suas produções e criações, mas também escrever livremente sobre os problemas sociais e políticos presentes na sociedade.,construídos sobre a tecnologia da palavra escrita, nos blogs, o autor ou a autora vai construindo sua identidade de autor/a e leitor/a, através da apropriação das palavras e dos textos (verbais e não-verbais), pois: O texto implica significações que cada leitor constrói a partir de seus próprios códigos de leitura, quando ele recebe ou se apropria desse texto de forma determinada. (Chartier, 1999, p. 52). O papel do autor, de acordo com Foucault (1992), remete a uma das possíveis figurações do EU. Cada indivíduo torna-se autor da própria fala, o que delineia traços da identidade. Os blogs são territórios livres, com acessos permitidos sem qualquer identificação prévia, o que amplia as formas de expressão. Ou seja, um dos lugares privilegiados para o exercício da mobilidade das identidades, descartando definitivamente noções essencialistas do sujeito anteriores ao século XX. Um jovem que quer falar sobre os seus anseios em relação ao sexo, ou discutir sua identidade homossexual, pode criar uma nova identidade para não se expor, o que leva a vida privada a tornar-se pública, de certa maneira. O conceito de identidade surge no Iluminismo e vai conquistando espaço na medida em que as discussões sobre a individualidade ganham importância. Nessa época, pensava-se no sujeito centrado, a essência do eu, uma concepção voltada ao indivíduo, que é o reflexo da compartimentalização do conhecimento. Depois, veio a idéia de um sujeito que se estrutura a 2
partir de relações com outras pessoas, o sujeito sociológico. Uma concepção interativa da identidade do EU. Por último, a concepção de sujeito pós-moderno, na qual não mais se concebe a identidade fixa ou permanente. O sujeito, ao longo da vida, através das múltiplas interações sociais que mantém, vai transformando sua identidade. Segundo Hall (2005), as identidades modernas estão sendo descentradas, isto é, deslocadas ou fragmentadas (p. 14). Contribui para a flexibilização das identidades o fato das sociedades modernas sofrerem mudanças constantes, rápidas e permanentes, e a variedade de interpelações feitas ao sujeito. Os fenômenos da juventude não são universais, mas circunscritos histórica e culturalmente. Precisamos contemplar, no conceito de juventude, a pluralidade de experiências e vivências juntamente com os recortes de etnia, gênero, classe social, entre outros. Como sinaliza Carrano (apud Igreja, 2004): Os jovens na sociedade não constituem uma classe social, ou grupo homogêneo como muitas análises permitem intuir. Os jovens compõem agregados sociais com características continuamente flutuantes. Nesse sentido, é importante pensar os jovens a partir de uma dada cultura, tanto local como global, pois, à medida que é sujeito, sofre interpelações das mídias, em um mundo dominado pelas relações mercantis. A preocupação com o corpo, com as sutilezas do sexo, com a aparência, faz dos jovens um dos principais alvos do mercado e da mídia. Na maioria das vezes, eles querem ser olhados, admirados não por sua inteligência ou sagacidade, mas pela aparência externa. Segundo Sarlo (2004), o mercado unifica, seleciona e, além disso, produz a ilusão da diferença através dos sentidos extramercantis (...), ou seja, não seguir o padrão do mercado é ser diferente, é estar excluído. A preservação da beleza, do vigor e da juventude, está diretamente ligada às questões de gênero e ganha sentido no espaço dos blogs quando os/as autores/as falam sobre seus problemas sexuais, suas angústias em relação a uma gravidez precoce ou às doenças sexualmente transmissíveis. Estudos vêm evidenciando que freqüentemente, embora de posse de informação sobre sexualidade e prevenção das DST/ Aids, os jovens mantêm relações sexuais sem proteção. Apesar de questões referentes à sexualidade fazerem parte do cotidiano dos jovens, evidenciando-se nas interações que mantêm nos diferentes espaços que freqüentam, os currículos escolares não contemplam de forma apropriada essas questões, seja por conta do preconceito ou por falta de profissionais preparados para lidarem com a complexidade que envolve o tratamento de tais questões. 3
Gênero e sexualidade O uso do termo gênero (Scott, 1990) surge num contexto de mudanças e crise de paradigmas, num contexto de mutações teóricas na qual é explícita a rejeição ao determinismo biológico no uso de termos como sexo ou diferença sexual. Não é o homem ou a mulher, mas os homens e as mulheres, diferentes uns em relação aos outros e entre eles(as) próprios(as), contudo, só compreensíveis em uma perspectiva relacional. As mulheres e os homens eram definidos em termos recíprocos, e os sexos eram compreendidos separadamente. As relações de gênero passam pela desconstrução dos termos utilizados para marcar a diferença sexual. O que é de significativa relevância na medida em que rompe não só com o determinismo biológico como, também, com a própria ordem cultural do ser homem ou ser mulher nas sociedades. É neste ponto que está uma das principais questões dos estudos de gênero a constatação de que as categorias de identidade foram social e culturalmente construídas. Os conceitos de gênero e de sexo serão abordados de forma concomitante, porque possuem a mesma dinâmica, estão sempre em construção, em constante movimento, são inacabados. O termo sexualidade é recente na vida cotidiana, em que a sexualidade deixa de ser um ato privado e passa a ser compreendida como uma prática social. O seu conceito está no conjunto de fantasias e idéias que cada um constrói sobre si e para si em função daquilo que lhe é prazeroso. Durante muito tempo, sexo estava ligado apenas ao propósito da reprodução. Porém, as mudanças socioculturais das últimas décadas proporcionaram um debate sobre as representações sobre o sexo e também em relação ao quadro reprodutivo das mulheres, aos aspectos vinculados às opções contraceptivas e conceptivas. A preocupação com a saúde reprodutiva dos jovens está diretamente ligada à construção da sexualidade, que deveria estar presente no contexto educativo, já que estão inseridos em um contexto social no qual o apelo ao sexo é corriqueiro. Muitas vezes, como acontece nos blogs, os jovens discutem com os/as amigos/as, e assim múltiplas aprendizagens vão ocorrendo. O contexto da pesquisa Os Estudos Culturais são o principal referencial teórico do presente estudo, pois nos ajuda a entender as rupturas, os descentramentos, as mudanças e as transformações pelas quais vem passando o sujeito contemporâneo (Giddens, 1998). Segundo Hall (2005), as identidades modernas estão sendo descentradas, isto é, deslocadas ou fragmentadas (p. 14). Elas são 4
construídas historicamente ao longo dos discursos, das práticas e das posições sociais e culturais, que podem ser antagônicas ou similares. A pesquisa em andamento, coerentemente com seu objeto, faz uso da Abordagem Qualitativa, pois trabalha com o universo dos significados, motivos, crenças, valores e atitudes que influenciam os discursos. É importante entender a dinâmica das relações sociais, que são fundamentadas nas vivências e experiências produzidas nos espaços dos blogs. A delimitação do campo de investigação deu-se a partir da visita e análise de diversos blogs. No início, as dificuldades para escolha foram enormes, pois o universo é vasto e são múltiplas as questões abordadas. Resolvemos, então, recorrer a um mecanismo de busca (http://www.tecnorati.com), a fim de encontrar os que realmente fariam sentido para a pesquisa. Os blogs escolhidos são de jovens vii de ambos os sexos, na faixa etária dos 18 aos 25 anos, de acordo com as referências do Programa de Saúde do Adolescente (PROSAD). Os seguintes critérios foram elaborados para a seleção dos blogs: ter entre 6 meses e 1 ano de existência e ainda estarem ativos; possuir características que prendam a atenção (como layout, recursos audiovisuais e interativos, etc); as mensagens devem ter cunho argumentativo; ter o público masculino como participante; possuir um número significativo de comentários postados nas mensagens; possuir uma freqüência periódica de mensagens postadas. De acordo com os critérios expostos, foram selecionamos 10 blogs para acompanhamento inicial, a fim de definirmos quais seriam estudados. Os mesmos são acessados diariamente para acompanhamento de acordo com os critérios apontados. Algumas análises dos textos postados nos blogs selecionados foram realizadas. Porém, acreditamos ter um universo ainda limitado, observando que outras análises e seleções serão realizadas. As mensagens analisadas possuem marcas da construção da identidade de gênero e de reflexões sobre sexualidade. Outros aspectos da prática discursiva estão presentes, como a utilização de imagens para ilustrar uma determinada situação, links para outros blogs de jovens. Pontuando Fairclough, todo texto tem simultaneamente três funções: textual (que é o próprio texto), ideacional (representação particular do mundo) e a função interpessoal (construção particular das identidades sociais e a relação social entre elas). Olhamos para todos esses aspectos textuais com o intuito de percebermos indícios da construção identitária de gênero e sexual presentes nas mensagens. Nossa análise, ainda em estágio inicial, está recaindo sobre os discursos em que esses jovens questionam o papel que desempenham enquanto homens e mulheres, os relacionamentos que mantém com o/a outro/a, o desempenho sexual, aspectos da atração física, a gravidez indesejada e o papel da maternidade. É perceptível como as jovens mulheres têm valores 5
distintos dos jovens masculinos e, por conta disso, utilizam os blogs de maneira diferenciada. A própria condição feminina, o lugar do feminino e suas relações com o masculino são também freqüentemente explicitadas. Outra questão refere-se à opção sexual, pois é em meio a esse contexto de profundas mudanças, que os homossexuais e outros grupos vão reivindicar o direito de serem sujeitos sociais. As conclusões até o momento encaminham para a importância da integração desses espaços virtuais ao debate pedagógico abrindo novas perspectivas para as discussões referentes à questão de gênero e sexual, bem como se requer a necessidade de ações educativas que contribuam efetivamente para o exercício consciente da sexualidade pelos/as jovens, sendo impossível ignorar que a revolução da textualidade digital constitui também uma mudança epistemológica que transforma as modalidades de construção e crédito dos discursos do saber (CHARTIER; 2002, p. 25). Referências: CHARTIER, Roger. A aventura do livro do leitor ao navegador. São Paulo: Editora UNESP, 1999., Roger. Os desafios da escrita. São Paulo: Editora UNESP, 2003. FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2001. FOUCAULT, Michel.O que é o autor? Lisboa: Passagens, 1992. GIDDENS, Anthony. As transformações da intimidade Sexualidade, Amor e Erotismo nas Sociedades Modernas. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1993. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. IGREJA, M. J. Vulneráveis? Resistentes? Quem entenderá estes nossos meninos? Questões de gênero nos programas educativos de ONGS do Rio de Janeiro. Dissertação de mestrado. Programa de Pós Graduação Tecnologia Educacional nas Ciências da Saúde, UFRJ. 2004. HUKAFFER, David Gender Similarities and differences in online identity and language use among teenage bloggers. Dissertação de mestrado. Georgetown University, 2004. LOURO, Guacira L. Gênero, sexualidade e educação. Uma perspectiva pós-estruturalista. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1997. MINAYO, Maria Cecília de Souza (ORG). Pesquisa Social: Teoria, método e criatividade. Petrópolis: Editora Vozes, 1994. RAMAL, Andrea C. Educação na cibercultura hipertextualidade, leitura, escrita e aprendizagem. São Paulo: Artmed, 2002. Revista INFO Exame Podcasts, blogs & Rsss. Edição 22, Editora Abril. SARLO, Beatriz. Cenas da vida pós-moderna intelectuais, arte e videocultura a Argentina. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2004. 6
SCHITTINE, Denise. BLOG: comunicação e escrita íntima na Internet. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. SCOTT, Joan W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, n. 16(2), p. 5-22, jul/dez. 1990. THOMPSON, J. B. A mídia e a modernidade. Petrópolis: Editora Vozes, 1998. VILLELA, Wilza Vieira; ARILHA, Margareth. Sexualidade, gênero e direitos sexuais e reprodutivos. IN: BERQUÓ, Elza (ORG). Sexo & Vida Panorama ds Saúde Reprodutiva no Brasil. Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, 2003. i Mestranda do Núcleo de Tecnologia Educacional das Ciências da Saúde (NUTES) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). cidinha1980@yahoo.com.br ii Orientadora do presente projeto. Professora do Laboratório de Linguagens e Mediações (LLM), NUTES, UFRJ. verahfs@yahoo.com.br iii Co-orientadora do presente projeto. Professora Colaboradora do LLM, NUTES, UFRJ. nilmalacerda@hotmail.com iv Parte do projeto de mestrado em andamento no Núcleo de Tecnologia Educacional das Ciências da Saúde (NUTES) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). v Huffaker, David. Gender Similarities and differences in online identity and language use among teenage bloggers. Georgetown University, Estados Unidos, 2004. vi A história dos blogs pode ser encontrada no presente link: http://www.rebeccablood.net/essays/weblog_history.html vii É importante colocar que os jovens que utilizam essas ferramentas estão inseridos em um contexto cultural e social diferenciado, pois possuem fácil acesso à tecnologia. A mesma faz parte de seu cotidiano e de suas práticas sociais. 7