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Transcrição:

1 Os jornais humorísticos do século XIX informam que Sua Majestade o Sr. D. Pedro II, Imperador e Defensor Perpétuo do Brasil, protetor das Ciências e das Artes, também chamado pelo vulgo de Pedro Banana, tinha o curioso hábito de repetir já sei, já sei. Falavam-lhe muitas e variadas coisas e, para defender-se do tédio, ele abreviava as conversas. Usava solenes barbas em leque, muito branquinhas, e isso era o bastante para que não insistissem. Tinha horror às disputas, mas suas decisões eram categóricas. Uma vez implicou com o Barão do Rio Branco e não o incluiu na comitiva que iria à Exposição da Filadélfia. Assim o quero, disse, e a História ainda aguarda as razões. Na Exposição, Sua Majestade proferiu a interessante frase to be or not to be no bocal do aparelho inventado por Mr. Bell, e foi ouvido na outra ponta do fio. Como não tivemos Idade Média, esse talentoso monarca preenchia nossas vagas aspirações de antigüidade e nobreza. D. Pedro II não foi amado nem temido: foi uma necessidade romântica. Antes, algum breve tempo antes da morte anônima de Cecília, o Mordomo-mor da Casa Imperial, em seu gabinete do Paço, desde manhã cedo vasculhava pilhas de documentos. Qualquer coisa estava errada nos papéis da 11

Luiz Antonio de Assis Brasil viagem que fizeram D. Pedro e D. Teresa Cristina à Província do Rio Grande do Sul. Faltava algo, o que é a pior forma de erro. Foi à Sala dos Despachos e perguntou ao Monarca se guardava lembrança de um certo estancieiro gaúcho chamado Francisco da Silva, em cuja casa estivera hospedado. A Imperial Pessoa refletiu, olhando para o reposteiro de veludo verde, onde se bordavam em ouro as armas do Brasil. Fixou-se nos ramos de tabaco e café, que se misturavam às ancestrais armas portuguesas. Disse em sua voz feminil, da qual tanto se envergonhava: Não lembro. Apesar de já instalado o outono oficial, que o fizera descer das amenas temperaturas de Petrópolis, sentia muito calor. Refrescava-se com um abanico dos índios pataxós. Com isso homenageava seu gigantesco Império tropical e indígena. O Mordomo vinha-lhe agora falar sobre o Sul, esse território gélido, meio castelhano, bárbaro, lugar de guerras e sedições, pouco brasileiro. Disse o Imperador: Vinte anos se passaram. Vinte e um, Majestade. O Mordomo então informou o recebimento de uma petição minúscula, escrita em letra de criança, em que o tal estancieiro pedia o cumprimento da promessa de ser agraciado com o título de Barão da Serra Grande. Sua Majestade lhe teria prometido a mercê ao agradecer a hospedagem. Já sei, já sei... O Mordomo de imediato teve a certeza de que não conseguiria nada. Pediu licença, curvou-se e voltou para seu gabinete, ao lado da Sala dos Despachos. Sentou-se à mesa de trabalho. Batia com os dedos no feltro que recobria o tampo de cedro. Lembrou-se, numa inspiração, do Cro- 12

nista da Casa Imperial. Ele acompanhara D. Pedro ao Sul. Mandou chamá-lo ao Paço. Uma hora depois o homem chegava. Tinha, como se diz, uma certa idade. Era muito magro e triste. Ah! disse o Mordomo, com falsa alegria. Não gostava dele, por esses motivos ignorados. Boa-tarde. Sente-se. Esteja cômodo. Como está passando, Senhor Doutor? Ótimo. Vamos ao ponto: Vosmecê lembra-se de um estancieiro gaúcho chamado Francisco da Silva, a quem Sua Majestade teria prometido o título de Barão da Serra Grande? Pegou o papel, mostrou-o. O Cronista, que se considerava um historiador antes de mais nada, lançou um olhar ao documento. Eram apenas três linhas, em letra de quem começa a aprender as palavras. O Mordomo retomou a petição: Ele escreveu esse requerimento a Sua Majestade, pedindo o cumprimento da promessa. Não se lembra? O Mordomo irritou-se. Como não? Mas Vosmecê não o conheceu quando foi ao Rio Grande do Sul? Vosmecê não se hospedou na estância dele, junto com a comitiva de Sua Majestade? Talvez. Mas isso faz muito tempo. Foram muitos os pousos, e as estâncias são todas iguais. E não vejo razão nenhuma para prestar atenção a uma coisa dessas. Além disso, já não tenho a memória de antes. O Mordomo suspirou. Se o Cronista da Casa Imperial, que deveria escrever e registrar tudo o que sucedia com o Imperador, se o Cronista não se lembrava, o caso ficaria insolúvel. O amanuense veio entregar-lhe um envelope: O portador espera resposta. 13

Luiz Antonio de Assis Brasil O Mordomo quebrou o lacre do brasão episcopal e abriu o envelope. O Bispo Metropolitano fazia ver a Sua Majestade que não deveria desamparar a solicitação de Francisco da Silva. Era um dos católicos mais devotos, e doara uma quantia importante para a conclusão do prédio da Cúria de Porto Alegre. O Mordomo caiu em si: esse maldito Francisco da Silva escrevera para todo mundo na Corte e as cartas haviam chegado ao Rio de Janeiro pelo mesmo barco postal. Mas por que só agora, passados vinte e um anos, se lembrava de reclamar o título? Diga ao portador... falava ao amanuense quem é o portador? Um cônego. Pois diga a esse cônego que o documento terá sua tramitação normal e que Sua Majestade pretende examinálo no menor prazo possível. Quando o funcionário saiu, o Mordomo voltou-se para o Historiador. Esse homem, com sua acusadora magreza, com sua pele de aparência vegetal, com seus cabelos brancos e secos sempre precisando de pente, tinha o olhar abstrato, posto no chão. Pela maneira como unia as sobrancelhas, deveria estar pensando: Aqui precisa um novo tapete. Mas não. Estava atento a seu mal. Um zunir que lhe atormentava os ouvidos, um chiado de mil cigarras. Um concerto obtuso de grilos alucinados que ocupava seus dias. O Mordomo lhe falava: Precisamos esclarecer esse caso, antes que os republicanos tomem conhecimento. Por que não se pergunta ao Bispo? Houve uma impaciente ironia na resposta: 14

Um imperador não pergunta nada a bispos. De fato, o Mordomo detestava aquele homem. Agora descobria por quê: ele sempre dava a impressão de estar longe de onde estava. E ainda era capaz de lhe dizer isso: Pois ignore o requerimento, que é tão grosseiro. Então o Historiador, em meio ao atordoamento de sua nuvem de insetos, precisou escutar uma furiosa resposta: o Império também era constituído por pessoas simples, e todos são súditos de Sua Majestade, e mesmo escrevendo daquele jeito, mereciam a paternal atenção do Monarca. O Mordomo levantou-se: Procure avivar a sua memória. Isso exijo não apenas eu, mas a própria Coroa e, ainda, toda a Nação. Vou consultar meus cadernos de notas. Faça-o logo. Eu, se estivesse naquela comitiva, eu saberia. Se fosse assunto digno da História. Erguendose, pôs o chapéu, pegou a bengala de cana flexível. Preciso de um certo prazo. Informo qualquer novidade. Adeus. 15