OS PODERES DA SALIVA
HÁ INÚMERAS PROIBIÇÕES COM REFERÊNCIA AO DESEJO QUE, MUITAS vezes, temos de deitar fora as secreções normais de nossa própria boca. A higiene proíbe que se cuspa e todos nós, de maneira irrecorrível, andamos de sobreaviso contra os que desejam infringir tão elementar regra de higiene e, vamos dizer, de educação. No entanto, a saliva está ligada de tal maneira às práticas populares, principalmente na medicina de caráter empírico, que mal contemos o nosso desejo de, em algumas circunstâncias, dela fazer uso. Não sei se já repararam: não somente as crianças mas os próprios adultos quando sofrem pequena queimadura em um dos dedos levam logo aos lábios a mão buscando pronto alívio na saliva. Mal sabem os que assim procedem que neste gesto nada mais fazem do que procurar a assistência de uma terapêutica de ordem familiar. Não pensem os recalcitrantes que o ato de levar-se a mão ou o dedo à boca esteja baseado na crença do poder da saliva de refrescar pela umidade a queimadura, aliviando as dores. A saliva é procurada aí como remédio, meio capaz de proteger a área afetada, oferecendo ao acidentado a certeza de que ultimou a medicamentação aconselhada. Sabemos e aqui ficam as nossas desculpas que o cuspo não deveria ser assunto para um trabalho dessa natu- FOLCLORE DO NORDESTE 157
reza. Temos, com referência a ele um verdadeiro tabu, proibição imposta pelas conveniências sociais em contrapartida com aquelas inspiradas em nossa formação psicológica. A saliva não tem culpa de ter sido apontada à execração pública na lista das coisas que não devemos fazer diante da comunidade, principalmente se desejamos aliviar-nos num piso ou num assoalho novo e encerado. Má interpretada pelas convenções sociais, há sido, no entanto, aproveitada através dos tempos, baseada no princípio de que sendo o homem criado por Deus, tudo que dele sair será puro. Não concebe o homem do povo possa criar Deus, deliberadamente, o mal. Brewton Berry, autor de delicioso livro sobre superstições, assim se reporta ao assunto: Saliva é uma palavra horrível. Assim anuncia o arauto dos charutos e meticuloso em etiqueta. Mas o velho sábio sabe melhor. Saliva é uma substância muito importante. Não usou dela Jesus para abrir os olhos de um cego de nascença? E isso não foi o seu principal mérito. Três séculos antes de Cristo, Théocritus disse: Três vezes eu cuspo sobre meu peito para livrar-me de feitiços. O famoso Ferreirinha (Hilário Ferreira Filho), raizeiro dos mais conhecidos de Fortaleza, a respeito de quem tivemos oportunidade de escrever in Medicina Popular, declarou-nos certa vez que não cuspia. Longe dele a idéia de desperdiçar o cuspo. E ajuntava, quando a isso se referia: Não cuspo, porque o cuspo faz parte da química orgânica do organismo e ajuda a digestão. Antes do nosso vendedor de raízes e plantas medicinais indispensáveis a nossa fitoterapia, já havia médicos, em l958, ainda segundo o Sr. Brewton Berry, que doutrinavam. Diversas experiências provam o poder e o valor da saliva do homem em jejum, quando não come nem bebe antes da aplicação do cuspo, pode ele curar todas as impigens, coceiras, crostas, pústulas, e úlceras; se bichos venenosos, como esca- 158 EDUARDO CAMPOS
ravelhos, aranhas, vespas, etc., ferroaram qualquer parte do seu corpo, seus venenos causam inchação, dor e inflamação: basta esfregar o local com saliva, estando em jejum e todos esses maus efeitos desaparecerão. Nos processos de magia é que a saliva consegue uma participação de grande valia. A. Colbachini e C. Albisetti, descrevendo-nos como festejam os bororós o sucesso das caçadas em honra dos mortos, oferecendo-lhes os animais sacrificados, dão-nos a impressão de que todo o cerimonial é realizado à base do cuspo. Senão vejamos: Depois, grita, cospe ainda, com a saliva esfrega várias partes do corpo. Oferece aos macreboe o líquido que bebe em grande quantidade, solta muitos aó, ao, e passa o recipiente à mulher. Esta bebe, igualmente. Novamente cospe, novamente se esfrega... O cuspo age assim, como purificador, tanto para os índios como, ainda hoje, para nós que nos consideramos civilizados. Vezes sem conta, temos observado, o costume generalizado dos que bebem aguardente, cuspir, logo que tomam o último trago. Por que será que agem assim? Por acaso, numa terapia preventiva não estará aí evidenciado uma defesa contra o mal que por ventura possa causar a bebida ingerida? Todo bom bebedor é apreciável cuspidor, e não só concebe nas classes populares quem acabe de sorver sua cachacinha e não dê a clássica cusparada. No próprio decálogo dos amigos do copo, lemos no livro de José Calazans, Cachaça, Moça Branca não se omite o cuspo: 1 Entrar; 2 Mandar botar; 3 Beber; 4 Pagar; 5 Cuspir, etc., etc. FOLCLORE DO NORDESTE 159
Recentemente, o Professor Natanael Cortez relatou-nos, admirado, um episódio que testemunhou em sua propriedade agrícola. Seus empregados, discutindo, sobre a dor de dente, concordaram, com aprovação geral, que para evitar sofrimento dessa natureza, nada melhor do que o enfermo cuspir na boca de uma aranha caranguejeira. Essa prática de magia está generalizada em todo o sertão e não apenas na área do Nordeste, sendo, segundo acreditamos, adotada por toda a humanidade. Aí está explícito o principio da transferência do mal, poder que julgam possuir as criaturas de fazer a enfermidade que as acometem transmudar-se para um animal ou outra pessoa. Já havíamos recenseado antes: quem sofre de asma basta cuspir na boca de um cará, soltando-o na água em seguida, para ficar curado. Os americanos e é o que nos relata William F. Fielding também livram-se da asma cuspindo na boca de um sapo. As práticas são idênticas e em todas, mais uma vez, ganha importância a saliva. Cospe-se em um objeto de nosso uso, quando utilizado pela primeira vez, para que seja servido com sorte. Cospe-se, ainda, na cova que se abriu para receber a semente, na hora de plantar, para que o grão germine e a messe seja abundante. E costumam as crianças e os adolescentes, para que ninguém coma de suas guloseimas, cuspir nelas, valendo aí a prática de autêntico tabu. A saliva tem, portanto, conforme viram o meio de que dispomos para os nossos impulsos de reação a tudo o que porventura nos causa repulsa. Plínio, o antigo, que morreu asfixiado pelas emanações do Vesúvio, no ano de 79, nos arredores de Pompéia, era um grande entusiasta dos efeitos miraculosos da saliva, pois aconselhava o seu emprego: A saliva de um homem em jejum é o primeiro dos antídotos contra o veneno das serpentes ; Curam-se as lepras friccionando-as todos os dias com sali- 160 EDUARDO CAMPOS
va ; Cura-se a oftalmia fazendo essa mesma aplicação pela manhã ; Par a tratamento do torcicolo do lado direito, cospe-se a mão esquerda e fricciona-se o pescoço ; Para impedir o efeito da feitiçaria, é recomendado cuspir na urina imediatamente depois de ter urinado, cuspir no sapato do pé direito antes de calcá-lo e fazer o mesmo ao passar por um lugar em que se tenha ocorrido algum perigo, etc., etc. Não se pode negar: a etiqueta com toda a sua força não conseguiu ainda destruir o poder da saliva. Mal contemos o desejo de considerar, neste final, que quando o cristão passa o polegar pelos lábios, ao fazer o sinal da cruz, persignandose, sem se aperceber está levando, simplesmente, o dedo à presença mágica da saliva... FOLCLORE DO NORDESTE 161