Peri, o nosso Quasímodo



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Transcrição:

Peri, o nosso Quasímodo Vagner Coletti 1 1 Faculdades Integradas Fafibe Bebedouro SP letrasvagner@geniusonline.com.br Abstract. This paper compares the characters Peri (José de Alencar s O Guarani) and Quasímodo (Victor Hugo s Notre-Dame de Paris), trying to show how they re similar by the grotesque characteristics. It intends to analyse how Brazilian romantic writers conserve an European inspiration to create their characters, even when they tried to avoid it. Keywords. Brazilian Romantism; Grotesque; José de Alencar. Resumo. Este artigo tem como objeto a comparação das personagens Peri (do romance O Guarani, de José de Alencer) e Quasímodo (de Notre-Dame de Paris, de Victor Hugo), tentando aproximá-las pelas características grotescas. Pretende-se também esboçar alguns pontos de análise a respeito dos motivos que levaram os escritores românticos brasileiros a um olhar ainda tipicamente europeu, mesmo pretendendo o contrário. Palavras-chave. Romantismo Brasileiro; Grotesco; José de Alencar. 1. A obra máxima de Victor Hugo O século XIX legou à contemporaneidade três das mais horripilantes criaturas que, a despeito de nascerem na literatura, parecem ter caído no gosto popular dos séculos XX e XXI a partir do cinema: o monstro do Dr. Frankenstein, Drácula e Quasímodo. Tirando o pendor byroniano que ronda o famoso vampiro (e também o monstro do doutor, é o que poderiam dizer alguns entendidos em psicologia), sobra-nos aquele que é de todo desprovido de charme (apesar de Disney ter diminuído sua bizarria e sua tragédia em um desenho): Quasímodo, o sineiro feio, corcunda e surdo, a mais interessante das personagens criadas por Victor Hugo. O romance Notre-Dame de Paris, publicado em 1831, passa-se realmente no ano de 1482. A trama gira em torno de duas pilastras fundamentais: a própria catedral e o sineiro. Poder-se-ia inclusive dizer que Notre-Dame é a personagem principal do romance, enquanto que Quasímodo é um de seus órgãos: um braço, um olho, ou uma garganta, já que os sinos só dobram em suas mãos. Trata-se de uma relação de ganhos e perdas: os sinos deixam Quasímodo surdo, e a catedral tem a chance de gritar pelo vigor do corcunda. Ao mesmo tempo, a catedral serve-lhe de mãe e de protetora. Dá-lhe, com a fachada exuberante, por exemplo, o rosto sublime que da qual o pobre ser é carente. Ao mesmo tempo em que o esconde dos demais, parece orná-lo com respeito. O romance se desenrola dentro de uma teia complicada de interesses e paixões: Febo, Cláudio Frollo, Gringoire e Quasímodo rendem-se ao amor da cigana Esmeralda. Esta relação

tempestuosa acaba sempre por trazer a morte, bem ao gosto romântico, mas não sem antes apresentar, por vários momentos, combinações interessantes: um bom exemplo disso é o amor de Frollo por Esmeralda, movido também pelo ódio e pelo pecado. Já o corcunda possui uma conexão muito mais próxima com a moça, mais do que o próprio imagina: quando ainda eram bebês, foram trocados; sofrem do mal da exclusão social, e praticamente morrem juntos: o sineiro atira-se ao suicídio tendo nas mãos o seu objeto de fascínio já imóvel. 2. Bocatorta Em geral, quando alguém se remete à literatura brasileira para encontrar resquícios de Quasímodo, encontra como exemplo o horripilante Bocatorta, personagem do conto homônimo, da coletânea Urupês (Monteiro Lobato). Sua deformidade e sua tendência necrófila tornam sua figura mais obscura que a do sineiro de Victor Hugo, porém nada nos garante que Bocatorta tenha más intenções quando, no final do conto, desenterra a virgem para beijá-la. A sua morte é um resultado desse amor, assim como no caso do corcunda: acuada pelo pai e por Eduardo (noivo de Cristina), a criatura morre afogada no terrível atoleiro que conhecera a vida toda: sua catedral. O narrador, descrevendo o dia que se seguiu após a tragédia, sugere uma singeleza e uma pureza ímpares: Nada mais lembrava a tragédia noturna, nem denunciava o túmulo de lodo açaimador da boca hedionda que babujara nos lábios de Cristina o beijo único de sua vida. (LOBATO, 1956, p. 231) A descrição de Bocatorta, feita pela personagem Vargas a Eduardo, na sua simplicidade de homem do campo, é um dos mais interessantes exemplos de manifestação grotesca em nossa literatura: há uma junção perfeita entre o obscuro, o bizarro e o cômico: O doutor quer saber mesmo como é o negro? Venha cá. Vossa Senhoria garre um juda de carvão e judie dele; cavoque o buraco dos olhos e afunde dentro duas brasas alumiando; meta a faca nos beiços e saque fora os dois; ranque os dentes e deixe só um toco; entorte a boca de viés na cara; faça uma coisa descoforme, Deus que me perdoi. Depois, como diz o outro, vá judiando, vá entortando as pernas e esparramando os pés. Quando cansar, descanse. Corra o mundo campeando feiúra braba e aplique o peor no estupor. Quando acabar garre no judá e ponha rente de Bocatorta. Sabe o que acontece? O juda fica lindo!... (idem, p. 217) A relação entre Cristina e Bocatorta é mais obscura do que parece à primeira vista, e renderia uma boa análise (inclusive por um viés psicológico): a repulsa e o medo desde a infância, a doença misteriosa que a moça parece ter contraído ao simplesmente ver a criatura, o seu definhamento silencioso até a morte, e o beijo bizarro. O destino de ambos é ligado apenas no ato final do túmulo, mas há a sugestão de algo mais: o monstro parece representar para Cristina um medo maior, mais mítico, além da própria feiúra vista no pântano. 3. Peri Mas nosso objeto de estudo é outro: comparar Peri, do romance O Guarani (José de Alencar) com o sineiro de Notre-Dame de Paris. Trata-se uma comparação que precisaria ser melhor elaborada, posteriormente, a partir de uma análise muito mais profunda do que as linhas breves desse artigo pretendem, dado o senso de absurdo da afirmação em um primeiro contato: dizer que o índio está próximo de Quasímodo é quase como incorrer em uma heresia literária. Para entendê-la, temos que atentar para um ângulo de comparação que não seja tão somente o da beleza exótica (Peri) e o da feiúra (Quasímodo). Isso valeria inclusive para a personagem de Lobato: Bocatorta liga-se ao sineiro por suas deformidades (neste quesito,

supera a criatura de Victor Hugo, inclusive), mas estamos no campo das manifestações grotescas, e isso muitas vezes leva a equívocos. Um deles é achar que o grotesco é a voz do que há de feio na Arte. Nada mais falso: ele não caminha apenas pelo lado do horrível, negando o belo, o harmonioso e o sublime. Pelo contrário, sugere o diálogo: o próprio escritor francês já reivindicara que as manifestações grotescas deveriam estar no mesmo patamar de valor que as obras apolíneas. Assim, o beijo de Bocatorta em Cristina, sublime e bizarro ao mesmo tempo, choca mais que a criatura em si. Isso acontece porque o grotesco não rejeita o belo. Funde-se a ele para mostrar a sua falibilidade: é quase como um riso de escárnio frente à intenção humana de buscar a perfeição a qualquer custo. Nada pode ser tão perfeito a ponto de não ser tocado, em algum momento de sua história, pelo rótulo do grotesco. Pensemos na Vênus de Milo que hoje, sem seus braços e já corroída pelos anos, perde parte de sua exuberância a uma deformação que a aproximaria até do próprio Quasímodo. A beleza está lá, mas o tempo e a história se encarregaram de mostrar o quanto ela é falível e passível de transição. Quanto a Peri, o grotesco fica evidente quando pensamos nas intenções de Alencar ao criá-lo, mas não sem antes pensar na própria escola na qual a obra surgiu. O Romantismo, nascido na Europa como uma resposta às conclusões falhas do Iluminismo e do próprio Renascimento, funcionou quase como um grito de revolta frente ao fato de que o homem não conseguiria ser feliz simplesmente pela razão e pela inteligência. Havia então a necessidade de um novo caminho que retomasse aquilo que, de certa forma, fora rejeitado: o sonho, a emoção, Deus. O movimento parece ter surgido quase que naturalmente, porque foi uma conseqüência da busca incessante do homem pela liberdade e pelo conhecimento. Antes de aparecer na literatura, ou em qualquer tipo de manifestação artística, a filosofia já o apontava. A arte apenas tratou de coá-lo a seu modo. Sabe-se que os alemães foram os pioneiros na arte e no pensamento romântico mas, se eles não existissem, seriam outros: o movimento configura-se como uma resposta lógica e natural às linhas de pensamento que regiam o ocidente até o século XVIII. Pensando deste modo, fica fácil chegar a uma explicação plausível quanto a algumas de suas peculiaridades, como o apego à cultura medieval e ao próprio cavaleiro: retomar aquilo que o pendor humanista do século XVI e dos seguintes quiseram sufocar, ou seja, o sistema feudal, com sua mística, sua religiosidade, e sua suposta simplicidade. Recorrendo a uma comparação simplista, pode-se dizer que o Romantismo europeu é quase como uma planta nascida a partir de uma semente, dado o pendor quase que natural de seu surgimento. Já isso não parece ter acontecido no Brasil, onde o Romantismo parece (usando a mesma comparação) como uma planta de enxerto: o que foi todo um movimento (no sentido mais literal possível) rumo à busca pela emoção e ao sentimento (supostamente perdidos) nos chegou na forma de arte importada, trazida por alguns jovens intelectuais que, antes de conhecer a terra natal, gastaram seus primeiros anos na boemia da Europa. É difícil imaginar o Romantismo como uma resposta nova aos nossos problemas existenciais enquanto brasileiros, mesmo quando pensamos na independência. Basta nos lembrarmos que aqueles que mais precisavam da tão apregoada liberdade romântica, os negros, só a teriam (se é que é realmente a teriam) no final do século XIX. O Romantismo nos chegou deformado, assim como Quasímodo. Na Europa, manifestações populares aconteceram sob a égide da liberdade, igualdade e fraternidade. No Brasil, o movimento ficou muito mais restrito, entregue a um grupo de intelectuais e de letrados: gente que, quando resolveu voltar os olhos míopes pela europeização para os oprimidos de nossa terra, parece ter criado seres grotescos semelhantes ao sineiro de Notre- Dame. Penso aqui no grotesco enquanto fator de exagero e de composição inusitada feita de elementos díspares, mesmo quando o resultado parece ser o belo. Assim, quando Visconde de Taunay vai buscar no sertão a sua inspiração para criar a heroína Inocência, perde a

oportunidade de brindar a literatura nacional com uma personagem realmente brilhante, tudo porque dá atributos quase que urbanos àquela que, justamente por viver em um meio tão hostil, se assemelharia mais a Sinhá de Graciliano Ramos, ou aos personagens fabulosos de Guimarães Rosa, como Diadorim. Inocência é tão inocente e tão isolada do próprio ambiente em que vive que não sabe nem mesmo o que é amor. O resultado hoje nos soa cômico (pra não dizer bizarro). Isso nos sugere muitas vezes que o que move os nossos românticos não é nada mais do que o pendor para o exótico. Dizer que Alencar criou Peri para valorizar o índio e os valores nacionais, é oferecer apenas uma parte da resposta para o problema: movido por exemplos edificantes como o de Chateaubriand e, talvez, Walter Scott, o escritor brasileiro parece se revestir de um ponto de vista ideológico europeu que ainda muito se assemelha ao do cronista das navegações, que vê o índio como um objeto de exotismo. Assim, Peri, meio índio, meio cavaleiro da Idade Média, oscila sentimentos da mesma forma estranhos. Sua primeira aparição é uma prova de sua força descomunal, mesmo frente a uma onça (que Alencar chama muitas vezes de tigre ): Esta luta durou minutos; o índio, com os pés apoiados fortemente nas pernas da onça, e o corpo inclinado sobre a forquilha, mantinha assim imóvel a fera, que há pouco corria a mata não encontrando obstáculos à sua passagem. (ALENCAR, 1984, p. 30) Mas, assim como o sineiro que, robusto e vigoroso com os sinos, rende-se em candura frente à Esmeralda, o índio deixa de ser o feroz caçador e torna-se um frágil cativo do amor de Cecília. A moça o repreende por ter se arriscado ao buscar a onça para que ela a veja: Isto não é razão, continuou ela; porventura um animal feroz é a mesma coisa que um pássaro, e apanha-se como uma flor? Tudo é o mesmo, desde que te causa prazer, senhora. Mas então, exclamou a menina com um assomo de impaciência, se eu te pedisse aquela nuvem?... E apontou para os brancos vapores que passavam ainda envolvidos nas sombras pálidas da noite. Peri ia buscar. A nuvem? perguntou a moça admirada. Sim, a nuvem. Cecília pensou que o índio tinha perdido a cabeça; ele continuou: Somente como a nuvem não é da terra e o homem não pode tocá-la, Peri morria e ia pedir ao Senhor do céu a nuvem para dar a Ceci. Estas palavras foram ditas com a simplicidade com que fala o coração. A menina que um momento duvidara da razão de Peri, compreendeu toda a sublime abnegação, toda a delicadeza de sentimento dessa alma inculta. (idem. p. 59) Rigidez e candura, domínio e falta de jeito... Peri é formado por poções disformes dessas essências quando lida com as coisas que mais venera: a natureza e Ceci. Sua catedral de árvores e feras se rende à sua maestria, seu conhecimento e seus músculos. Se Quasímodo faz ecoar pela velha Paris os pesados sinos de Notre-Dame, Peri consegue arrancar uma palmeira com sua força sem precedentes. Mas a força de nada vale diante de um outro tipo de templo: o amor. Esmeralda e Cecília dominam os ímpetos de brutalidade e selvageria, e desperta neles a fragilidade, a carência afetiva. Os dois heróis são, então, homens e crianças, num desequilíbrio que só pode ser explicado pelo próprio senso paradoxal que as paixões, por vezes, possuem. Mas o exagero leva ao grotesco, de uma forma ou de outra: mais visivelmente no sineiro, mais velado pela beleza exótica no caso do índio. Como já foi dito, uma manifestação grotesca não requer necessariamente a condição de feiúra para conseguir causar choque ou estranhamento: um livro velho e maltratado pode ser feio, mas não grotesco. Uma estátua antiga e bela, porém maltratada, pode ser considerada sombria e bizarra. O fio que liga a beleza ao grotesco é tênue, e o exagero das misturas quase

sempre tende à deformidade, justamente porque o belo pede quase sempre o seu senso de harmonia e equilíbrio. Peri, por essa razão, pode ser visto como uma entidade também bizarra: sua beleza em desequilíbrio dialoga com a estranheza, e seus sentimentos de amor (de uma ingenuidade pueril) batem de frente com suas habilidades indígenas. Fica o efeito: o exotismo que, mesmo para uma sociedade pseudoparisiense como a carioca do século XIX, tem o seu toque de algo diferente. E ser diferente não é, de alguma forma, pender para o grotesco? 4. Iracema Alencar consegue um resultado melhor quando cria sua Iracema, justamente porque a índia tem, na suas descrições, aquela que talvez seja a mais brasileira de todas as características do Romantismo: aproximar nossa fauna e nossa flora da beleza da mulher. Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo, da grande nação tabajara. O pé grácil e nu, mal roçando, alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas. (...) Iracema saiu do banho; o aljôfar d água ainda a roreja, como à doce mangaba que corou em manhã de chuva. Enquanto repousa, empluma das penas do gará as flechas de seu arco, e concerta com o sabiá da mata, pousado no galho próximo, o canto agreste. (ALENCAR, 1995, P. 21) Essa junção entre a beleza silvestre e a mulher pode ser vista em outros escritores, como Castro Alves. No belo poema Lúcia, por exemplo: Morena, esbelta, airosa... eu me lembrava Sempre da corsa arisca dos silvados Quando via-lhe os olhos negros, negros Como as plumas noturnas da graúna; Depois... quem mais mimosa e mais alegre?... Sua boca era um pássaro escarlate Onde cantava festival sorriso. (ALVES, s.d, p. 138) Parece ecoar aqui a leitura do romance de Alencar por parte do poeta, por mais que ele descreva uma negra de uma fazenda da infância. Esse fascínio não é gratuito: Iracema é diferente das outras heroínas românticas, é pura poesia. É quase como a própria mata brasileira que canta e anda. E não deveria deixar de ser: a virgem configura-se como uma parte na fusão que, segundo o romancista, daria origem ao primeiro cearense. A morte de Iracema é, por isso mesmo, singular e sugestiva. Tocada pelo português Martin, ela já não é mais a virgem responsável pela jurema, a bebida mística. Foge da tribo de seu pai e foge de sua raiz. Está corrompida. Ao mesmo tempo, já não pode seguir para além-mar, porque também não é branca, não é européia, mesmo tendo como escudo o seu amor. Resta-lhe a praia, a divisa entre a mata e o mar agora estrangeiro, português. Ali nasce o seu filho Moacir, o filho do sofrimento, de moacy (dor), e ira (saído de). A virgem da jurema pode ser considerada uma beleza mais genuinamente brasileira, como pretendia Alencar com suas personagens, por mais que o exotismo ao gosto europeu também a contemple. Ela é um resultado de uma evolução descritiva de Alencar, que nada mais fez do que tirar as sobras e as arestas que acentuavam as irregularidades que estavam em Peri, aproximando-a mais do agreste, do bruto (e por isso mesmo belo).

Talvez o próprio Alencar compreendera que o guarani, arrancando árvores e matando onças, estaria mais próximo da selva de concreto de cidades como Paris ou Londres do que do Brasil selvagem, deserto e inculto (ALENCAR, 1984, p. 14) 5. Referências bibliográficas ALENCAR, José de. O Guarani. São Paulo: Círculo do Livro, 1984.. Iracema. Rio de Janeiro: Ediouro, 1995. ALVES, Castro. Poesias Completas. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d. HUGO, V. Notre-Dame de Paris. Porto: Lello & Irmão, 1967.. Do grotesco e do sublime (tradução do Prefácio de Cromwell). Trad. Célia Berretini. São Paulo: Perpectiva, 1988 KAYSER, Wolfgang. O grotesco - configuração na pintura e na literatura. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Editora Perspectiva, 1986. LOBATO, M. Urupês. São Paulo: Brasiliense, 1956.