NO TETO DO MUNDO Leia com exclusividade um trecho do livro em que Rodrigo Raineri narra sua jornada rumo ao cume do Everest. Lançamento em setembro de 2011
Plaza Francia, face sul do Aconcágua, Argentina 26 de dezembro de 2001 22h Meu querido filho, Acabo de jantar e estou preparado para enfrentar o maior desafio da minha vida! Mesmo concentrado nele, não paro de pensar em você um só minuto. Todos os dias, olho nossas fotos. Isso me faz muito bem. Você é tão pequeno ainda! Às vezes penso que é egoísmo dedicar-me a expedições tão longas e sinto- -me péssimo, mas sei que viajando terei muitas histórias para contar e muitos lugares para lhe mostrar um dia. Acho que você me entenderá quando crescer. Sinto muitas saudades! Em alguns momentos penso no que seria de você se eu morresse, se eu não voltasse mais. Tenho certeza de que você se sairia muito bem, apesar da dor de não me ter presente... Não imagine que seu pai é louco, maluco ou qualquer outro adjetivo que talvez venha a escutar, porque não é verdade. Para algumas pessoas, desafios são desafios, e, não importa quais sejam, elas têm de enfrentá-los: a vitória é o enfrentamento, quer a gente saia ileso, quer não. Por isso, quero deixar bem claro que meu amor por você é a coisa mais importante da minha existência! Quero vê-lo crescer, e que possamos viver muitas aventuras juntos. Quero acompanhar você em cada momento de sua vida, todos muito especiais. Por tudo isso estou tentando esta escalada, e porque tenho 99% de certeza de que vou sair ileso. Se eu não voltar, gostaria que você continuasse pensando em mim e tendo a certeza de que seu pai nunca quis que isso acontecesse. Eu nunca o abandonaria, em hipótese alguma! Você é a melhor coisa que me aconteceu na vida, e nem mesmo escalar a face sul do Aconcágua ou qualquer outra montanha do mundo é maior do que nossa ligação. Se algo der errado, foi porque Ele (Deus) ou Ela (a montanha) quis assim. Estarei sempre junto de você! Se não for assim, perdoe-me. Amo muito você. Muito mesmo! Rodrigo Raineri 2 12
E stava deitado sobre meu colchonete isolante térmico, dentro do saco de dormir. Acabara de escrever uma carta para meu filho ele completaria cinco meses de vida dois dias depois. A vida inteira cruzava pela minha cabeça num turbilhão, as imagens passando ora muito rápidas, ora em câmera lenta. As memórias surgiam e davam lugar a outras em alta velocidade. Revivia cada momento da minha existência e me emocionava profundamente; até que um estalo, um barulho de gelo quebrando, trouxe meus pensamentos de volta ao presente. Era o impressionante ruído de uma avalanche na face sul do Aconcágua. Ansioso, desvencilhei-me do saco de dormir, abri o zíper da barraca e tentei localizar o deslizamento. O vento gelado das grandes altitudes bateu no meu rosto. Na encosta à frente, de 3 quilômetros de altura, varrendo o que houvesse pelo caminho, despencavam milhares de toneladas de gelo, grandes blocos misturados a pequenos fragmentos, erguendo uma nuvem alva de beleza e destruição. Um espetáculo formidável e aterrador. Se alguém estivesse na trajetória da avalanche, repousaria para sempre no seio do Aconcágua. Deixei a carta, que escrevi com os dedos endurecidos pelo frio da montanha, com Guilherme Setani, o Totó, para que ele a entregasse ao meu filho caso algo saísse errado. Totó é um guia de montanha que trabalhava em minha empresa de atividades outdoor, em Campinas. Ele havia ficado no acampamento base nos esperando e dando apoio durante a escalada. Se tudo corresse bem, como todos nós esperávamos, eu pegaria a carta de volta. Mal comparando, dei a Totó uma tarefa parecida com a dos oficiais dos filmes americanos que levam a notícia da perda de um soldado à família. Um toque de campainha, uma saudação solene e respeitosa, a tristeza. A semelhança, porém, termina aí, no ritual. Para mim, subir uma montanha nunca teve uma conotação trágica, de sacrifício. Ao contrário. Aquele era um momento de alegria e concentração. Estávamos a poucos dias de atingir o cume de 6.962 metros de altitude, o mais elevado do continente americano, utilizando a rota mais difícil e desafiadora. Seríamos os primeiros brasileiros a fazê-lo. A carta nunca precisou ser entregue. 13 3
Seis anos e cinco meses depois, encolhido dentro de uma barraca coberta de neve, a 8.000 metros de altitude, com os pulmões ardendo e ofegante, tornei a sentir aquela sensação já conhecida: um estado de alerta extremo e naufragado em lembranças, emoções e sentimentos muito fortes. Estava no acampamento 4 do monte Everest, o último antes do trecho final que se usa para atingir o cume da montanha pelo lado sul, no Nepal. A data: 26 de maio de 2008. As condições climáticas estavam ruins, e era preciso aguardar que elas melhorassem para iniciar a escalada final. A espera já durava várias horas. O pensamento da carta que eu escrevera logo após o Natal do ano de 2001 não me deixava. Apesar de estar na encosta da montanha mais alta do planeta, tinha consciência de que enfrentaria, desta vez, riscos menores do que os superados naquele ano. Toda montanha oferece mais de um caminho em alpinismo, dizemos via para chegar ao seu topo. O percurso menos difícil até o cume é chamado de via normal. Enquadra-se nessa categoria a face noroeste do Aconcágua, onde existe uma rota de ascensão suave até o ponto mais alto da montanha. Ou seja, chega-se ao pico caminhando. Nesse caso, os maiores desafios a serem vencidos são o clima e o ar rarefeito. Já a face sul é um paredão vertical de rocha e gelo de 3.000 metros de altura. Na primeira vez que vi aquele gigantesco penhasco, em 1993, pensei: Só doido para escalar isso aí. Em alguns momentos, é preciso literalmente avançar agarrado ao teto como uma lagartixa, pois a já difícil subida em 90 graus dá lugar a trechos de rocha ou gelo com inclinação negativa. Um passeio a pé de 3 quilômetros no terreno plano do Parque Ibirapuera, em São Paulo, dura em média 30 minutos. Para vencer a mesma distância na vertical, usando as mãos para se apoiar nas frestas da rocha ou cravando a piqueta no gelo para puxar o corpo para cima, são necessários cinco dias. É quase uma semana sem sentir um apoio firme sob os pés e dormindo pendurado como um casulo de borboleta, em barracas especiais afixadas por cordas e pinos presos à pedra e ao gelo. Detalhe importante: durante boa parte da escalada, sobem-se muitos metros sem ter onde prender a corda de segurança. Quando enfrentei a face sul com meu parceiro, o multiatleta paulista Vitor Negrete, houve momentos em que o ponto de apoio mais próximo da corda à qual estávamos presos estava 40 metros abaixo de onde eu me encontrava. Se eu despencasse dali, sofreria uma queda de 80 metros (40 até o ponto onde a corda estava presa, segurada pelo freio de Vitor, mais 40 até ela esticar), o equivalente a um prédio de 25 andares. No caso de eu cair, ficaria pendurado, mas provavelmente sem vida. Além de tecnicamente difícil, a face sul é um 4 14
percurso cheio de imprevistos naturais: vez ou outra, pedaços de rocha podre (que se desmancha com o peso do corpo) ou blocos de gelo do tamanho de uma Kombi se soltam e levam junto para o abismo o que quer que esteja preso a eles. Tudo isso, somado ao frio intenso e aos ventos fortes, faz da face sul do Aconcágua uma das escaladas mais difíceis do mundo. Pouquíssimas pessoas venceram esse desafio. Os riscos do Everest são de outra ordem. A montanha fica exatamente na divisa entre o Nepal e o Tibete, território pertencente à China. Há pelo menos oito vias conhecidas para chegar ao topo do mundo, mas as mais populares são a aresta sudeste, do lado nepalês, e a aresta nordeste, do lado tibetano. Em ambas, as escaladas não são nem de longe tão íngremes como a face sul do Aconcágua. Mas oferecem outros perigos. O primeiro é a altitude. O Everest é quase 2.000 metros mais alto que o Aconcágua. O acampamento base do lado nepalês, por exemplo, utilizado pelas expedições como ponto de apoio para a escalada, fica a 5.300 metros acima do nível do mar e 1.000 metros a mais do que a Plaza Francia, de onde se parte para a escalada da face sul do Aconcágua. Esse dado é relevante porque a baixa concentração de oxigênio nessas altitudes provoca um grande desgaste no corpo humano. Uma simples caminhada de uma barraca a outra deixa a maioria dos alpinistas treinados sem fôlego. Acima de 8.000 metros começa a chamada zona da morte, onde a proporção de oxigênio é apenas um terço da encontrada no nível do mar. Esse ar rarefeito já basta para causar diversas complicações de saúde que podem levar à morte se a pessoa não for medicada e levada a tempo para um lugar mais baixo. A melhor maneira de minimizar esse problema é fazendo uma boa aclimatação, como é chamado o processo de adaptação lenta do corpo à altitude. O segundo fator de risco no Everest é o frio. A 8.000 metros, a temperatura dentro da barraca pode ficar abaixo dos 20 C negativos. Fora do abrigo, a sensação térmica pode ser de até 70 C negativos, se estiver ventando muito forte. Submetido ao frio extremo, o metabolismo gasta cerca de 6.000 calorias por dia apenas para manter o corpo aquecido (em condições normais, um adulto precisa de pouco mais de 2.000 calorias diárias). Muitos alpinistas relatam perda de peso só de ficar descansando no acampamento base, por causa do frio e do ar rarefeito. O terceiro perigo da montanha mais alta do mundo são as avalanches. Em alguns trechos, principalmente na cascata de gelo do Khumbu e na face do Lhotse (um pico de 8.516 metros de altitude ao lado do Everest), pedras e grandes massas de gelo e neve podem movimentar-se e deslizar pela encosta a 190 quilômetros por hora. Ser atingido por uma avalanche dessas é pior do que ser atropelado por uma jamanta em alta velocidade. 15 5
A logística escolhida por mim para as escaladas do Aconcágua e do Everest também foram distintas. Para subir a face sul da montanha argentina, Vitor e eu utilizamos o estilo alpino um método purista de atingir um pico que, como o próprio nome diz, foi popularizado nos Alpes, a principal cordilheira da Europa. Trata-se de uma escalada minimalista, em que se utiliza o mínimo de equipamento possível, e não há ninguém para carregá-lo além do próprio atleta. Ou seja, não há apoio externo. Vitão e eu subimos o paredão do Aconcágua com apenas uma corda, poucos equipamentos de segurança, uma pequena barraca, um fogareiro e alguns pacotes de comida pronta. Só isso. Um ano antes, havíamos tentado vencer o desafio com duas cordas e muitos equipamentos de segurança: ficou pesado demais, e, para piorar, o gelo estava derretendo além do normal, possivelmente como efeito do aquecimento global. Acabamos desistindo. Para chegar ao cume do Everest, optei, como quase todo mundo faz, pelo estilo expedição. Nessa forma de escalada, os atletas têm o respaldo logístico de diversos profissionais, de cozinheiros a carregadores e guias auxiliares de montanha, e algumas centenas de quilos de equipamentos. A equipe de apoio monta vários acampamentos ao longo da rota que será utilizada para chegar ao pico. Assim, quando um alpinista ou sherpa sai de um acampamento para outro, já encontra lá sua barraca montada, com fogareiro e comida. No percurso entre os acampamentos, é bem provável que ele possa utilizar cordas e escadas que foram colocadas pelos alpinistas sherpas, um povo nepalês conhecido por sua força e sua resistência à altitude, para vencer os trechos mais complicados. Nos lugares mais íngremes onde já há corda fixa, é possível prender-se a ela e puxar o corpo para cima, como o Batman, com um equipamento chamado de blocante ou, popularmente, jumar. Trata-se de um aparelho de alumínio que, ao ser empurrado para cima, desliza na corda e, ao ser puxado para baixo, trava. Escalar o monte Everest no estilo alpino, contudo, sem nenhuma das mordomias citadas acima, exige quase tanta técnica quanto subir a face sul do Aconcágua. O vento de 70 quilômetros por hora sacudia a barraca e jogava gelo em meu rosto, aguçando meu estado de alerta extremo. No dia anterior, 25 de maio de 2008, eu tinha presenciado a volta da expedição que levou Min Bahadur Sherchan, um nepalês de 76 anos, ao cume do Everest o homem mais velho a conquistar esse feito. Um dos alpinistas contratados para acompanhá-lo teve todos os dedos das mãos congelados, e, por isso, teriam de ser amputados. As condições 6 16
climáticas eram realmente ruins. Por causa delas, eu precisava tomar uma decisão vital: manter ou não meu plano de subir os 850 metros verticais restantes até o pico sem o auxílio de cilindros de oxigênio. O sherpa que acompanhou o senhor Bahadur tivera a vantagem de contar com oxigênio suplementar, e, apesar disso, suas extremidades congelaram. Sem esse equipamento, o risco de isso acontecer comigo era ainda maior, porque o meu ritmo de ascensão seria mais lento, e eu teria menos energia e ficaria mais tempo exposto às baixíssimas temperaturas da montanha. Eu estava certo em pensar que já havia enfrentado perigos maiores em minha carreira. Nem por isso estava menos tenso e apreensivo. As certezas racionais nem sempre se sobrepõem às certezas da emoção. E isso é bom, porque se trata de uma expressão do nosso instinto de sobrevivência. A situação em que me encontrava naquele momento não dava espaço para excesso de confiança. Algum passo em falso ou qualquer fenômeno incontrolável, como um movimento do gelo sob a minha barraca, poderia significar o meu fim. Muitas vezes, a confiança excessiva na própria experiência arrastou bravos escaladores montanha abaixo: um erro que não durou mais do que décimos de segundo, uma decisão entre se agarrar um palmo mais à direita ou à esquerda, um bloco de gelo que se desprende... A natureza ou os meus próprios atos, portanto, poderiam conspirar contra mim. Minhas conquistas passadas não serviam como garantia de que tudo sairia como o esperado. Outra sensação já conhecida era a de estar mais sozinho do que nunca naquela imensidão branca, apesar de eu liderar uma equipe que incluía o meu parceiro, o cirurgião plástico paulista Eduardo Keppke, e quatro alpinistas sherpas. Na escalada de uma montanha como o Everest ou o Aconcágua, temos de cuidar de nós mesmos e também estar prontos para ajudar alguém da equipe sempre que possível. O sentimento de solidão se explica porque, sendo o mais experiente e o chefe da expedição, eu era em grande medida responsável por todos. Eu tinha de ser autossuficiente e, ao mesmo tempo, tomar decisões pelos outros. Nem a companhia de centenas de amigos faria diminuir o desamparo inerente àquela situação. Talvez por isso, também, tantas lembranças do Brasil, da minha carreira, da minha infância e da minha família me viessem à mente. A memória mais persistente, que brotava em meio às outras, lembrança sim, lembrança não, era a da minha última expedição ao Everest, em 2006. Foi quando perdi para sempre Vitor Negrete, o meu melhor parceiro e amigo por 18 anos. 17 7
8 Um dos alpinistas mais experientes e bem-sucedidos do Brasil, Rodrigo Raineri, narra, com Diogo Schelp, suas experiências nas quatro expedições (em 2005, 2006, 2008 e 2011) para alcançar o cume do monte Everest, a 8.848 metros de altitude. Em No teto do mundo, o leitor vivenciará em detalhes todas as dificuldades enfrentadas por Raineri em sua escalada, como as dificuldades climáticas extremas, com o frio intenso; e a infraestrutura precária, responsável muitas vezes por problemas de saúde. Mais do que apenas um relato, o livro fala sobre vencer os próprios limites; de superar as adversidades; da dor de perder o companheiro Vitor Negrete parceiro de muitas escaladas para a montanha; de saber que o Everest não é uma montanha qualquer, é Chomolungma, a Deusa Mãe do Mundo, e pode ser implacável com aqueles que a desafiam. É, sobretudo, um livro sobre a perseverança, a coragem e a amizade para superar os desafios e conquistar o teto do mundo!