ENTRE O PASSADO E O PRESENTE: A CONSTRUÇÃO E AFIRMAÇÃO DA IDENTIDADE ÉTNICA DOS CIGANOS DA CIDADE ALTA, LIMOEIRO DO NORTE CE 1

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Transcrição:

ENTRE O PASSADO E O PRESENTE: A CONSTRUÇÃO E AFIRMAÇÃO DA IDENTIDADE ÉTNICA DOS CIGANOS DA CIDADE ALTA, LIMOEIRO DO NORTE CE 1 BETWEEN THE PAST AND THE PRESENT: THE CONSTRUCTION AND AFFIRMATION OF ETHNIC IDENTITY OF THE GYPSIES HIGH CITY, LIMOEIRO DO NORTE - CE Lailson Ferreira da Silva 2 As reflexões, aqui apresentadas, são baseadas na pesquisa que desenvolvi durante o meu curso de graduação em história. Nesse momento, minhas atenções estavam voltadas para entender o processo de construção e afirmação da identidade étnica dos ciganos residentes na Cidade Alta, localizada no município de Limoeiro do Norte - Ce, distando cerca de 204 km de Fortaleza. Para conhecer e compreender os mecanismos pelos quais os ciganos afirmam sua identidade, aproximei-me dessa realidade social através do trabalho de campo, seguido da observação participante. Além disso, iniciei um processo de desconstrução dos estereótipos sociais que lhes são relacionados, tais como ladrões, trapaceiros, valentes, associação das mulheres à prostituição, entre outros. É necessário destacar que essas marcas sociais negativas estão disseminadas no imaginário da população local, e são utilizadas para definir 1 Monografia apresentada em 2006, ao Programa de Licenciatura Plena em História, da Faculdade de Filosofia Dom Aureliano Matos, unidade da Universidade Estadual do Ceará (UECE), sob a orientação do Professor Dr. Gerson Augusto de Oliveira Júnior. 2 Graduado em Licenciatura Plena em História. Mestrando do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). 1

os ciganos. Procurei, portanto, me desprender dos meus valores e concepções de mundo, isto é, passei a relativizar o que se ouvia e via em relação aos ciganos da Cidade Alta. Dessa forma, para além das questões que fundamentam este trabalho, há outras que são fruto do meu próprio processo de conhecimento, e, por conseguinte, do aumento da minha lente.... a cultura é como uma lente da qual o homem vê o mundo. Homens de culturas diferentes usam lentes diversas e, portanto, têm visões desencontradas das coisas 3. Essa lente pressupõe que cada um de nós observa a realidade de acordo com valores e conceitos moldados pelo meio em que estamos inseridos. Daí decorre a necessidade de relativizar o que admitimos saber, e disponibilizar a compreensão do outro. Durante o período de julho de 2004 a 2006, efetuei a pesquisa de campo, essencialmente, nas ruas Francisco Holanda Martins e Joaquim Victor de Oliveira, popularmente conhecidas por Vila da Paz e Buraco da Gia, onde residem os ciganos. Nessas ocasiões realizei entrevistas com ciganos e não-ciganos, e fiz anotações no diário de campo. Os primeiros contatos com os ciganos deram-se a partir do segundo semestre do ano de 2004. As primeiras conversas informais, e as entrevistas foram realizadas na residência da cigana Zuleide Alves dos Santos. No início, essas entrevistas eram realizadas em conjunto, isto é, sempre havia um cigano (a) ao lado de quem estava entrevistando. Com o passar do tempo e à medida que fui ganhando a confiança deles, essa prática foi-se modificando, bem como expandi meus limites espaciais. Passei a freqüentar o interior da casa de D. Zuleide e dos demais ciganos. Destaco, como fator importante para essa mudança, o contato mais intenso com os ciganos. No início da pesquisa, ia sempre aos finais de semana. Mas, senti a necessidade de me aproximar cada vez do cotidiano do grupo em estudo. Por isso, sempre que tinha tempo, seguia em direção às casas dos ciganos. É necessário ressaltar que a maior parte das entrevistas foram feitas com as mulheres, tendo em vista que os homens não se mostraram disponíveis para participar diretamente da pesquisa. Ao mesmo tempo, procurei participar do cotidiano dos moradores das referidas ruas, mencionadas acima, através de conversas informais, na tentativa de perceber como a 3 LARAIA, Roque de Barros. CULTURA: Um conceito antropológico. 14ª ed. Rio de Janeiro: Zarah, 2001. 2

identidade étnica cigana surge a partir das relações sociais entre ambas as partes. Para tanto, enfrentei a resistência dos vizinhos dos ciganos em falar acerca de suas interações cotidianas com os ciganos, bem como tive dificuldades em conseguir entrevistas. Para superar esse desafio, procurei alguns moradores que têm/tinham contatos mais próximos com os ciganos. Além disso, fui algumas vezes ao Fórum da 1ª Vara de Limoeiro do Norte, Fórum Des. Antônio Carlos Costa e Silva, com o intuito de coletar material sobre um processo judicial, criminoso, envolvendo um cigano e um não-cigano. Retornei a campo no ano de 2006 com o intuito de aprofundar algumas questões que se mostraram pertinentes à elaboração deste estudo, como também concluí a pesquisa de campo. Devido às limitações e objetivos desta pesquisa, selecionei como objeto de análise empírica apenas um grupo de 25 ciganos descendentes do Cigano Cem. Contudo, gostaria de chamar a atenção para o fato de que na Cidade Alta há outro grupo de atores sociais que se definem e são identificados como ciganos. Nesse sentido, a compreensão do processo de construção e afirmação da identidade cigana contempla uma análise que privilegia as relações estabelecidas entre os ciganos e os demais moradores do bairro. Isso implica pensar que a identidade não possui nenhuma substância, sendo uma construção situacional envolvendo interesses e conflitos. Desta forma, não se deve procurar elementos culturais para defini-lá. É preciso lançar um olhar atento para as situações em que os próprios indivíduos manipulam e selecionam os sinais diacríticos, isto é, aqueles elementos utilizados para expressar objetivamente a identidade. Entre os ciganos da Cidade Alta, a identidade é construída a partir de uma constante tensão entre passado e presente. Nesse sentido, toda vez que vão afirmar sua condição étnica se voltam para o passado e invocam a figura do Cigano Cem. A crença em uma origem comum constitui um elemento diacrítico da identidade cigana, servindo para respaldar e legitimar o grupo étnico, bem como orientar suas ações no presente. Ciganos é descendência dos mais velhos que viviam andando pelo meio do mundo a cavalo aí ficou essa descendência de ainda hoje ser assim cigano. [...] Existe uma linguagem dos ciganos assim que é uma língua diferente de vocês que já vem dos descendentes (Laeni Alves dos Santos, Jul/04). 3

Antigamente, o chefe era o meu avô Cem. Todo mundo aqui a redor de Limoeiro do Norte, Jaguaribe, Limoeiro, Russa, Jaguaruana, Aracati, tudo conhece o cigano Cem. (Maria da Conceição Alves dos Santos, Jul/04). Como afirma Weber 4, isso é algo comum nos processos de afirmação étnica nos quais os indivíduos orientam suas ações ancoradas na crença de uma origem comum, que pode ser real ou imaginária. A crença garante a legitimidade da identidade reivindicada e a idéia de um nós coletivo, bem como possibilita estabelecer diferenciações. Para Barth 5, a permanência das fronteiras sociais garante aos grupos étnicos continuarem a existir enquanto tais, porque, a partir delas, diferenciam-se uns dos outros. Dessa forma, o isolamento geográfico ou social não se constitui na base para definição do grupo étnico, como pensavam os culturalistas. Ao estabelecer contatos interétnicos, o grupo não fica suscetível ao desaparecimento. É nesse momento de contraste que as diferenças são melhores percebidas e no qual emergem referenciais étnicos. Assim, a cultura não pode ser vista como uma característica primária do grupo, mas como uma produção dos próprios atores sociais 6. O que se torna necessário é que os membros de um grupo étnico compartilhem a crença em uma origem comum. Ou, como assevera Cunha 7, a etnicidade consiste numa categoria nativa usada por atores sociais para os quais ela é importante. Isso explica o fato de os indivíduos invocarem uma origem e uma cultura comum para demarcar a fronteira do grupo em questão. Trata-se, diz a autora, de algo recorrente nos processos de afirmação étnica. Nessa perspectiva, a memória e a história desempenham um relevante papel nos processos de afirmação étnica. 4 WEBER, Marx. Comunidades Étnicas. In: Economia y sociedade. México: Fondo de Cultura Económica, 1983. 5 PUTIGNAT, Philipe. STREIFF-FENART, Jocely. Teorias de etnicidade. Seguido de Grupos étnicos e suas fronteiras de Frederik Barth. São Paulo: Fundação Editora UNESP, 1998. 6 Nessa perspectiva, Oliveira Júnior (1998) analisou, através do processo de construção e afirmação da etnicidade Tremembé, que os elementos culturais podem ser criados e manipulados de acordo com os interesses do grupo. Assim, o Torém passou a ser (re)significado como meio dos índios assumirem sua indianeidade perante a população regional. 7 CUNHA, Manuela Carneiro da. Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade. São Paulo: Brasiliense, 1986. 4

Afinal, como nos lembra Michel Pollak 8, a memória confere um sentido de continuidade e de coerência a um indivíduo ou grupo, no processo de reconstrução de si. Sendo assim, os indivíduos ou grupos podem utilizar-se de diversos mecanismos para exprimirem sua identidade de acordo como as circunstâncias 9. Por isso, em algumas situações, pode ocorrer a sua afirmação, negação ou manipulação, o que evidencia o seu caráter dinâmico. Dessa forma, não se devem buscar elementos objetivos para defini-los. É preciso voltar-se para os elementos que os próprios atores sociais selecionam para se manterem como tais. Além disso, pude dar visibilidade aos ciganos da Cidade Alta, apresentando a sua forma de organização da vida cotidiana, o que possibilita uma reflexão acerca dos estereótipos sociais que lhes são atribuídos. Assim, mesmo vivendo de acordo com as práticas de sociabilidade presentes entre os moradores, permanece, entre a população local, uma série de imagens negativas, as quais são reforçadas todas as vezes que suas ações são consideradas como desviantes do modelo e padrão estabelecidos. Deste modo, os ciganos são vistos como diferentes, constituindo uma ameaça à sociedade. E, por isso, defendem um discurso de igualdade perante os moradores. Por fim, gostaria de dizer que, enquanto cientista social, não consegui dar conta de todas as questões que se mostraram pertinentes à elaboração desta pesquisa. Muitas são as lacunas presentes neste trabalho, uma vez que o pesquisador é, antes de tudo, um selecionador à medida que precisa delimitar o seu objeto de estudo. Por isso, pretendo abordá-las em outro momento. 8 POLLAK, Michel. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos. Rio de Janeiro. Vol. 5, n. 10, 1992, p. 200-212. 9 CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Identidade, etnia e estrutura social. São Paulo: Pioneira, 1976. 5