AMBIENTE, ENERGIAS E ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS - III

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Transcrição:

Isabel Maria Freitas Valente Ana Maria Reis Ribeiro (Coord.) AMBIENTE, ENERGIAS E ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS - III AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL A NOSSA ESCOLHA, O NOSSO FUTURO! AVEIRO CENTRO DE INFORMAÇÃO EUROPE DIRECT DE AVEIRO 2013

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FICHA TÉCNICA Título: AMBIENTE, ENERGIAS E ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS III. AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL A NOSSA ESCOLHA, O NOSSO FUTURO! Coordenadores: Isabel Maria Freitas Valente; Ana Maria Reis Ribeiro Local: Aveiro Edição: CIEDA Coordenadores da Colecção: Isabel Maria Freitas Valente; Ana Maria Reis Ribeiro Colecção: Ambiente, Energias e Alterações Climáticas Nº 3 Ano de edição: 2013 Fotografia da Capa: Marcial Fernandes Impressão: Associação Académica de Coimbra ISBN: 978-989-98022-5-4 Depósito Legal: 331124/11 Os dados e as opiniões inseridos na presente publicação são da exclusiva responsabilidade do(s) seu(s) autor(es). Alguns dos textos não obedecem ao novo acordo ortográfico. 3

ORIGEM E MODELAÇÃO DE CHEIAS NA RIA DE AVEIRO Carina Lopes 1 ; João Dias 2 1 Bolseira de Doutoramento na Universidade de Aveiro 2 Professor Auxiliar na Universidade de Aveiro 1 E-mail: carinalopes@ua.pt; 2 joao.dias@ua.pt Introdução A inundação nas regiões costeiras é um dos fenómenos naturais mais amplamente distribuído por toda a Europa, ameaçando milhões de pessoas, bens materiais e ecossistemas. Em 2007 a União Europeia reconheceu os riscos associados a este fenómeno e aprovou a Diretiva (2007/60/EC) relativa à avaliação e gestão dos riscos de inundações. Esta Diretiva determina como os estados membros devem proceder na avaliação de mapas de extensão de cheias, assim como na avaliação dos riscos humanos em todos os cursos de água e linhas de costa. Os estados membros estão ainda obrigados a apresentar medidas que visem a redução do risco de inundações. O Decreto- Lei nº115/2010 de 22 de Outubro veio transpor para ordem jurídica interna a Diretiva referida anteriormente. Segundo este Decreto-Lei, as Administrações das Regiões Hidrográficas (ARH) têm de efetuar até 22 de Dezembro de 2013 cartas das zonas inundáveis e cartas de riscos de inundações. Posteriormente, em 22 de Dezembro de 2015 devem ser publicados em Diário da República os planos de gestão de riscos de inundações. Muitos dos eventos de cheias foram registados na história devido às consequências negativas que eles provocam. Tendo como principal objetivo evitar e reduzir os impactos negativos das inundações, é essencial compreender os mecanismos que causam inundações e as suas consequências. Assim, os planos de gestão do risco de inundações devem ter em consideração as características específicas das regiões afetadas e apresentarem uma gama de soluções de acordo com as necessidades e prioridades dessas regiões. Adicionalmente, no contexto de planeamento de 89

estratégias a longo prazo, é crucial avaliar os efeitos das alterações climáticas nos eventos de cheias. No último relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC, 2007), alerta-se que no futuro o risco de inundação é em geral superior ao atual, especialmente nas regiões costeiras. Prevê-se que as zonas costeiras estejam mais expostas ao avanço do mar, aumentando o risco de erosão costeira promovida essencialmente pelo aumento do nível do mar. Prevê-se ainda que todas estas consequências sejam agravadas pela crescente pressão exercida pelo Homem nas zonas costeiras. Estima-se que em 2080 exista um aumento significativo do número de pessoas face à atualidade que serão afetadas por inundações todos os anos devido à subida do nível médio do mar (IPCC, 2007). Em Portugal, estima-se que as regiões mais afetadas pela aceleração da subida do nível médio do mar sejam as lagunas costeiras Ria de Aveiro e Ria Formosa e os estuários do Sado e Tejo (Andrade et al., 2006 e Ferreira et al., 2008). Prevê-se que a aceleração da subida do nível médio do mar tenha um impacto direto na economia local, uma vez que uma parte significativa da economia Portuguesa depende de atividades realizadas nestas regiões, derivando também das condições destes estuários (exemplo: zonas portuárias). Consequentemente, é de extrema importância estudar as condições físicas destas regiões no presente e avaliar as consequências das alterações climáticas nas suas propriedades. Apenas desta forma será possível a construção de um suporte importantíssimo na tomada de decisões. Neste âmbito deve-se considerar que os modelos numéricos constituem ferramentas determinantes no estudo das condições físicas das regiões costeiras, resolvendo equações matemáticas que descrevem e preveem as caraterísticas de um determinado sistema. Mais concretamente, os modelos hidrodinâmicos resolvem as equações do movimento, que permitem descrever e prever a evolução da circulação de água num determinado sistema. Após a implementação e calibração para uma determinada região, através da aplicação de modelos hidrodinâmicos é possível fazer o prognóstico das consequências decorrentes de vários cenários de alterações climáticas num sistema costeiro específico. Adicionalmente, através da utilização destes modelos é possível simular o impacto de obras que visem a potencial proteção 90

contra as cheias, contribuindo deste modo para o processo de tomada de decisão sobre a gestão de zonas costeiras. Neste trabalho apresenta-se uma descrição dos agentes causadores de cheias na Ria de Aveiro e apresentam-se resultados do modelo hidrodinâmico ELCIRC aplicado à Ria de Aveiro. Em particular, são apresentados mapas de extensão de cheias da Ria de Aveiro em dois cenários distintos: em situação de maré média, e em situação de maré média e caudais fluviais típicos nos cinco afluentes principais que desaguam nesta laguna costeira. Área de Estudo Ligada ao Oceano Atlântico através de um único canal artificial, a Ria de Aveiro (Figura 1) é uma laguna pouco profunda (profundidade média de 1 m relativamente ao zero hidrográfico), com uma geometria complexa e localizada na costa noroeste Portuguesa. Apresenta quatro canais principais, S. Jacinto, Espinheiro, Mira e Ílhavo. Com 40 km de comprimento e 10 km de largura, este sistema costeiro tem uma área de 83 km 2 e 66 km 2, para condições de maré viva e morta, respetivamente (Dias, 2001). Figura 1- Batimetria da Ria de Aveiro e localização dos canais principais e afluentes mais importantes. 91

A Ria de Aveiro é considerada uma região propensa a inundações devido às baixas cotas topográficas dos terrenos adjacentes. A Ria de Aveiro encontra-se integrada na bacia hidrográfica do rio Vouga, sendo o Rio Vouga o seu principal afluente com um caudal médio de 50 m 3 /s, que desagua no canal do Espinheiro. A região envolvente à embocadura do rio Vouga é denominada de Baixo Vouga Lagunar (BVL) e apresenta uma área de 4600 ha, tendo sido classificada como Zona de Proteção Especial (ZPE) da Ria de Aveiro, uma vez que apresenta um elevado valor ecológico. Esta região é frequentemente inundada quando o caudal do rio Vouga é elevado. No entanto, a sua principal ameaça é a intrusão salina. De facto, em certas condições de maré viva as motas construídas para proteger o sistema da intrusão salina são galgadas, sendo os campos agrícolas adjacentes inundados com água salgada. Relativamente ao historial de cheias ocorridas na Ria de Aveiro, encontram-se reportados vários impactos nas atividades económicas, sociais, biodiversidade e infraestruturas, verificando-se alterações nos principais forçamentos responsáveis por esses eventos. Antes da construção do canal artificial da embocadura da laguna em 1808, os eventos de cheias na laguna eram originados por caudais fluviais elevados, visto que a ligação com o Oceano Atlântico era frequentemente interrompida e a drenagem para o oceano era praticamente inexistente. Posteriormente, com a construção do canal artificial de ligação permanente entre a laguna e o oceano, ocorreram alterações profundas na hidrodinâmica lagunar (que passou de dominância fluvial para dominância de maré) o que levou a uma diminuição considerável da ocorrência de eventos de cheia de origem fluvial. Os trabalhos que se seguiram para manutenção do canal e melhoramento do acesso ao porto conduziram ao aprofundamento dos canais na região da embocadura (Plecha et al., 2007), modificando a dinâmica da maré no sistema e tornando-o mais vulnerável a riscos de cheias e aos efeitos de forçamentos oceânicos, nomeadamente oscilações do nível do mar (Silva e Duck, 2001). Atualmente, as inundações na Ria de Aveiro ocorrem quando o nível do mar é elevado, quando o caudal fluvial é intenso, ou devido à combinação destes dois fatores. De salientar que a maioria das cheias ocorrem durante condições atmosféricas adversas. Chuvas torrenciais originam caudais fluviais intensos, que inundam principalmente os terrenos adjacentes à foz dos rios. 92

Muitas vezes estes eventos de precipitação surgem associados a depressões centradas a Oeste da costa Portuguesa, as quais originam ventos fortes de Sul, estabelecendo também condições favoráveis a eventos de maré meteorológica (storm surge). Este fenómeno origina uma sobre-elevação do nível do mar em resposta à diminuição da pressão atmosférica (efeito do barómetro invertido). Atendendo-se ainda ao facto da maré astronómica ser o principal fator responsável pelas oscilações do nível do mar na Costa Portuguesa, conclui-se que as situações descritas anteriormente terão consequências diferentes na inundação da laguna dependendo da condição de maré. Ou seja, se ocorrerem eventos meteorológicos adversos, o seu impacto na inundação da Ria de Aveiro será maior se forem simultâneos com condições de maré viva. Por outro lado, eventos adversos de maior intensidade que ocorram em condições de maré morta, frequentemente não influenciam a área média de inundação da laguna. As características morfológicas da laguna são também um fator determinante no regime de inundações na Ria de Aveiro. Em particular, a evolução morfológica do canal que liga a laguna ao Oceano Atlântico determina o regime de inundações a longo prazo. O regime de inundações na Ria de Aveiro tem sido alterado ao longo dos anos devido às alterações morfológicas da embocadura resultantes das obras de fixação dos quebramares (Araújo et al., 2008). Plecha et al. (2007) concluíram que depois do prolongamento do molhe norte em 1987 houve um aprofundamento do canal de entrada da laguna promovendo condições favoráveis para a entrada de um maior volume de água durante a enchente de maré. Assim, e para além das influências antropogénicas verificadas nos últimos anos (exemplo: obras nos quebramares e operações de dragagens), é importante prever a evolução morfológica da região da embocadura e consequente impacto na inundação marginal da laguna. 93

Causas da inundação na Ria de Aveiro Maré astronómica A maré astronómica traduz-se em oscilações na superfície livre do mar que têm a sua origem na força gravitacional exercida pela Lua e Sol na Terra e na força centrífuga do sistema Sol/Terra/Lua. A maré na embocadura da laguna tem características semidiurnas, sendo o constituinte semidiurno lunar principal M 2 o mais importante, com uma amplitude média de 2.0 m. A amplitude de maré mínima é cerca de 0.6 m em condições de maré morta, enquanto a amplitude de maré máxima é cerca de 3.2 m em maré viva (Dias e Lopes, 2006). O ciclo quinzenal que determina a ocorrência de marés vivas e marés mortas é extremamente importante na avaliação de inundações, uma vez que a quantidade de água oceânica que entra na laguna é determinada entre outros fatores pela amplitude de maré. De facto, estima-se que o prisma de maré na entrada da laguna em condições de maré viva seja de 136.7 10 6 m 3, e em condições de maré morta seja de 34.9 10 6 m 3 (Dias, 2001). Como as regiões adjacentes aos canais apresentam cotas topográficas reduzidas, a área inundada é inferior em maré morta do que em maré viva. As alterações morfológicas verificadas nos últimos anos na laguna, em particular o aprofundamento do canal de navegação que ocorreu após a extensão do molhe norte em 1987, e as dragagens gerais dos canais de navegação da Ria de Aveiro efetuadas no final da década de 90, são responsáveis por modificações na propagação da onda de maré na laguna (Araújo et. al, 2008). A comparação de níveis de água obtidos em dois levantamentos gerais de maré distintos realizados em diversas estações localizadas ao longo da Ria de Aveiro, um em 1987/88 e o outro em 2002/03, revelaram que as características da onda de maré se alteraram neste período. De facto, foram observados um aumento médio de 0.245 m na amplitude e uma diminuição média de 17.41º na fase do constituinte M 2. Em consequência destas alterações morfológicas, estima-se que a área inundada para a mesma condição de maré seja maior na atualidade, do que seria antes da realização das obras referidas. Para além das alterações morfológicas ocorridas na embocadura e nos canais principais de navegação, também ocorreram 94

alterações morfológicas no interior da laguna que alteraram a área inundada. É o caso das zonas relativas a um número significativo de antigas marinhas de sal, abandonadas num passado recente devido ao decréscimo da exploração económica do salgado na Ria de Aveiro. Este abandono conduziu à sua degradação, e consequentemente à queda e rutura de grande parte dos seus muros de proteção, aumentando a área alagável da laguna (Picado et al., 2011). Nível médio do mar Para além do aumento da amplitude de maré na embocadura da Ria de Aveiro, também o nível médio do mar tem subido. A análise de valores da elevação da superfície livre registada no marégrafo da Barra entre 1976 e 2003 mostrou que o nível do mar tem aumentado a uma taxa de 1.15±0.68 mm/ano (Araújo, 2005). Como consequência a intrusão salina ao longo dos canais da laguna aumentou, assim como a área marginal inundada. De destacar que a região do BVL é uma das áreas mais afetadas por estes fenómenos, de modo que atualmente as atividades agrícolas desenvolvidas nesta região se encontram ameaçadas pela intrusão salina. Nos anos 80 foi construído um dique (Figura 2) para impedir o alagamento dos campos agrícolas por água salinizada, no entanto, uma parte desta região não foi protegida, pelo que se encontra ainda muito vulnerável à intrusão salina. Figura 2- Região do BVL com o dique construído para proteger os campos agrícolas da intrusão salina (Google Earth). 95

Storm surges Na Ria de Aveiro ocorrem sobre-elevações de origem meteorológica (storm surges) quando se encontra localizado um centro de baixas pressões (ciclone) a N/NW da costa portuguesa, acompanhado de um centro de altas pressões (anticiclone) a S/SW. A geração de ventos fortes de sul surge frequentemente associada a esta situação sinóptica. A Figura 3 representa a situação sinóptica descrita, tendo sido obtida através de reanálise de dados da pressão atmosférica para o dia 16 de Fevereiro de 1986. Figura 3- Mapa sinóptico para o dia 16 de Fevereiro de 1986 (http://www.meteociel.com). A série temporal de elevação da superfície livre registada no marégrafo da Barra no ano de 1986 foi também analisada. Calculou-se a maré residual (Figura 4b)), subtraindo os valores da elevação prevista para a maré astronómica aos valores simultâneos da elevação registada no marégrafo (Figura 4a)). Esta análise permitiu verificar a ocorrência de um evento de storm surge no dia 17 de Fevereiro, assim como identificar as suas características e fase da maré, tendo-se apurado que teve uma amplitude de cerca de 1 m 96

(Figura 4b)) e que terá ocorrido em maré morta (Figura 4a)). Apesar de ser considerado intenso, este evento não causou inundações atípicas nas zonas marginais da Ria de Aveiro, devido a ter ocorrido em situação de maré morta (com amplitude de maré de apenas 1 m). É importante salientar que se este evento tivesse ocorrido em situação de maré viva (com maior amplitude de maré), certamente que teria provocado uma maior inundação marginal, com consequências mais nefastas. Figura 4- a) Elevação observada e prevista; b) Maré residual; entre os dias 10 e 21 de Fevereiro de 1986. Descargas fluviais Apesar de não serem fundamentais no estabelecimento da hidrodinâmica lagunar, as descargas fluviais têm um papel importante na inundação marginal da Ria de Aveiro. Os eventos de inundação mais adversos na laguna ocorrem quando a precipitação, e consequentemente os caudais fluviais, são elevados. O seu efeito faz-se sentir principalmente junto à foz dos rios, nomeadamente na região do BVL (Figura 2), devido à descarga dos rios Vouga e Antuã. No entanto, se a precipitação for intensa e persistir por longos 97

períodos este efeito pode sentir-se em toda a laguna, uma vez que os caudais fluviais aumentam significativamente. Modelação da inundação na Ria de Aveiro Para simular a inundação na Ria de Aveiro foi utilizado o modelo numérico ELCIRC (Zang et al., 2004). Uma versão anterior do modelo desenvolvida por Picado et al. (2010), e que contempla a circulação nos canais da Ria de Aveiro, foi melhorada incorporando na malha numérica as regiões intermareais, assim como as zonas marginais aos canais da laguna (Figura 5). A versão atual apresenta 219722 nodos e 434912 elementos (triângulos a cinzento representados na Figura 5). Figura 5- Malha numérica, com inclusão das zonas marginais à Ria de Aveiro. A escala de cores representa a profundidade e as linhas a cinzento os elementos do modelo numérico. O modelo foi calibrado ajustando os coeficientes de atrito de fundo, ajustando as previsões numéricas da elevação da superfície livre com dados de elevação observados na laguna em campanhas realizadas entre 2002 e 98

2003. Depois de calibrado, o modelo hidrodinâmico foi aplicado à Ria de Aveiro com o objetivo de averiguar a influência do caudal fluvial na inundação das suas zonas marginais. Neste âmbito foram efetuadas duas simulações numéricas independentes: cenário onde o modelo hidrodinâmico é forçado apenas com a maré astronómica (Figura 6); cenário onde para além da mesma condição de maré se considera que o modelo é forçado pelo caudal fluvial dos rios Boco, Vouga, Antuã, Cáster e Braço Sul (Figura 7). A maré astronómica imposta corresponde a uma maré típica média de amplitude 2.1 m. Os caudais fluviais impostos correspondem a cenários hipotéticos, definidos atendendo à importância relativa de cada um dos rios, assim como aos valores típicos de descarga fluvial. Figura 6- Série temporal de elevação da superfície livre imposta na fronteira oceânica para ambos os cenários simulados. Figura 7- Caudal fluvial imposto nas fronteiras fluviais no segundo cenário simulado. Os resultados do modelo hidrodinâmico foram analisados para o 3º dia de simulação, que corresponde a uma amplitude de maré de 2.1 m e ao pico 99

de caudal fluvial. Foram construídos mapas de extensão de inundação para os dois casos, e calculou-se a área total da Ria de Aveiro inundada. A Figura 8 mostra os mapas de extensão de cheia para os dois cenários estudados. É de notar que a área inundada na parte central da laguna não é alterada no cenário 2 pela consideração da descarga fluvial, mostrando que o efeito do caudal fluvial fica confinado às zonas adjacentes à foz dos rios. Adicionalmente, verifica-se que a descarga fluvial dos rios Vouga e Antuã tem um maior impacto na determinação das zonas marginais inundadas, do que a descarga dos restantes rios. A maior área inundada na região adjacente à foz do rio Vouga deve-se certamente ao maior caudal fluvial imposto no Vouga relativamente aos restantes afluentes da laguna. Os valores da área total alagada são apresentados na Tabela 1 para os dois cenários em estudo. Verifica-se que em condições de maré média a área total alagada é de cerca de 73.4 km 2 e que a inclusão do caudal fluvial induz um aumento de cerca 45% no valor da área inundada da laguna. Figura 8- Mapas de extensão de cheias para os dois cenários descritos. 100

Tabela 1- Área inundada da laguna (km 2 ). Maré Média 73.4 Maré Média + Caudal 106.3 Conclusões O presente trabalho permitiu identificar as principais causas de inundação marginal na Ria de Aveiro. Concluiu-se que a inundação na Ria de Aveiro é dominada por causas de origem marinha, sendo a maré astronómica um forçamento determinante na extensão da inundação. Verificou-se que eventos de storm surge provocam um aumento da área alagada, no entanto os seus efeitos dependem da condição de maré em que ocorrem. Normalmente, eventos de storm surge intensos (amplitude cerca de 1 m) não provocam inundação adversa quando ocorrem em condições de maré morta. Por outro lado, eventos de storm surge menos intensos podem ter consequências gravosas se ocorrerem em maré viva. Discutiu-se ainda o efeito das alterações morfológicas da laguna na propagação da maré no sistema. Em particular, o aprofundamento do canal da embocadura e dos principais canais navegáveis conduziram a um aumento da amplitude de maré e a uma diminuição da fase, fazendo com que atualmente a maré tenha um maior efeito nas cabeceiras dos canais principais da Ria de Aveiro. Concluiu-se ainda que o efeito dos caudais fluviais é menos importante que a maré na determinação da inundação das áreas marginais da Ria de Aveiro, no entanto o seu efeito não é desprezável. De facto, mostrou-se que os seus efeitos na inundação estão na sua maioria confinados às regiões adjacentes à foz dos principais afluentes. É de salientar que os efeitos mais adversos na inundação ocorrem quando existe combinação de marés vivas, storm surge intensa, caudais fluviais elevados e precipitação intensa e persistente por vários dias. A aplicação do modelo numérico revelou-se uma ferramenta extremamente útil na avaliação da inundação marginal da Ria de Aveiro. As 101

simulações apresentadas neste trabalho permitiram determinar a área total da laguna inundada em condições de maré média, assim como perceber a influência do caudal fluvial na determinação da sua extensão. Através da análise dos resultados numéricos, para além de ser possível avaliar a influência relativa de cada um dos agentes causadores de cheias, pode-se ainda prever as regiões inundadas sob diferentes cenários. Esta potencialidade é extremamente importante para uma futura avaliação das zonas inundáveis e das consequências das cheias em cenários de alterações climáticas. Deste modo, pode-se considerar que a modelação numérica constitui um instrumento crucial no suporte à tomada de decisões, permitindo ainda avaliar o impacto de obras de proteção que pretendam previr a inundação de áreas prédeterminadas. Referências bibliográficas ANDRADE, C., Pires, H.O., Taborda, R., Freitas, M.C., 2006. Zonas Costeiras. Alterações Climáticas em Portugal Cenários, Impactos e Medidas de Adaptação Projecto SIAM II, Gradiva, Lisboa, 169-208. ARAÚJO, I.G.B., 2005. Sea Level Variability: Examples from the Atlantic Coast of Europe. Southampton, UK. University of Southampton. PhD. Thesis, 411 pp. ARAÚJO, I.G.B., Dias, J.M., Pugh, D.T., 2008. Model simulations of tidal changes in a coastal lagoon, the Ria de Aveiro (Portugal). Continental Shelf Research, 28, 1010-1025. DIAS, J.M., 2001. Contribution to the study of the Ria de Aveiro hydrodynamics. Aveiro. Portugal, Universidade de Aveiro. PhD. Thesis, 288 pp. DIAS, J.M., Lopes, J.F., 2006. Implementation and assessment of hydrodynamic, salt and heat transport models: The case of Ria de Aveiro Lagoon. Portugal. Environmental Modelling and Software, 21, 1-15. 102

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