MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Procuradoria da República Pólo nos Municípios de Itajaí e Brusque SC



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Transcrição:

EXMO. SR. JUIZ FEDERAL DA SEGUNDA VARA FEDERAL DA SUBSEÇÃO JUDICIÁRIA DE ITAJAÍ - SC O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pelo Procurador da República adiante assinado, vem, no exercício de suas atribuições constitucionais e legais (Arts. 127, caput, e 129, inciso V, da CF88 e Arts. 5º, inciso III, e, e 6º, incisos VI e XI, da Lei Complementar nº 75/93) e na defesa judicial de interesses de membros de comunidade indígena Kainghang, oriundos da terra indígena de Iraí-RS, ora acampados no município de Balneário Camboriú-SC (Parque Zoológico da SANTUR), impetrar MANDADO DE SEGURANÇA com pedido de liminar Em face de: SECRETÁRIO MUNICIPAL DE FAZENDA DE BALNEÁRIO CAMBORIÚ-SC, CARLOS ROBERTO VIDAL, com endereço na Prefeitura Municipal de Balneário Camboriú, Praça João Paulo I, 320, Balneário Camboriú-SC. Pelo seguinte: 88301-303 - Fone/Fax (47) 3348-9808 ou 3348-5015 e-mail: prmitajai@prsc.mpf.gov.br

Resumo da impetração. Busca-se, perante este Juízo, tutela jurisdicional mandamental a determinar à autoridade impetrada que se abstenha de impedir, através de seu corpo de fiscalização, que membros da comunidade indígena Kainghang, provenientes, por iniciativa própria, de Iraí-RS e atualmente parados em Balneário Camboriú-SC, possam exercer a livre venda de artigos de artesanato por eles produzidos, nas calçadas e demais logradouros públicos desta última cidade. Competência absoluta. A competência da Justiça Federal para o conhecimento do caso é absoluta, não só por figurar o Ministério Público Federal no pólo ativo da demanda (Art.109, I, CF88 competência ratione personae), mas também por se tratar de questão fática relacionada à violação de direitos indígenas (Art.109, XI, CF88 competência ratione materie). Legitimidade ativa. O Ministério Público Federal tem legitimidade ativa para figurar no pólo ativo desta demanda, vez que, por previsão constitucional (Art.129, V, CF88) e legal (Arts. 5º, inciso III, e, e 6º, inciso XI, da Lei Complementar nº 75/93), cabe-lhe a defesa judicial de direitos indígenas violados. 2

Direito líquido e certo. O sistema jurídico brasileiro garante aos indígenas o direito de livre trânsito em território nacional, bem como lhes assegura o direito de livre venda de seu artesanato, não cabendo ao poder público adotar medidas voltadas a tolher tais garantias. A Lei 6001/73, denominada Estatuto do Índio, estabelece, em seu Art.2o a obrigação dos entes federativos, incluindo os Municípios, de adotarem atos necessários para a proteção das comunidades indígenas e a preservação de seus direitos, dentre os quais podem ser relacionados: O respeito, ao proporcionar aos índios meios para o seu desenvolvimento, às peculiaridades inerentes à sua condição (inciso III); A garantia aos índios da possibilidade de livre escolha dos seus meios de vida e subsistência (inciso IV); O respeito, no processo integrativo à comunhão nacional, da coesão das comunidades indígenas, os seus valores culturais, tradições, usos e costumes (inciso VI); A execução de programa e projetos tendentes a beneficiar as comunidades indígenas, sempre que possível com a colaboração destas (inciso VII); e A garantia aos índios do pleno exercício dos direitos civis e políticos que em face da legislação lhes couberem (inciso X). O mesmo Estatuto do Índio, prevê, em seu Art.53, que o artesanato indígena será estimulado, no sentido de elevar o padrão de vida do índio com a conveniente adaptação às condições técnicas modernas. 3

Já a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, ratificada pelo Brasil, aprovada pelo Decreto Legislativo 143/2002 e promulgada pelo Decreto Presidencial 5051/04 - com força de lei, portanto - estabelece diversos ditames que asseguram o respeito aos costumes e tradições indígenas e a proteção aos seus meios de subsistência, incluindo-se a venda de artesanato. Citemos os dispositivos pertinentes: Artigo 2 o 1. Os governos deverão assumir a responsabilidade de desenvolver, com a participação dos povos interessados, uma ação coordenada e sistemática com vistas a proteger os direitos desses povos e a garantir o respeito pela sua integridade. 2. Essa ação deverá incluir medidas: (...) c) que ajudem os membros dos povos interessados a eliminar as diferenças sócio - econômicas que possam existir entre os membros indígenas e os demais membros da comunidade nacional, de maneira compatível com suas aspirações e formas de vida. Artigo 3 o 1. Os povos indígenas e tribais deverão gozar plenamente dos direitos humanos e liberdades fundamentais, sem obstáculos nem 4

discriminação. As disposições desta Convenção serão aplicadas sem discriminação aos homens e mulheres desses povos. 2. Não deverá ser empregada nenhuma forma de força ou de coerção que viole os direitos humanos e as liberdades fundamentais dos povos interessados, inclusive os direitos contidos na presente Convenção. Artigo 8 o 1. Ao aplicar a legislação nacional aos povos interessados deverão ser levados na devida consideração seus costumes ou seu direito consuetudinário. (...) Artigo 23 1. O artesanato, as indústrias rurais e comunitárias e as atividades tradicionais e relacionadas com a economia de subsistência dos povos interessados, tais como a caça, a pesca com armadilhas e a colheita, deverão ser reconhecidas como fatores importantes da manutenção de sua cultura e da sua autosuficiência e desenvolvimento econômico. Com a participação desses povos, e sempre que for adequado, os governos deverão zelar para que sejam fortalecidas e fomentadas essas atividades. (...) 5

Artigo 30 1. Os governos deverão adotar medidas de acordo com as tradições e culturas dos povos interessados, a fim de lhes dar a conhecer seus direitos e obrigações especialmente no referente ao trabalho e às possibilidades econômicas, às questões de educação e saúde, aos serviços sociais e aos direitos derivados da presente Convenção. (...) Diante de tais previsões legais, conclui-se que é assegurado ao indígena a venda de seu artesanato, em prol de sua subsistência e em exercício de seus costumes e tradições, vedando-se ao poder público que adote medidas que prejudiquem o exercício de tal direito. Porém, atos praticados por determinação do impetrado estão indo de encontro às garantias legais dos indígenas. Ato coator. Os documentos que instruem a presente petição inicial bem demonstram que a autoridade impetrada adotou e está adotando atos variados, voltados a obstar a venda de artesanato por integrantes da referida comunidade Kainghang na cidade de Balneário Camboriú. Balneário Camboriú é notoriamente conhecida como destino de centenas de milhares de turistas e veranistas, que para lá se dirigem para usufruir do clima, praias, 6

atrações, comércio e serviços existentes. Apesar de todos os benefícios que tal fato traz ao Município e aos empreendedores lá estabelecidos, importa, por outro lado, em dificuldades de toda a ordem, considerando, dentre outros fatos, o enorme número de pessoas em trânsito na cidade, prejudicando enormemente a melhor prestação dos serviços públicos, especialmente em feriados e finais de semana. A enorme concentração de turistas e veranistas em Balneário Camboriú e cidades próximas importa obviamente - no crescimento do interesse no comércio e serviços na cidade, considerando os evidentes ganhos que surgirão. A vinda, a Balneário Camboriú, de indígenas da comunidade de Iraí, para venda de artesanato, não é fato recente. Há alguns anos que tal evento ocorre na época de verão, sendo crescente o número de índios que em cada temporada chegam. Informam os integrantes da liderança da comunidade que atualmente são mais de vinte famílias presentes no Município, superando-se uma centena de índios, sendo grande o número de crianças. Tratam-se, efetivamente, de pessoas com ínfimos recursos, que, na grande maioria dos casos, vem a Balneário Camboriú sem qualquer reserva pecuniária para alimentação e demais despesas, dependendo da venda do artesanato para a subsistência. Consta que, diante das dificuldades encontradas no exercício da lavoura na terra indígencia de Iraí, a inviabilizar a subsistência durante todo o ano, membros da comunidade Kainghang se dirigem a várias praias no sul do país, para, aproveitando o 7

grande fluxo de turistas, venderem seu artesanato nas calçadas e demais logradouros públicos da cidade, voltando, ao final da temporada, ao seu local de origem. De tempos para cá, o exercício desta venda pelos indígenas restou dificultada pela Prefeitura de Balneário Camboriú. Cabe a referência que, no exercício de suas atribuições administrativas, a Prefeitura Municipal de Balneário Camboriú atua eficazmente na regulamentação e fiscalização da prática de comércio e serviços na cidade, impondo regras rígidas a lojas, restaurantes, bares, comerciantes ambulantes, camelôs etc. A fiscalização do cumprimento dos ditames municipais é atribuição dos fiscais da Secretaria Municipal de Fazenda, que vão a campo constatar in loco o respeito às determinações, executando, caso necessários, no exercício do poder de polícia administrativa, atos coativos em face dos comerciantes e/ou prestadores de serviço. A presença dos indígenas nas calçadas e logradouros públicos da cidade sempre foi alvo de críticas variadas, não só de comerciantes que se sentiam prejudicados com a venda de artesanato pelos indígenas, como também de todos os outros que discordavam da presença deles em tais locais públicos. O universo das relações sociais é caracterizado por posições conflitantes. Para isto existe a lei. Visando traçar uma composição para a questão, a Prefeitura Municipal de Balneário Camboriú, através de suas secretarias, realizou, em novembro de 2006, uma reunião com representantes da comunidade de Iraí e da Fundação Nacional do Índio FUNAI, visando estabelecer termos para a vinda dos indígenas e para a venda do 8

artesanato. Documentos anexos são a memória do que foi acordado naquela oportunidade. No que interessa à impetração, resolveu-se que a Prefeitura disponibilizaria um único local para venda do artesanato pelos indígenas, situado na Praça Higino Pio, no centro da cidade, a qual é intitulada Praça da Cultura. Esta praça possui bancas fixas de madeira, utilizadas regularmente por artesãos locais na venda de seus produtos. Já o local destinado aos índigenas seria um local apartado, coberto com uma estrutura de lona, com vinte espaços demarcados no chão, cada um com medidas de 2m x 1m. Documento e fotografias anexas esclarecem do que se trata. Consta que foi acordado que a venda do artesanato em outros espaços da cidade estaria vedada. Com a chegada dos indígenas na última quinzena de dezembro e superadas as dificuldades enfrentadas para sua instalação em acampamento, iniciaram-se os atos de vendas. Relatam os líderes da comunidade que o local acordado em novembro se mostrou pouco atrativo, considerando o baixo fluxo de pessoas que lá transitam, e pequeno, diante do grande número de famílias que vieram para a venda de artesanato. Relatam-se baixos ganhos com a atividade, incapazes de garantir a alimentação dos índios. Diante disso, membros da comunidade resolveram se posicionar em outro locais, notadamente em calçada da Avenida Brasil, próxima ao Atlântico Shopping, local utilizado em anos anteriores, apesar de conflitos, e, regularmente com grande fluxo de pessoas. Constatando este fato, fiscais da Secretaria Municipal da Fazenda praticaram atos voltados a obstar a venda de artesanato naquele local, bem como de lá retirá-los 9

coativamente. Ressaltaram que somente permitiriam aos índios que vendessem seu artesanato na área a eles destinada na Praça Higino Pio. Crentes na titularidade do direito à prática da venda como realizavam, os índios se insurgiram em face da conduta da Administração, o que gerou, inclusive, desordem no local, conforme dão conta os documentos e fotografias anexas. Os fatos chegaram ao conhecimento do Ministério Público Federal, razão pela qual o subscritor contatou membros da fiscalização municipal, agendando, com o apoio da Secretaria da Fazenda, uma reunião com os índios e representantes municipais para a tarde do dia 29/12/06 (sexta-feira). Infelizmente não foi possível o contato com a FUNAI. Em tal reunião, objeto da anexa ata, da qual participaram várias autoridades, buscaram-se várias propostas de um novo acertamento para a questão, pois a forma de composição, formalizada em novembro, mostrou-se, para a comunidade, na prática insatisfatória. Vários locais foram propostos, bem como eventuais medidas paliativas. Nada foi acordado quanto a esta questão. Tão somente teve-se o compromisso dos líderes da comunidade de que as crianças seriam retiradas de situações de risco que eram encontradas, próximas a vias públicas, ao acompanharem seus pais em vendas em calçadas. Mantido o conflito de interesses, nada restou ao Ministério Público Federal senão a busca da prestação jurisdicional. Cabe ressaltar o entendimento do subscritor de que, como brocardo maior da vida em sociedade, as regras existem para a convivência pacífica e busca do bem 10

comum. Neste contexto, insere-se a regulamentação e fiscalização municipal acerca da prática de comércio e serviços, cuja rigidez e efetividade se mostram especialmente inafastáveis em grandes centros urbanos, como na aprazível cidade de Balneário Camboriú. Contudo, a questão aqui refoge a posturas municipais. Com efeito, a posição da Secretaria da Fazenda Municipal, em não disponibilizar outros locais adequados e suficientes a sustentar a viabilidade da atividade de venda de artesanato por toda a comunidade de indígenas - e sua decorrente subsistência -, viola garantias plasmadas no sistema jurídico brasileiro e titularizadas pelos índios, para a conservação de sua cultura, tradições, costumes e meios de vida, diversos que são ressalte-se - daqueles estabelecidos em relação à comunhão nacional. Efetivamente, uma premissa deve ser seguida: os indígenas que vendem seu artesanato não podem ser simplesmente tratados como comerciantes ; o seu regime jurídico é outro, formado por garantias especiais, a serem consideradas por todos, especialmente pelo poder público. Desta feita, a atuação coativa de integrantes da fiscalização fazendária municipal em obstar a livre venda de artesanato por membros da comunidade indígena Kainghang da terra indígena de Iraí-RS, nas calçadas e demais logradouros públicos de Balneário Camboriú, viola o direito líquido e certo dos índigenas a tal atividade. Pedido de liminar. 11

A fumaça do bom direito está evidenciada no decorrer desta petição inicial, razão pela qual me reporto aos itens precedentes. O perigo da demora se mostra evidente, pois, não só se vislumbram prováveis novos conflitos nas calçadas e outros logradouros públicos da cidade de Balneário Camboriú, entre a fiscalização municipal e os índios, que concretamente não aceitam ou acatam as citadas determinações dos agentes públicos, como, também, porque a temporada turística de verão razão da vinda da comunidade para este balneário está em pleno acontecimento. Requer-se, pois, a concessão de comando liminar para determinar à autoridade impetrada se abstenha e determine que seus agentes se abstenham de praticar quaisquer atos voltados a obstar a venda de artesanato por indígenas nas calçadas e demais logradouros públicos de Balneário Camboriú. Pedidos processuais e pedido final. Requer-se o recebimento da presente, a concessão da liminar acima pleiteada, o seguimento do rito processual estabelecido pela Lei 1533/51 e o julgamento de procedência do pedido para, conforme pedido de liminar, determinar à autoridade impetrada se abstenha e determine que seus agentes se abstenham de praticar quaisquer atos voltados a obstar a venda de artesanato por indígenas nas calçadas e logradouros públicos de Balneário Camboriú. Valor da causa: R$1.000,00. Itajaí-SC, em 2 de janeiro de 2007. 12

ALEXANDRE MELZ NARDES Procurador da República 13