cardápio generoso Uma delícia de feira na magia das yabás Celebração à gastronomia negra lota Oswaldo Cruz, que, no ritmo do samba, recebe gente de todo o Rio e garante lucro de até R$ 3 mil às tias que trabalham nas barracas Romana em frente à sua barraca: sucesso permanente fotos de joão filipe vídeo 01:55
Odia chuvoso não era convidativo, mas ainda assim centenas de pessoas compareceram no último domingo à Feira das Yabás, em Oswaldo Cruz, Zona Norte do Rio, berço da mais tradicional escola de samba da cidade, a Portela. Além de ser um ponto de encontro entre os bambas de diversas agremiações, o evento também é uma oportunidade para as matriarcas do samba complementarem a renda familiar com a venda de comidas típicas da culinária negra carioca. Idealizador do evento, o cantor Marquinhos de Oswaldo Cruz observa que as barraqueiras conseguem arrecadar até R$ 3 mil de lucro líquido em apenas uma edição da feira, que é realizada todo segundo domingo de cada mês, na Praça Paulo da Portela. A quantia representa um faturamento anual de cerca de R$ 36 mil. O valor alimenta os sonhos das tias, que esperam abrir seu próprio comércio ou, até mesmo, construir a casa própria. Moro na casa de parentes com minha filha e meus netos, e ainda não tive a condição de construir minha própria casa. Com o lucro da feira, eu vou conseguir fazer isso explicou Tia Nira, responsável pela barraca de peixes fritos. Para esta integrante da Velha Guarda da Portela, a feira trouxe mobilidade social e uma vida com mais qualidade. Antes de ter sua barraca, Tia Nira vivia apenas com um salário mínimo da aposentadoria. O valor de pouco mais de R$ 600 não era suficiente para bancar remédios e um tratamento ortopédico feito na perna esquerda. Selma Candeia, filha do lendário compositor portelense Candeia, também encontrou na feira uma forma de aumentar o orçamento doméstico. Estou juntando o dinheiro para abrir um comércio de comidas típicas. Gosto muito de trabalhar com isso afirmou Selma, dona da barraca que tem como carro-chefe a carne seca com abóbora. O que começou como uma despretensiosa reunião entre amigos de Madureira já ganhou porte de evento turístico. Segundo os organizadores, passam pela Praça Paulo da Portela de sete a oito mil visitantes. No último carnaval, a feira chegou a receber 15 mil pessoas. Além dos residentes do próprio bairro e regiões vizinhas, o encontro já atrai moradores das zonas Sul e Oeste, Região Metropolitana do Rio, outros estados e até de outros países. O italiano Nicola Ventra, a portuguesa Carina Brandão e a francesa Anais Ponty moram em Londres e, de passagem pelo Rio, foram visitar pela primeira vez a feira. Os turistas elogiaram a comida e a música, mas reclamaram do preço das refeições. Provei a feijoada e a rabada e vou indicar para alguns amigos. É uma
passeio pelos irresistíveis quitutes das tias Selma Candeia: Carne seca com abóbora (R$ 18). Outra especialidade da barraca é o pastel de carne seca fotos de joão filipe arraste opção turística para qualquer pessoa se sentir em casa, mas achei os preços um pouco caros. Em Londres, as comidas de mercadinhos como este costumam ser mais baratas comparou Carina, que descobriu a feira através de parentes que moram no Rio. Um animado grupo de seis pessoas, vindo do Rio Grande do Norte, também chamou a reportagem para rasgarem elogios à feira e relatarem seus casos de amor com a Portela, que completou 90 anos na semana passada. A natalense Maria José Freitas optou pelo jiló frito e a feijoada. Adorou. Ela desfilou pela azul e branco em 1989, quando a agremiação levou à avenida o enredo Achado não é roubado. O encanto com a águia guerreira é tamanho, que a potiguar pretende voltar à Sapucaí no ano que vem pela Portela. Lá no Rio Grande do Norte é raro ter uma feira como essa. Geralmente são apenas eventos que envolvem o artesanato da região. Gostei muito da organização e os preços estão ótimos elogiou Maria José. A boa maré de lucros tem reflexo também em todo o comércio da região. França Carneiro é dono de um bar localizado em frente à Praça Paulo do Portela. Embora não esteja diretamente envolvido com a feira, o comerciante vê o faturamento do seu estabelecimento dobrar nos dias em que o evento é realizado. Dona Neném, viúva do lendário compositor Manacéia, tem uma das
barracas mais procuradas na feira: a da rabada com agrião. A decana das barraqueiras, com 88 anos, ainda ajuda na preparação da comida, mas quem toca a tenda são as filhas Áurea, Ana e Eloísa. Mas tia Neném faz questão de frisar: a receita é dela! A gente não tem muito lucro porque a rabada é uma coisa cara. Talvez se fosse outro prato, a gente tivesse mais lucro, mas não podemos vender a rabada muito caro, senão ninguém quer comprar, meu filho explica Neném. Quando Marquinhos de Oswaldo Cruz perguntou o que ela queria vender em sua barraca, dona Neném respondeu: frango com quiabo. O prato, porém, já havia sido escolhido pela tia Rose, mulher de Marquinhos. Após um acordo com as filhas, dona Neném acabou aceitando a sugestão de vender rabada com agrião. A rabada chega até Dona Neném através de um tripeiro, que traz a carne diretamente de um matadouro. Isso deixa o produto mais fresco e aumenta a procura pelo prato. Ela já chegou a vender 80 quilos de rabada em um único dia. Ainda assim, o balanço financeiro no fim da feira nem sempre é animador. Não me fale em lucro, menino! Ainda não dá para ajudar no orçamento doméstico. O nosso produto tem vários complementos: os temperos, o fubá, o agrião. E o tomate, que agora virou o grande vilão da história brinca Áurea Maria, de 61 anos, citando a fruta que melhor espelha a alta inflacionária que se espalhou por diversos produtos alimentícios. Vera de Jesus, que comanda a barraca de doces juntamente com a irmã, também afirma não lucrar muito com a feira. Aqui a gente vem mais por satisfação. Dá para tirar um trocado, mas a satisfação é maior observa a neta de Clementina de Jesus, que se espelha na avó e também sonha em se tornar cantora, mesmo que tardiamente. Para Manuel Thedim, diretor-executivo do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets), a atual situação econômica do país, de quase pleno emprego, tende a diminuir o número de empreendedores. No entanto, na hora do aperto, pessoas com baixa educação formal sempre encontraram um espaço para ganhar dinheiro de forma inovadora, com uma habilidade especifica demandada pelo mercado. De uma maneira geral, o mais comum é o empreendedorismo de necessidade, não o de oportunidade. Na verdade, a maioria desses empreendedores de baixa renda gostariam mesmo é de ter um emprego de carteira assinada. O que é impressionante é a capacidade dessas pessoas de encontrarem a oportunidade de se virar! Isso ocorre de forma espontânea avalia ele.
sem acarajé mães rainhas Yabás é um termo de origem africana, da tribo Yorubá, e significa mães rainhas. Refere-se à Yemanjá (deusa das águas do mar) e à Oxum (deusa das águas doces), mas, no Brasil, engloba todas as orixás femininas. A feira foi criada em 2008, mas deixou de ser realizada em 2010, por falta de patrocínio. Nos dois primeiros anos, contou com renúncia fiscal dos ministérios do Turismo e de Políticas para as Mulheres. Segundo Marquinhos de Oswaldo Cruz, mais de mil pessoas se mobilizaram num abaixo-assinado para a feira voltar. Deu certo. No ano passado, a partir de um decreto municipal, a feira reestreou com um patrocínio anual de R$ 700 mil da prefeitura. Também já está acertado com o município que o evento continuará por, pelo menos, mais dois anos. O decreto liberou alvarás para a instalação de 16 barracas na rua, mas sempre existem mais pessoas querendo montar uma tendinha. A expansão não tem andamento, segundo os organizadores, para não descaracterizar a feira. Isso aqui é uma feira de gastronomia negra carioca. A gente não tem acarajé, por exemplo, e sempre tem alguém pedindo pra botar explicou Marquinhos. As barraqueiras preenchem alguns requisitos para estarem ali. Todas são da região de Oswaldo Cruz e Serrinha, têm alguma ligação com o samba, e servem uma comida típica dos tradicionais encontros de bambas. Tia Nira é filha de um dos fundadores da Portela e, ao escolher qual produto serviria na feira, procurou preservar a tradição da família. O pai dela, Carlos Batista de Oliveira, era conhecido na região como o Jaburu do Peixe, por causa da venda do pescado. A fama era tamanha que ele foi o responsável por ensinar a atividade ao compositor Monarco, uma das atrações da última edição da Feira das Yabás. Na juventude, o baluarte portelense vendeu palhas de aço e também foi peixeiro. A tradição da minha comida vem do meu pai, que vendia peixe em feiras livres aqui da região de Madureira. Ele foi um dos fundadores da Portela e integrante da Velha Guarda. Estou aqui seguindo os passos dele e preservando sua memória recordou Tia Nira. ogloboamais@oglobo.com.br