Desde os anos oitenta nos acostumamos a um nome que logo se transformaria. Otavio Henrique Meloni 1



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Transcrição:

297 UM COLAR DE EXPERIÊNCIAS: O OLHAR COTIDIANO DE MIA COUTO EM O FIO DAS MISSANGAS Otavio Henrique Meloni 1 RESUMO O escritor moçambicano Mia Couto apresenta em O fio das missangas sua vertente mais perspicaz: a de contista. Porém, os anos sem publicar nesse gênero nos fazem perceber a evolução temática e a lapidação vocabular marcas do autor de maneira renovada e mais aguçada. Buscaremos aqui analisar tais evoluções e suas consequências na escrita rápida deste respeitado escritor africano de língua portuguesa. PALAVRAS-CHAVE: Mia Couto - Literatura Moçambicana - Contos africanos Desde os anos oitenta nos acostumamos a um nome que logo se transformaria em um dos mais representativos escritores das literaturas africanas de língua portuguesa. Falamos do moçambicano Mia Couto e de sua escrita sempre laçada entre o fantástico e o real, desde a construção morfológica do texto até seus sentidos últimos e edificantes. Tal combinação fez com que o autor de Terra Sonâmbula (1992) se tornasse recordista de vendas em todo o mundo e fosse traduzido para diversas línguas. Autor de poesias, contos e romances, Mia Couto, também biólogo, sempre buscou em sua escrita uma parcela que fosse de sentido para a existência humana diante das catástrofes e ruínas espirituais e sociais, muitas vezes expondo opiniões e convicções 1 Ex-professor Substituto de literaturas africanas de língua portuguesa na UFRJ e Aluno de doutorado em estudos literários da UFF.

298 Meloni, Otavio Henrique. Um colar de experiências: O olhar cotidiano de Mia Couto em O fio das missangas políticas disseminadas em meio ao discurso do fantástico e na nomeação dos personagens, por exemplos. Essa fórmula parece se repetir em seu mais recente livro de contos O fio das missangas, publicado originalmente no ano de 2003 em Portugal, mas só chegado ao público brasileiro, pela editora Companhia das Letras, no ano de 2009. Nele Mia Couto retorna à sua escrita embrionária, a mesma que permeou os predecessores Cada homem é uma raça (1990) e Estórias abenssonhadas (1994), seus mais representativos e conhecidos títulos na área dos contos. Sim, em o fio das missangas, reencontramos o moçambicano dando a voz do texto aos mais simples personagens que, como corriqueiro em sua escrita, acabam por transmitir as mensagens mais profundas e as reflexões mais densas em seus textos. Porém, o que o título de 2009 tem de diferente em relação aos outros já publicados pelo autor? Há uma inversão de proporcionalidade do binômio sonho (lido muitas vezes como fantástico)/ realidade (quase sempre representando a miséria humana), o que acaba propondo uma revisão/evolução do olhar crítico e suas formas de representação ao longo desses mais de vinte anos. Com isso, a realidade passa a ser a base fundadora das estórias (pelo menos da maioria delas), trazendo temáticas cotidianas, quase crônicas diárias de pessoas comuns em uma cidade qualquer do mundo que, frente aos seus conflitos, confrontam aspectos da modernidade e da tradição em situações típicas do século XXI; e as temáticas do sonho, do fantástico e do irreal passam a permear tal realidade como forma de adensar os aspectos humanos e sociais contidos em cada episódio narrado. Tal inversão de proporção traz para esse recente título de Mia Couto um toque diferenciado dos anteriores e nos convoca a uma reflexão como leitores atentos que somos ou deveríamos ser... tanto da realidade que nos cerca, como do universo literário do autor. De maneira estrutural, O fio das missangas, como o próprio título já aponta, é uma reunião de contos curtos, aparentemente esparsos, mas que conjugados se tornam em um imenso colar. Ao leitor passa a caber o papel de artesão que organiza as missangas narrativas deixadas pelo escritor, formando seu entendimento maior ao final do volume. E o resultado não poderia ser outro: um colar de emoções humanas que ultrapassam os limites do social com extrema sensibilidade poética. A poesia, já visitada pelo escritor em títulos como Raiz de orvalho (1983) e Idades Cidades Divindades

299 (2007), retorna neste volume de contos de maneira incisiva, disseminada em meio à prosa sempre tão criativa e inovadora deste moçambicano. À maneira como se costuram os textos, sempre enlaçados por temáticas ou vozes que se alinham em um sentido maior, cabe ao poético abrir as portas da realidade para o tratamento do fantástico pelo verossímil, como podemos ver muito bem no conto O homem cadente, que narra a estória de um homem que se atira da janela do seu apartamento, mas demora muito tempo para chegar até o chão. Tal fato provoca uma série de reflexões do narrador até seu desfecho um tanto quanto surpreendente, que preferimos não adiantar aqui para preservar a surpresa. Desse modo, os contos giram em torno de um personagem central que pode ser compreendido como uma das missangas desse colar narrativo, já que norteiam as reflexões filosóficas, políticas e literárias de cada estória. Cabe ainda ressaltar que as mulheres assumem um protagonismo vital em grande parte dos textos o que, se não é tão surpreendente na obra do autor, apresenta uma escolha interessante para o universo totalizador do volume, que pode ser exemplificado pelo conto que dá nome (ou mais se aproxima disso) à reunião de contos. Nesse texto, encontramos o personagem masculino JMC que diz guiar/compor sua vida pelas mulheres que visita : A vida é um colar. Eu dou o fio, as mulheres dão as missangas. São sempre tantas as missangas... (p. 66). De tais personagens e de sua realidade circundante irradiará a força gravitacional das pequenas narrativas (algumas quase crônicas) e, posteriormente, entrelaçadas pelos temas e tratos apresentados como possibilidades de vida durante os contos, comporão o místico-cotidiano colar. Como encontramos, por exemplo, no conto O cesto, em que a protagonista vive às voltas com o marido internado em situação de quase-morte, em antecipado/ adiado luto que, por vezes, a faz desejar sua morte como símbolo de libertação. É através desta situação que conhecemos o emocional de uma mulher que fora subjugada e aprisionada numa condição que já não combina com os avanços e as conquistas femininas contemporâneas e que, ao ser libertada dos compromissos matrimoniais pelo falecimento do esposo, acaba se deparando com uma nova prisão, agora particular e muito mais difícil de lidar. Portanto seja por um caminho voltado para o lado emocional, como nos contos As três irmãs e O adiado avô, ou pelo lado mais social

300 Meloni, Otavio Henrique. Um colar de experiências: O olhar cotidiano de Mia Couto em O fio das missangas e político, como no caso de O mendigo sexta-feira jogando no Mundial citando apenas alguns exemplos, Mia Couto encaminha seu leitor a um universo cotidiano, que intercala o urbano e o rural, repleto de conflitos pessoais típicos do século XXI, ainda que atravessados pelos raios de crenças e mitos que o autor trabalha/cria tão bem. A sensibilidade do autor, portanto, nos leva a estórias possíveis em qualquer parte do mundo, mas compreensíveis de maneira mais reflexiva apenas em seu universo. O leitor familiarizado com a obra de Mia Couto irá encontrar nesta reunião proposital de contos arestas dos principais motes do autor, mas se surpreenderá com a maneira como essas farpas de ilusão furam os seus olhos e demoram a sair, tamanha sua ligação com a realidade. Por outro lado, os leitores de primeira viagem no universo do moçambicano encontrarão, sem dúvidas, um prazeroso caminho de leitura em cada conto e uma unidade temática progressiva ao final do volume que os levará a buscar outros títulos do autor. Leitura obrigatória para os fãs do escritor moçambicano e profundamente recomendável aos que gostam da boa literatura, O fio das missangas é uma ótima oportunidade para revermos nosso olhar sobre determinados conceitos sociais e humanos de maneira sensível e mais flexível. Como diz o provérbio Munhava que serve de epígrafe ao conto A carta de Ronaldinho : O problema não é ser mentira. É ser mentira desqualificada. Essa parece ser a mensagem mais contundente do colar narrativo tecido pelo artesão vocabular Mia Couto: precisamos questionar nossas verdades e certezas mais antigas para voltar a nos sensibilizar com as pequenas/grandes mazelas humanas que nos assolam nestes novos tempos. Com o fio e as missangas em mãos, basta ao leitor formar seu colar de experiências e emoções costuradas pelas palavras invisíveis que todos os dias, em cada pequena atitude ou momento, esquecemos de ler.

301 COUTO, Mia. O fio das missangas. São Paulo: Cia das letras, 2009. 147 páginas. The Mozambican writer, Mia Couto, presents in O fio das Missangas his outstanding characteristic of being a storyteller. In his work, it can be perceived both the thematic evolution and vocabulary improvement. We aim to analyze these developments and their influences in the work of this respected African writer of Portuguese language. KEYWORDS: Mia Couto - Mozambican Literature - African Tales Recebido em: 28/03/2010 Aprovado em: 17/06/2010