MOVIMENTOS INDÍGENAS POR EDUCAÇÃO: NOVOS SUJEITOS SOCIOCULTURAIS NA HISTÓRIA RECENTE DO BRASIL. CAMPOS, Rogério Cunha (UFMG)



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Transcrição:

MOVIMENTOS INDÍGENAS POR EDUCAÇÃO: NOVOS SUJEITOS SOCIOCULTURAIS NA HISTÓRIA RECENTE DO BRASIL. CAMPOS, Rogério Cunha (UFMG) Introdução Este trabalho apresenta resultados parciais de pesquisa, que procura investigar a relação entre os movimentos indígenas e as propostas educacionais em andamento em áreas de suas comunidades. Nesse sentido busca compartilhar a experiência das etnias indígenas reconhecidas no Estado de Minas Gerais, sudeste do Brasil, em sua história de lutas pela criação de escolas indígenas diferenciadas, com currículos especiais, professores egressos de suas comunidades e por elas escolhidos, calendários e outras práticas escolares segundo seus modos de vida. Tal perspectiva, constitui a proposta de educação intercultural e bilingüe, cujo direito formal se encontra na Constituição Federal do Brasil, aprovada em 5 de outubro de 1988, precedida por um intenso processo de discussões que durou aproximadamente dois anos. A inscrição de direitos à educação diferenciada, que a um tempo contempla a tradição científica da escola da sociedade moderna, e valoriza as tradições singulares de cada etnia indígena, constitui num fato sem precedentes na história da educação brasileira, sob responsabilidade estatal, moldada nos paradigmas formulados de maneira mais densa no processo de instituição da instrução pública, sobretudo nos princípios associados à Revolução Democrática. Qual o significado histórico dessas mudanças? Enfocados sob o ponto de vista de novos sujeitos históricos emergentes na cena brasileira há poucos anos, os movimentos indígenas foram interpretados como novos movimentos sociais, protagonistas de significativas rupturas; na perspectiva de um tempo histórico mais largo, as lutas de resistência e de afirmação/reelaboração de suas identidades étnicas estão presentes desde os primeiros contatos. As lutas sociais levadas a efeito pelos povos indígenas, historicamente associaram reivindicações econômicas básicas, como as da defesa e demarcação de suas terras, àquelas relacionadas à afirmação de suas identidades, como o direito de aprender e expressar-se em suas línguas maternas e cultivar, inclusive na escola, seus valores e tradições.

2 No entanto, até o fim da década de 1980, no Brasil, a formação escolar, para as crianças e jovens egressos das comunidades indígenas, esteve subordinada à perspectiva de integração ao processo de formação político e cultural, de um Estado Nacional, que tem numa língua única, no caso o português, uma componente cultural central. As distintas tradições escolares que chegaram aos povos indígenas, na história do contato entre as populações nativas e os europeus e seus descendentes, desde as iniciativas dos pioneiros jesuítas, seguidos mais tarde por missionários de outras confissões religiosas, assim como no âmbito do Estado, pelo antigo Serviço de Proteção ao Índio - SPI e, depois, pelas escolas da Fundação Nacional do Índio - FUNAI, estiveram profundamente vinculadas ao integracionismo. Tais experiências escolares eram dirigidas por educadores não índios e seus currículos, processos pedagógicos, calendários etc. não deveriam se distinguir do paradigma da escola comum a que, em tese, tem acesso qualquer brasileiro. As mudanças recentes apontam para outros paradigmas que incorporam a experiência escolar fundada na ciência moderna e de certo modo a supera na medida em que procuram incorporar igualmente saberes oriundos das distintas etnias numa perspectiva intercultural. Para investigar como se dão esses processos e sua contribuição na formação de novos sujeitos socioculturais no Brasil, são utilizadas diferentes fontes primárias: para a discussão da construção de um novo paradigma de educação indígena, sob princípios da interculturalidade e do bilinguismo, que começa a implementar-se em alguns estados brasileiros a partir do fim da década de 1980, se vale dos documentos oficiais produzidos durante o processo constituinte, assim como de documentos de entidades e de depoimentos de lideranças indígenas que atuaram intensamente naquele período; por fim, ao tratar das práticas atuais nas escolas indígenas, lança mão de depoimentos de professores indígenas, especialmente da etnia Pataxó e da documentação do Programa de Implantação das Escolas Indígenas MG 1, que vem sendo implementado desde 1995, no qual estão 1 Secretaria de Estado da Educação de Minas Gerais (SEE-MG), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Instituto Estadual de Florestas (IEF) e Fundação Nacional do Índio (FUNAI), com apoio do Ministério da Educação e do Desporto (MEC).

3 envolvidas agências governamentais e as organizações indígenas das nações Pataxó, Xakriabá, Krenak e Maxakalí. Breve notícia acerca dos povos indígenas em Minas Gerais Atualmente, existem quatro grupos indígenas oficialmente reconhecidos em Minas Gerais, e um luta pelo seu reconhecimento oficial, os Kaxixó, da região de Pompéu. Três destes grupos estão situados nas fronteiras do Estado: os Xacriabá nos municípios de Itacarambí e de São João das Missões, os Maxakali nos municípios de Bertópolis e de Santa Helena e os Krenak em Resplendor. Os Pataxó da fazenda Guarani, no município de Carmésia, são originários do sul da Bahia de onde foram transferidos em 1977. Um pequeno contigente formado por duas famílias Krenak e Pankararu também ocupam atualmente a área Pataxó. Em diferentes graus de contato com a sociedade envolventes e diferenciadas, os grupos indígenas de Minas Gerais enfrentam gravíssimos problemas de sobrevivência. Os Maxakali são em torno de 800 e possuem uma população em idade escolar de 295 crianças. Se autodenominam tikmã ãn, que quer dizer nós humanos. São monolingues e pertencem ao tronco lingüístico Macro-Gê de família maxakali. É o único grupo de Minas Gerais que preserva inteiramente vivas sua cultura e língua próprias. Mantêm uma intensa vida ritual e o contato permanente com o mundo dos espíritos. Possuem uma economia de caça e coleta, com pouca ênfase na agricultura. Encontram-se em extrema miséria dada a degradação do meio ambiente e da reduzida área de sua reserva. Os Krenak, em torno de 180, possuem uma população em idade escolar de 30 crianças. São o único grupo que conta com uma escola legalmente criada pela Secretaria da Educação. Pertencem ao tronco lingüístico Macro-Gê, família Botocudo, língua Krenak. São o grupo Gut-Krak dos Botocudos. Embora falem cotidianamente o Português, possuem também o conhecimento de sua língua materna em graus variados. Sua autodenominação é Borum Watu. O contato entre portugueses e Botocudos sempre foi marcado pela violência, assim como a saga pela conquista da demarcação de sua reserva que se prolonga até os dias de hoje. Os Xakriabás pertencem à família lingüística Gê, sub-família Akwem. Atualmente, falam somente o Português. Os Xacriabá possuem um forte sistema de liderança centralizado, que

4 funciona através de um conselho de caciques. Enfrentam graves problemas políticos com a sociedade envolvente associados à problemas de terra e de identidade étnica. Dentre os 6000 Xacriabá há uma população em idade escolar de 1044 crianças das quais 482 estão sem escola 2. A comunidade Pataxó é originária de Barra Velha, próximo a Porto Seguro, na Bahia. Como os Maxakalí e Krenak, pertencem ao tronco lingüístico Makro-Gê, mas se expressam hoje, correntemente, apenas em português. Há um universo de palavras Pataxó, que vem sendo pesquisado, com assessoria de antropólogos. Os Pataxó investem significativamente na recuperação dessas palavras, registradas em fontes diversas, como parte da reconstrução de sua identidade étnica. Os Pataxó estão em contato com a sociedade nacional desde o início do século XIX e viveram em Barra Velha, até aproximadamente 1950. Impedidos de praticar suas atividades tradicionais agricultura e extração vegetal dispersaram-se pela região. Uma parte do grupo, nesse processo de dispersão, se radicaram em Minas Gerais 3. Hoje compõem aí uma população de cerca de 220 pessoas, dos quais quarenta são crianças em idade escolar. Fazendo história e educação A história das lutas dos povos indígenas pelo desenvolvimento de suas culturas, pelo espaço e possibilidades de continuidade de suas expressões, através da reiteração de seus rituais, da transmissão por meios diversos de valores e costumes para as novas gerações, por garantir o espaço-tempo para suas manifestações culturais que se vinculam aos ciclos da natureza e aos momentos singulares da vida humana, sem dúvida, se configura desde os primeiros contatos com os europeus, há cerca de cinco séculos Nas condições coletivas de vida dos grupos indígenas entre nós, percebe-se que as dificuldades para a manutenção/fortalecimento de suas culturas, interligam problemas materiais de sobrevivência, conflitos envolvendo questões de natureza econômica (entre os quais se destaca o problema da invasão dos territórios indígenas) e questões de natureza 2 Fonte: SEE-MG. Programa de Implantação de Escolas Indígenas em Minas Gerais.. 3 SAMPAIO, J. A. L. Coroa Vermelha 1997: garantia da terra indígena...

5 cultural, desde a discriminação e preconceito com que são vistos pela sociedade envolvente, até formas mais extremas como o epistemicídio que fez desaparecer parte do conhecimento acumulado pelos povos indígenas, assim como determinadas maneiras de conhecer o mundo 4. Contudo, nos últimos anos, os povos indígenas, primeiros habitantes do território brasileiro, vem conseguindo através de suas lutas, resgatar parte de seu patrimônio cultural, ter reconhecido parte dos direitos em relação às suas terras, reconstruir suas identidades. Desse modo, experimentam um interessante processo de reelaboração de suas identidades étnicas. No Brasil, a segunda metade da década de 1970 foi particularmente favorável à conquistas de direitos, depois de muitos anos de imobilismo social forçado pelos controles políticos próprios do caráter dos governos militares que se instalaram no país desde 1964. Não obstante, a situação política experimentou importantes mudanças cerca de quinze anos depois. Os sujeitos coletivos que se constituíram nessa conjuntura (na qual o ano de 1978 pode ser considerado marco simbólico das rupturas de então) foram interpretados como movimentos sociais, presentes dominantemente na literatura afim do período, compondo dois grandes blocos, segundo a natureza das reivindicações que portavam: movimentos coletivos cujas demandas situam-se no âmbito da luta pela obtenção de bens materiais (equipamentos de consumo coletivo e serviços públicos essenciais, nos movimentos urbanos, por exemplo) e movimentos no âmbito da identidade, portadores de reivindicações relativas à igualdade de direitos e simultâneo reconhecimento à diferença, como o caso dos movimentos das mulheres, dos negros, dos homossexuais... Nesse aspecto, o movimento indígena distingue-se ao reunir as duas dimensões: a reivindicação básica de terra, um bem material, meio de produção indispensável à economia desses grupos humanos, contudo não apenas isto: a luta pela terra é, neste caso, indissociável da reivindicação do reconhecimento de suas singularidades, da identidade étnica dos cerca de 260 povos indígenas existentes no Brasil. 4 CAMPOS, R.C. Pesquisa e produção artesanal,...

6 Essas dimensões aparecem muitas vezes nesse movimento, encapsulada no conceito de território que, mais além que o sítio em que eventualmente habitam hoje as populações indígenas, incorporam aspectos simbólicos específicos a cada etnia. Nesse sentido, como resultado da ação do movimento indígena dos últimos anos, no Brasil, tais reivindicações se traduziram em direitos, que se incorporaram à Constituição de 1988, entre eles o direito à educação escolar diferenciada, ministrada por professores indígenas nas áreas onde vivem suas comunidades. Uma geração de lideranças desse movimento constituiu e se constituiu como sujeitos coletivos e individuais, associando intimamente o processo de lutas sociais, as reivindicações por direito à terra e à cidadania, à educação escolar. Na concepção de tais lideranças, a educação escolar, sem negar as tradições e os valores étnicos próprios a cada nação indígena é uma dimensão de vital importância para seus povos. Em muitos casos, o acesso à educação escolar do branco é reconhecido como imprescindível para a formação da consciência a respeito de suas próprias culturas, de seus direitos, além de ser concebida como um dos instrumentos de defesa frente às ameaças encetadas por parte de grupos sociais integrantes da sociedade brasileira, à integridade dos seus territórios e mesmo à existência dos seus povos. 5 Como importantes conseqüências da história das lutas pelo reconhecimento dos direitos formais, na Constituição Federal de 1988, houve a instalação, em alguns estados da federação, dos Núcleo de Educação Indígena com a responsabilidade de implementar as diretrizes da legislação então aprovada. Iniciaram-se em decorrência, os cursos de formação de professores indígenas. A partir de 1995, começa o Programa de Implantação das Escolas Indígenas de Minas Gerais, dirigido pela Secretaria de Educação do Estado, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais, o Instituto Estadual de Florestas e a Fundação Nacional do Índio, além das quatro nações indígenas referidas, com apoio do Ministério da Educação. Faz parte desse programa o Curso de Formação de Professores Indígenas MG, que conta com 66 participantes, todos eles docentes em suas comunidades de origem. 5 CAMPOS, R.C. Movimento indígena e educação escolar... p. 57-58.

7 O curso se efetiva em 8 etapas de ensino presencial, desenvolvidas no Parque Florestal do Vale do Rio Doce, durante os períodos de férias escolares (janeiro e fevereiro no verão e julho, no inverno), complementadas pelas atividades sob responsabilidade dos cursistas durante os períodos em que exercem a docência em suas comunidades. Há então, atividades de ensino presencial (com supervisão da equipe de formadores e de técnicos da Secretaria de Educação de cada região onde se encontram as escolas indígenas) e de ensino não presencial. Em dezembro de 1999, se titularão os primeiros professores indígenas em nível correspondente ao Magistério, de acordo com os princípios da Educação Intercultural e Bilingüe. Estas propostas resultam dos movimentos mais gerais, que ocorreram antes e durante as discussões do Congresso Constituinte que se reuniu no Brasil, nos anos 1986-88, e também das mobilizações moleculares das comunidades indígenas. O desenho da educação escolar indígena entre os Pataxó A comunidade Pataxó demanda há bastante tempo, uma escola que seja um elemento do desenvolvimento do povo Pataxó em sua cultura, o que nunca encontraram seja numa escola da FUNAI que existia anteriormente na reserva, em que as professoras não eram indígenas, seja nas escolas municipais de Carmésia. Desde cedo os Pataxó se integraram ao movimento indígena que reivindica seus direitos, inclusive o direito à educação em sua própria cultura. Os Pataxó reconhecem que a criação de sua escola é resultado do fortalecimento da luta pela constituição/reconstituirão das identidades étnicas dos grupos indígenas no Brasil. Destacamos os seguintes pontos, entre as propostas da comunidade, em reunião datada de 20 de setembro de 1995, quando foram indicados os candidatos a professores para fazerem o Curso de Formação de Professores Indígenas de Minas Gerais: - A nossa escola deve ensinar o nosso jeito de viver; costumes, crenças, tradições, o jeito de educar os nossos filhos; o nosso jeito de trabalhar; - Queremos, também, Português, Matemática e outros conteúdos que nos interessam [na escola comum];

8 - Tudo que se refere ao funcionamento da escola [incluindo conteúdos, carga horária, calendário, avaliação, escolha de professores e outros funcionários] seja de acordo com a decisão da comunidade; - Escola deve atuar junto com a comunidade na defesa, conservação e proteção do seu território e costumes; - Escola deve estudar as plantas indígenas, os solos, os animais. [desenvolver] atividades voltadas para a auto sustentação, em aulas práticas e teóricas; - A escola deve produzir e ter meios de imprimir os materiais didáticos, assim como [deve contar com] laboratório equipado, TV, antena parabólica, videocassete; - Salários dignos para os professores indígenas. A partir dessas considerações foram indicados 4 professores e 2 professoras para participarem como alunos do Curso de Formação de Professores do Estado de Minas Gerais. 6 Esse curso de formação, tem significado uma importante experiência de interação entre agências governamentais e as nações indígenas Pataxó, Krenak, Maxakali e Xacriabá, que participam de sua coordenação. Os candidatos indicados pela comunidade participam do curso, que se desenvolve em módulos nos meses de janeiro, e julho, durante as férias escolares. Além desse período de 30 dias, em que se encontram no Parque Florestal Vale do Rio Doce, até meados deste ano os professores realizavam tarefas em suas áreas. No caso dos Pataxó deu-se início à regência em classe a partir de agosto de 1997.. Com a designação, pelo governo do Estado, dos 66 alunos do curso de formação para serem professores, a comunidade Pataxó resolveu iniciar o curso de educação de adultos, correspondente à suplência de 1a. a 4a. série do ensino fundamental e, em relação às crianças, tomou a decisão de continuarem nas escolas do município de Carmésia, ao mesmo tempo em que os professores da escola indígena deveriam iniciar imediatamente o trabalho de Língua e Cultura Pataxó. 6 CAMPOS, R.C. et al. Cultura e educação entre os Pataxó... p.222-223.

9 Além disso, visando o bom desempenho dos alunos Pataxó na escola comum, os professores indígenas deveriam dar aulas de reforço naqueles conteúdos tradicionais da escola comum. Decidiu-se também, por uma estreita vinculação entre o curso de adultos e a escola infantil, através das atividades vinculadas à Língua e Cultura Pataxó, com o objetivo de produção de materiais didáticos para serem utilizados na escola das crianças. Desse modo, criou-se uma interessante articulação entre a escola de adultos e a escola infantil, tendo como pontes a Língua e Cultura Pataxó e a ação dos alunos e professores dos cursos de adultos e de crianças. Para o apoio a esse trabalho foram indicados pela comunidade 4 professores de cultura, pessoas mais velhas detentoras de saberes importantes da cultura Pataxó, conhecedores da história, do artesanato, dos mitos, dos cânticos, das festas, das brincadeiras, da arte culinária etc., para repassarem diretamente no curso de adultos e direta e indiretamente através dos professores e professoras das crianças, esses saberes. Esse processo resulta na produção de materiais didáticos, através da transcrição das canções que cantam os professores de cultura e outras pessoas da comunidade, do registro escrito das histórias que contam, dos depoimentos que fazem a respeito de palavras da língua Pataxó, como viviam e que atividades desenvolviam seus antepassados, da recuperação de festas etc. Consideramos que está se constituindo, dessa maneira, uma comunidade de aprendizagem em que todos são educandos e educadores ao mesmo tempo, a escola tornando-se um lugar de pesquisa e produção na cultura Pataxó. Desenha-se como perspectiva, o enriquecimento da experiência da educação de adultos, através de uma vinculação mais próxima com a produção de artesanato, significativa na cultura Pataxó. Projeta-se também programa de exploração sustentável da área da reserva, paralelamente à introdução da disciplina Uso do Território Pataxó, prevista para a próxima etapa, envolvendo alunos e professores, além de outras pessoas da comunidade. Assim se constitui o que chamamos de uma comunidade educativa, em que todos são educandos e educadores: a escola se transforma em espaço de investigação e produção, na cultura Pataxó. Ademais, o curso ressalta a formação de professores e alunos que saibam utilizar ferramentas que lhes permitam atuar como investigadores interativos em sua própria cultura e na cultura da escola comum, de tradição moderna.

10 A história recente das reivindicações dos povos indígenas no Brasil, nesse processo, constitui novos atores socioculturais, que propõem novos problemas para a reflexão acadêmica e para as relações da sociedade brasileira com os diversos grupos étnicos que habitam o mesmo território. Quando os indígenas ao longo deste ano protestam contra o ar festivo das referências aos quinhentos anos de Brasil, remetendo para "outros 500" colocam em questão o passado e simultaneamente o futuro. Seguramente a presença desses sujeitos socioculturais em Terra Brasilis abre a perspectiva de futuro, de construção de relações interculturais que superem o integracionismo. Estes grupos estão, a meu ver, reivindicando a inauguração de inéditas relações numa sociedade que se reconheça pluriétnica e plurilíngue. Bibliografia CAMPOS, Rogério Cunha. Movimento indígena e educação escolar em Minas Gerais. In: V Encontro de Pesquisa da FAE-UFMG. Anais. Belo Horizonte, UFMG, 1998, p. 57-61. CAMPOS, Rogério Cunha. Não aponte o dedo para Akwarinãn. SEE MG, Belo Horizonte, BAY (1): 72-73, abr. 1998. CAMPOS, Rogério Cunha. Pesquisa e produção artesanal, visando obtenção de renda, associadas à educação de adultos. Belo Horizonte, abril de 1998. (Projeto de extensão). CAMPOS, Rogério Cunha. A luta dos trabalhadores pela escola. São Paulo, Loyola, 1989. CAMPOS, Rogério Campos et al. Cultura e educação entre os Pataxó em Minas Gerais: relações entre os cursos de adultos e de crianças. In: Ameríndia tecendo os caminhos da educação escolar. SEE-MT/Conselho de Educação Indígena/MT, Cuiabá, 1998, p. 219-223. CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Os direitos do índio. São Paulo, Brasiliense, 1987. CIMI. Os povos indígenas e a nova República. Documento. São Paulo, Ed. Paulinas, 1986. GRUPIONI, Luís D. Da aldeia ao parlamento. Em Aberto. Brasília, INEP, ano 14, n.63, 1994.

11 MATO GROSSO. Secretaria de Estado da Educação. Conselho de Educação Escolar Indígena. Urucum, jenipapo e giz: a educação escolar indígena em debate. Cuiabá, Entrelinhas, 1997. MELIÁ, Bartomeu. Educação indígena e alfabetização. São Paulo, Loyola, 1979. OPAN. Ação indigenista como ação política. Cuiabá, OPAN, 1987. SADER, Éder. Quando novos personagens entraram em cena. Rio de janeiro, Paz e Terra, 1988. SAMPAIO, José Augusto L. Coroa Vermelha 1997: garantia da terra indígena e impasses no quinto centenário do descobrimento. 1977 (no prelo). SEE MG. Programa de Implantação de Escolas Indígenas de Minas Gerais. Belo Horizonte, maio, 1997, 20 p. (brochura). SANTOS, Sílvio Coelho dos. Povos indígenas e Constituinte. Florianópolis, UFSC/Movimento 1989. VIDAL, Lux. (coord). O índio e a cidadania. São Paulo, Brasiliense e CPI/SP, 1983.