A Recepção de Brecht em Portugal antes de 25 de Abril de 1974



Documentos relacionados
MEU BRASIL BRASILEIRO. Fui ao Brasil pela primeira vez para assistir ao Carnaval. do Rio. Era o tempo de Salazar em Portugal e em que se falava

Estruturando o Pré Projeto

Pesquisa x Pesquisa. do Setor Editorial Brasileiro revelou uma venda de quatro bilhões de reais em livros, com

Daniel Chaves Santos Matrícula: Rio de Janeiro, 28 de maio de 2008.

Terra de Gigantes 1 APRESENTAÇÃO

A DOMINAÇÃO JESUÍTICA E O INÍCIO DA LITERATURA NACIONAL

O PIPE I LÍNGUAS ESTRANGEIRAS

SINCOR-SP 2016 ABRIL 2016 CARTA DE CONJUNTURA DO SETOR DE SEGUROS

PED ABC Novembro 2015

Nome: nº. Recuperação Final de História Profª Patrícia

CHAMAMENTO PÚBLICO PARA SELEÇÃO DE ORIENTADORES ARTÍSTICOS EM TEATRO PARA O PROJETO ADEMAR GUERRA Edição 2013

BAKHTIN, M. Palavra própria e palavra outra na sintaxe da enunciação. A palavra na vida e na poesia: introdução ao problema da poética sociológica

MÓDULO 5 O SENSO COMUM

RESENHAS SCHMITT E STRAUSS: UM DIÁLOGO OBLÍQUO

TIPOS DE REUNIÕES. Mariangela de Paiva Oliveira. As pessoas se encontram em diferentes âmbitos:

Organização de Rui Torres

Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc

GRUPO IV 2 o BIMESTRE PROVA A

Política de Divulgação de Informações Relevantes e Preservação de Sigilo

Reflexões de Fernando Peixoto sobre o texto teatral Caminho de Volta (Consuelo de Castro)

Educação Patrimonial Centro de Memória

PROJETO DE EXTENSÃO TÍTULO DO PROJETO:

ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO 2º SEMESTRE DE 2015

Relvas admite relatórios e propostas de nomes para as secretas.»

EDUCAÇÃO AMBIENTAL & SAÚDE: ABORDANDO O TEMA RECICLAGEM NO CONTEXTO ESCOLAR

AS CONTRIBUIÇÕES DAS VÍDEO AULAS NA FORMAÇÃO DO EDUCANDO.

ADMINISTRADOR LEIA ATENTAMENTE AS INSTRUÇÕES

O Brasil em Evidência: A Utopia do Desenvolvimento.

POLÍTICA EDUCACIONAL: ELABORAÇÃO E CONTINUIDADE CORDEIRO, Mauro Soares USP GT-14: Sociologia da Educação

A origem dos filósofos e suas filosofias

Estratégias adotadas pelas empresas para motivar seus funcionários e suas conseqüências no ambiente produtivo

Transcrição Teleconferência Resultados 3T07 Trisul 14 de Novembro de 2007

Análise Econômica do Mercado de Resseguro no Brasil

ESTRADA DE FERRO BAHIA E MINAS RELATÓRIOS DE PEDRO VERSIANI

O teatro lírico de Hilda Hilst

9 Como o aluno (pré)adolescente vê o livro didático de inglês

RESENHA resenha resumo resenha crítica Título: Identificação do resenhista: Referência: Dados sobre o(s) autor(es): Dados sobre a obra: Apreciação:

Guia de utilização da notação BPMN

Empreenda! 9ª Edição Roteiro de Apoio ao Plano de Negócios. Preparamos este roteiro para ajudá-lo (a) a desenvolver o seu Plano de Negócios.

3 Qualidade de Software

Denise Fernandes CARETTA Prefeitura Municipal de Taubaté Denise RAMOS Colégio COTET

Crenças, emoções e competências de professores de LE em EaD

ALTERNATIVAS APRESENTADAS PELOS PROFESSORES PARA O TRABALHO COM A LEITURA EM SALA DE AULA

FESTIVAL FUNDAÇÃO DAS ARTES DE TEATRO ESTUDANTIL 2016

CENTRO DE ESTUDOS ESTRATÉGICOS INFORMATIVO ESTRATÉGICO Nº 07/2015 OS ATENTADOS TERRORISTAS OCORRIDOS EM PARIS: EXTRATO DE NOTÍCIAS E DE PALESTRA

Pedagogia Estácio FAMAP

A unificação monetária européia

Materiais de Construção Civil

UMA HISTÓRIA EM COMUM ENTRE CUBA E ESPANHA

A escola para todos: uma reflexão necessária

MICHEL FOUCAULT: CINISMO E ARTE NA PERSPECTIVA DA ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA

Plan-Assiste Implementação de medidas para melhoria. Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral da República,

INDICADORES OBJETIVOS DE NOVAS PRÁTICAS NO ENSINO DE REDAÇÃO: INDÍCIOS DE UMA MUDANÇA?

A Conferência ouviu a exposição dos principios gerais e doutrinas relativas à protecção de monumentos.

PÁTRIA EDUCADORA QUE DISCURSO É ESSE?

ED WILSON ARAÚJO, THAÍSA BUENO, MARCO ANTÔNIO GEHLEN e LUCAS SANTIGO ARRAES REINO

CENTRO DE FORMAÇÃO PROFISSIONAL PAULO DE TARSO

A PRÁTICA PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL NO PROCESSO DE ADOÇÃO NO SERVIÇO AUXILIAR DA INFÂNCIA E JUVENTUDE DE PONTA GROSSA-PR

Memórias de um Brasil holandês. 1. Responda: a) Qual é o período da história do Brasil retratado nesta canção?

Educação Financeira: mil razões para estudar

Recomendada. A coleção apresenta eficiência e adequação. Ciências adequados a cada faixa etária, além de

PROCEDIMENTOS DE AUDITORIA INTERNA

08/05/2009. Cursos Superiores de. Prof.: Fernando Hadad Zaidan. Disciplina: PIP - Projeto Integrador de Pesquisa. Objetivos gerais e específicos

Elaboração de Projetos

Brasil. 5 O Direito à Convivência Familiar e Comunitária: Os abrigos para crianças e adolescentes no

5 Considerações Finais 5.1 Conclusão

PROCESSO SELETIVO NOVO CURSO 2011

DITADURA, EDUCAÇÃO E DISCIPLINA: REFLEXÕES SOBRE O LIVRO DIDÁTICO DE EDUCAÇÃO MORAL E CÍVICA

12 Edição Crítica de As Minas de Salomão

A FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE MATEMÁTICA À DISTÂNCIA SILVA, Diva Souza UNIVALE GT-19: Educação Matemática

São Paulo/SP - Planejamento urbano deve levar em conta o morador da rua

O CAMINHO DO ATOR BUSCADOR Mônica Mello Universidade Federal da Bahia UFBA Antropologia teatral, treinamento de ator, pré-expressivo.

Jesus declarou: Digo-lhe a verdade: Ninguém pode ver o Reino de Deus, se não nascer de novo. (João 3:3).

Regulação Bimestral do Processo Ensino Aprendizagem 3º bimestre Ano: 2º ano Ensino Médio Data:

O marxismo heterodoxo de João Bernardo

CURSO História. Só abra este caderno quando o fiscal autorizar. Leia atentamente as instruções abaixo.

TÍTULO: A CRIANÇA E A TECNOLOGIA: PENSANDO E REPENSANDO SOBRE A FORMAÇÃO PSIQUICA NO CONTEXTO TECNOLÓGICO ATUAL

ELABORAÇÃO DE PROJETOS

Presidência da República Casa Civil Secretaria de Administração Diretoria de Gestão de Pessoas Coordenação Geral de Documentação e Informação

Eixo Anhanguera-Bandeirantes virou polo lean, diz especialista

VIOLÊNCIA CONTRA CRIANÇAS: UM ESTUDO DE CASOS RELATADOS EM CONSELHOS TUTELARES DA INFÂNCIA E DA ADOLESCÊNCIA.

NOME: Nº. ASSUNTO: Recuperação Final - 1a.lista de exercícios VALOR: 13,0 NOTA:

COMO ESTUDAR 1. Nereide Saviani 2

Deliberação 112/2015 (DR-TV)

DIAGNÓSTICOS DA AMÉRICA S/A CNPJ/MF n.º / NIRE n.º Companhia Aberta

Montagem e Manutenção. Luís Guilherme A. Pontes

Reconhecida como uma das maiores autoridades no campo da análise infantil na

Recenseamento Geral da População e Habitação 2014

Unidade 9: Diálogos deliberativos

PLANO DE AULA OBJETIVOS: Refletir sobre a filosofia existencialista e dar ênfase aos conceitos do filósofo francês Jean Paul Sartre.

Área de Intervenção IV: Qualidade de vida do idoso

CÁTEDRA DE PORTUGUÊS LÍNGUA SEGUNDA E ESTRANGEIRA. FACULDADE DE LETRAS E CIÊNCIAS SOCIAIS (UEM) e INSTITUTO CAMÕES

BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O BINÔMIO ESTADO - FAMÍLIA EM RELAÇÃO À CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA NOS PROGRAMAS TELEVISIVOS

8 Conclusões, recomendações e desdobramentos

Imigração: problema ou solução?

1. Introdução. 1.1 Contextualização do problema e questão-problema

O TRABALHO SOCIAL EM HABITAÇÃO COM UM CAMPO DE ATUAÇÃO DO ASSISTENTE SOCIAL

Transcrição:

A Recepção de Brecht em Portugal antes de 25 de Abril de 1974 Suzana Campos de Albuquerque Mello Introdução Este artigo visa a realizar uma panorâmica, focando os momentos mais significativos da recepção do dramaturgo e encenador alemão Bertolt Brecht (1898-1956) em Portugal antes do 25 de abril de 1974, isto é, antes da Revolução dos Cravos, e a relacioná-la a seu momento político-histórico, ou seja, à ditadura salazarista. Não há ditador que não tenha prestado muita atenção aos efeitos das obras literárias, (incluindo-se aí as peças de teatro), pois sabe que elas atuam profunda e duradouramente no imaginário e no saber dos leitores. Vedar o acesso do público à fruição de obras literárias, quer através da leitura, quer através da encenação de peças é um ato tão violento quanto prender indivíduos. Estudar a recepção da obra de Brecht em Portugal, por exemplo, é um modo de aquilatar o nível de violência da ditadura salazarista. Há poucas referências a Brecht antes de 1945. A primeira delas é em 1925, e se deve a Júlio Dantas 1, representante máximo de um academicismo de clara tendência elitista. Essa referência dá-se no contexto da fundação do Teatro Novo, um círculo dramático experimental, dirigido por Antônio Ferro e que tinha como proposta apresentar ao público da capital a vanguarda do teatro estrangeiro. Nesse momento, o acadêmico que era crítico em relação às eventuais novidades do agrupamento lisboeta cria uma polêmica com esse grupo, e para se mostrar mais bem informado sobre as vanguardas européias, recomenda a peça Trommeln in der Nacht, montagem que considera cubista, nas encenações montadas pelos Kammerspiele de Munique de 1922. Em 1943, Júlio DANTAS publica em O Comércio do Porto dois artigos: O Teatro e a máquina, em 28 de março e Teatro do Povo, em 18 de abril, que apre- 1 Apud. OLIVEIRA (1950: 74-75). As demais referências dos artigos mencionados neste trabalho estão listadas nas Referências Bibliográficas, conforme foram apresentados nos estudo de DELILLE (1991: 11-58).

sentam, em tom depreciativo, o teatro moderno e neles cita, mais uma vez, Trommeln in der Nacht, relacionando-a ao movimento cubista. Nesse sentido, as menções a Brecht, quer a de 1925, quer a de 1943 são apenas alusões superficiais e esporádicas, por certo colhidas das revistas teatrais francesas. O Período Pós-Guerra Ainda com o abrandamento da censura no período pós-guerra, especificamente entre os anos de 1945 a 1949, Portugal não conhece nenhum registro na imprensa sobre a obra de Brecht. Datam de 1949 as referências à obra do autor, assinadas por Luiz Francisco REBELLO, dramaturgo e homem de teatro muito atento ao que se passa na cena internacional, e que publica na revista Vértice, órgão ligado ao movimento neo-realista português, dois artigos informativos sobre o assunto. O primeiro artigo faz referência a uma encenação em Berlim de Furcht und Elend des Dritten Reiches (Terror e Miséria do III Reich). O segundo artigo dedica-se exclusivamente ao dramaturgo alemão e traça uma breve retrospectiva da obra brechtiana nos anos 20 e início dos anos 30, mencionando apenas Trommeln in der Nacht e a adaptação de Beggar s Opera, ópera de John Gay. Informa ainda sobre encenações recentes como as dos Estados Unidos: Galileu Galilei de 1947 e Der Kaukasische Kreidekreis (O Círculo de Giz Caucasiano) de 1948, a encenação de Zurique de Herr Puntila und sein Knecht Matti de 1948 e a de Berlim de Terror e Miséria do III Reich. O artigo de REBELLO não parece ainda derivar de um conhecimento profundo da obra brechtiana, mas parece se fundamentar em publicações teatrais francesas, ou, provavelmente, italianas, e busca divulgar um valor dramático, tanto pelo ideário marxista (cuidadosamente oculto pelo articulista face às restrições de censura) como pela alegada trajetória estética (do expressionismo ao neo-realismo), pois [o autor alemão] podia ser considerado um importante modelo a apontar aos dramaturgos portugueses, numa altura em que se tentava a renovação da cena internacional (DELILLE 1991: 31). O movimento neo-realista domina a arte do pós-guerra, tanto na Itália quanto em Portugal, e, assim, a recepção de Brecht naquele país irá integrar-se plenamente nesse contexto. No início dos anos 50, no norte, sobretudo no Porto, encenam-se 2

as primeiras leituras dramáticas e líricas da obra de Brecht, depois que Ilse LOSA, judia alemã, faz uma resenha das principais cenas do drama Mutter Courage und ihre Kinder. Em 1955, José REDONDO JÚNIOR, em um volume dedicado a problemas de estética teatral intitulado Pano de Ferro, discorre sobre o teatro épico de Brecht. Essas explanações são baseadas no estudo de Geneviève Surreau, Bertolt Brecht. Dramaturge e devem-se ao êxito que o Berliner Ensemble alcançara em 1954, no Festival Internacional de Paris, com a apresentação da peça Mutter Courage und ihre Kinder. Jorge de SENA publica em 1956 uma tradução do poema Fragen eines lesenden Arbeiters em O Comércio do Porto, e aponta, sem explicitar a ideologia política subjacente, que o autor é um dos maiores senão o maior escritor da Alemanha da época e indica que não só o teatro épico brechtiano, mas o teatro em geral, tem uma qualidade de agente de mutações orgânicas, e faz referência vaga a forças que procuram detê-lo, ou seja, às forças da ditadura salazarista. Entre 1952 e 1956 outros artigos e traduções dedicadas a Brecht são registradas. Ilse LOSA publica na revista Vértice, de agosto-setembro de 1954, a tradução da história Die unwürdige Greisin, com o título A Velha inconveniente, que é precedida por uma breve nota com um esboçado currículo do autor e escritor. De 1955 em diante, os leitores portugueses passam a ter acesso às traduções francesas recém-lançadas pela editora L Arche, que publica os primeiros volumes (três) do Teatro completo de Brecht, a serem seguidos por mais sete até 1962. Este é um fato que causa um aceleramento na recepção do autor naquele país. No ano de 1955, Luiz Francisco REBELLO também apresenta na revista Vértice uma longa resenha da vida e obra de Brecht, e utiliza como principais fontes informativas a citada obra de Surreau e outra, publicada em 1953, Spetacollo del Secolo. O crítico português mantém a identificação das peças brechtianas da juventude com a dramaturgia expressionista, e menciona uma tendência realista, que vê exemplificada em Mann ist Mann (Um Homem é um Homem), Mahagonny (Ascensão e queda da cidade de Mahagonny) e Dreigroschenoper (A ópera dos três vinténs). No fim do artigo, REBELLO acrescenta a versão portuguesa do Prólogo de Antígona feita, possivelmente, a partir do francês. Em 57, REBELLO também edita uma obra sobre o teatro moderno europeu e norte-americano, que é enriquecida com uma antologia de textos dramatúrgicos cur- 3

tos, na qual figura a tradução integral de Die Außnahme und die Regel (A Exceção e a regra) e dois textos de Brecht sobre o teatro épico ( Ensaio sobre a ópera e Por uma nova técnica dramática ). No decênio entre 1958 e 1968, Portugal passa por um delicado momento político e social. Há grande agitação nas eleições presidenciais em 1958, pois o regime salazarista é abalado por diversas crises, que se agravam em 1961 com o início do conflito armado em Angola, com a perda das possessões portuguesas na Índia e, em 1963 e 64, com a extensão da Guerra Colonial contra Guiné e Moçambique. Instaura-se no país um acentuado clima de repressão, que atinge os oposicionistas de ideologia marxista. Nesse momento, quaisquer representações da obra de Brecht passam a ser proibidas em palcos portugueses. Em junho de 1959, o dramaturgo experimental Pedro BOM (pseudônimo de José Manuel da Fonseca), num comentário inserido no suplemento literário do Diário Ilustrado, faz um apelo para que as peças do autor sejam encenadas o quanto antes nos palcos portugueses. Há tentativas de alguns grupos amadores e profissionais de encenar peças de Brecht, mas elas não conhecem sucesso. Uma única peça brechtiana sobe à cena em palcos portugueses antes do 25 de abril: Der gute Mensch von Setzuan (A Alma Boa de Setzuan), montagem da companhia brasileira de Maria Della Costa em 1960. A montagem gera polêmica entre o público e, após cinco apresentações, é proibida pelo governo de Salazar. Em setembro de 1968, após a doença e clara incapacidade de Salazar, Marcelo Caetano assume a Presidência do Conselho. Inicia-se uma nova fase na vida do regime que pode ser considerada, dados alguns sinais emitidos e a conhecida posição do novo Presidente do Conselho face a Salazar, como a de uma possível liberalização. Em 1969, Amélia Rey Colaço, com Carlos Wallenstein, pede ao novo Presidente de Conselho que permita a representação de A Vida de Galileu. Porém, o pedido de licença de representação dessa peça nunca foi ou nunca pôde ter sido atendido no período da controversa liberalização marcelista. Por um lado, o cenário político dificulta uma recepção produtiva no que diz respeito às encenações e, embora tenham sido banidos do teatro profissional, os dramas de Brecht continuam objeto, desde meados da década de 60, de alguns espetáculos de iniciativa de grupos amadores, entre os quais predomina o teatro universitário. Por outro lado, abre-se uma brecha para a produção teatral portu- 4

guesa em relação ao uso de temas, processos e técnicas brechtianas, assim como para a tradução e publicação de várias obras do autor, tanto do gênero dramático, como do lírico e narrativo. O Teatro Universitário e a Recepção Produtiva Os principais testemunhos das encenações de Brecht nas colônias vêm de Moçambique. Em 1964, o teatro de amadores da Beira, orientado por Cardoso Santos, faz representar a peça didática A Exceção e a Regra. Em 1965, o teatro acadêmico de São Lourenço Marques, sob a direção de Mário Barradas, tenta levar à cena, após seis meses de ensaios, A alma boa de Setzuan, mas o espetáculo é proibido pela censura; no ano seguinte, porém, o mesmo grupo exibirá na capital moçambicana Aquele que diz sim e aquele que diz não, cuja designação de peças didáticas contribui, na opinião do encenador Mário Barradas, para iludir a vigilância policial. Em Portugal, em maio de 1968, o grupo cênico da Associação de Estudantes do Instituto Superior Técnico, dirigido por Mário Sério, apresenta em Lisboa, na cantina daquele Instituto, um espetáculo com o nome Autores Modernos, que inclui a décima cena, O Espião, da peça brechtiana Furcht und Elend des dritten Reiches. No ano seguinte, o mesmo grupo e diretor põem no palco do mesmo local, Antígona de Brecht. No ano de 1968/69, há uma encenação de A Exceção e a Regra, realizada por Maria Helena Dá Mesquita e Carmen Gonzales, com os alunos do Liceu Padre Antônio Vieira. Um ano depois, Maria Helena Dá Mesquita, com a colaboração de Jorge Listopad, encena o quadro O Espião de Furcht und Elend des dritten Reiches, e que, diferentemente do ano anterior, cuja apresentação fora aberta a familiares e amigos dos alunos, só pôde ser assistida pelos estudantes, tendo a responsável pelo projeto sido proibida de continuar as experiências com Brecht. Além desse tipo de recepção produtiva, há também autores que, ao se apropriarem da teoria e prática do teatro épico, transpõem-na para a criação literária e práxis teatral próprias: o primeiro deles é José Cardoso Pires, que, em 1960, escreve a narrativa dramática O render dos heróis, que tem como tema a revolta po- 5

pular da Maria da Fonte em meados do séc. XIX. A estrutura da peça é em forma de parábola e procura refletir, na época histórica escolhida, aspectos e tipos da realidade sócio-política do tempo de Salazar, tornando-se, assim, próxima às peças de Brecht. Luís Stau Monteiro, com o drama Felizmente luar de 1961, e Bernardo Santareno também seguem os passos de Pires, e Santareno é autor de um dos dramas que pode ser considerado o ponto máximo da recepção produtiva da obra brechtiana em Portugal, a peça O Judeu de 1966. Esses autores, diferentemente de Pires, não têm suas peças encenadas em Portugal, e esse fato se dá pelo estreitamento da censura nos últimos tempos do salazarismo. Considerações Finais No período anterior ao 25 de abril de 1974, as censuras salazarista e marcelista não só não permitem a representação de dramas de Brecht nos teatros públicos, como também buscam impedir a divulgação do teatro épico. Entretanto, isso não é de todo possível, porque desde o final da década de 50, o crescente interesse por Brecht acontece tanto em termos crítico-valorativos quanto em relação à recepção produtiva. Até o início da década de 60, muitas traduções são publicadas em revistas, jornais e fascículos de poesia, mas os passos decisivos para a edição em volume de importantes traduções de Brecht só se dão a partir de 1962. Neste ano, a Portugália Editora lança o primeiro volume do Teatro de Brecht, o qual integra a tradução de Ilse Losa dos textos Mutter Courage und ihre Kinder e Der gute Mensch von Setzuan. Até 1970, mais onze peças são traduzidas, e distribuídas em quatro volumes publicados. Em 1964, com a tradução de Fiama Hasse Pais Brandão, a mesma editora publica também Estudos sobre Teatro. É manifesta a sua preocupação em apresentar uma tradução feita diretamente dos originais brechtianos e não, como até então acontecia, por intermédio de versões francesas. Os dramas portugueses de caráter histórico-narrativo são um claro testemunho de leituras brechtianas ou de um contato com a obra do autor alemão em palcos estrangeiros. E, embora na década de 60 haja a penetração de novas correntes dramatúrgicas, principalmente a de Grotowsky e a do Living Theatre, que começam a surgir 6

em alguns círculos da vanguarda literária lisboeta e que são apreendidas sob uma ótica marxista, vários questionamentos sobre o teatro brechtiano continuam, e um exemplo disso é o Inquérito Brecht, em dezembro de 1968, lançado por Carlos PORTO no suplemento literário do Diário de Lisboa. Nele, PORTO tenta reunir depoimentos de pessoas do meio teatral acerca da obra do dramaturgo alemão. A discussão das novas propostas do teatro épico permanece em um patamar teórico, ressentindo-se da falta do conhecimento das peças no palco e, por isso, elas nem sempre são entendidas de maneira equilibrada ou adequada. Embora Portugal não pudesse apresentar em teatros públicos encenações dos textos brechtianos, o teatro universitário naquele país burlava a censura e apresentava encenações do autor alemão nas universidades. O trabalho da recepção de Brecht em Portugal reduz-se, praticamente, a difundir e explicitar junto a um público-leitor, a quem foi negada a encenação nos palcos, os princípios teóricos fundamentais da nova dramaturgia. A censura salazarista à obra de Brecht persona non grata por motivos políticos é um tanto ambígua, pois, se por um lado, determina a proibição das encenações nos teatros públicos, por outro permite a livre circulação das traduções de dramas, poemas e prosa narrativa, bem como de muitos ensaios dedicados ao autor. Esse fato nos leva a reconhecer que as obras literárias demandam leitores bem formados, mas o teatro envolve o povo e isso, numa ditadura, é muito perigoso, pois sua influência pode ser incontrolável. Apresentamos, à guisa de conclusão, a seguinte reflexão: até 1974, Brecht não pôde ser encenado nos palcos portugueses, mas, apesar disso, tanto a sua teoria quanto a sua práxis teatral influenciaram a produção literária e teatral daquele país no período que antecede a Revolução dos Cravos. Nesse sentido, se levarmos em consideração o momento histórico-político em questão, podemos considerar que a obra do autor alemão pôde ser usada, ainda que de forma enfraquecida, como uma forma de resistência à violência repressora da ditadura salazarista. Bibliografia BOM, Pedro. Da Necessidade de conhecermos Bertolt Brecht. In: Diário Ilustrado 13 (1959). Diálogo, Suplemento Artes. Letras. Espetáculos n. 24, 4. 7

BRECHT, Bertolt. Tambores da noite. In: Teatro Completo em 12 volumes. Vol. 01. Trad. Fernando PEIXOTO. Rio de Janeiro, Paz e Terra 1987. BRECHT, Bertolt. A Ópera dos Três Vinténs. In: Teatro Completo em 12 volumes. Vol. 03. Trad. Fernando PEIXOTO. Rio de Janeiro, Paz e Terra 1987. BRECHT, Bertolt. Ascensão e Queda da Cidade de Mahagonny. In: Teatro Completo em 12 volumes. Vol. 03. Trad. Fernando PEIXOTO. Rio de Janeiro, Paz e Terra 1987. BRECHT, Bertolt. A Exceção e a Regra. In: Teatro Completo em 12 volumes. Vol. 04. Trad. Fernando PEIXOTO. Rio de Janeiro, Paz e Terra 1987. BRECHT, Bertolt. A Vida de Galileu. In: Teatro Completo em 12 volumes. Vol. 06. Trad. Fernando PEIXOTO. Rio de Janeiro, Paz e Terra 1987. BRECHT, Bertolt. Mãe Coragem e seus Filhos. In: Teatro Completo em 12 volumes. Vol. 06. Trad. Fernando PEIXOTO. Rio de Janeiro, Paz e Terra 1987. BRECHT, Bertolt.. A Alma Boa de Setsuan. In: Teatro Completo em 12 volumes. Vol. 07. Trad. Fernando PEIXOTO. Rio de Janeiro, Paz e Terra 1987. BRECHT, Bertolt. O Círculo de Giz Caucasiano. Trad. Manuel BANDEIRA. São Paulo, Cosacnaify 2002. BRECHT, Bertolt. Teatro de Bertolt Brecht Vol..1. Trad. Ilse LOSA. Lisboa, Portugália 1962. DANTAS, Júlio. O teatro e a Máquina. In: Comércio do Porto, Porto, 28 mar.1943. DANTAS, Júlio. Teatro do Povo. In: Comércio do Porto, Porto, 18 abr. 1943. DELILLE, Maria Manuela Gouveia. Do Pobre B.B. em Portugal Aspectos da Recepção de Bertolt Brecht antes e depois do 25 de abril de 1974. Aveiro, Estante 1991. LOSA, Ilse. A Velha inconveniente. In: Revista Vértice 14 (1954), 460-465. OLIVEIRA, Joaquim de. O teatro Novo. O Knock. O seu encenador. Memórias. Ensaios. Subsídios para a técnica e história do teatro português 1925-1950. Lisboa, Livraria da Trindade 1950. PORTO, Carlos. Inquérito Brecht, hoje. In: Diário de Lisboa, Lisboa, 05 fev. 1968, Suplemento Literário n 54, 4. REBELLO, Luiz Francisco. Teatro Alemão do pós-guerra. In: Revista Vértice 7 (1949), 242-243. REBELLO, Luiz Francisco. Bertolt Brecht, dramaturgo. In: Revista Vértice 15 (1955), 199-202. 8

REBELLO, Luiz Francisco. Teatro Moderno. Caminhos e figuras. Lisboa, Edição do autor 1957. REDONDO JÚNIOR, José. Pano de Ferro. Crítica. Polémica. Ensaios de Estética Teatral. Lisboa, Editorial Século 1955. SENA, Jorge de. Quem Construiu a heptália Tebas?. In: Comércio do Porto, Porto, 25 set. 1956. 9