Este documento faz parte do Repositório Institucional do Fórum Social Mundial Memória FSM memoriafsm.org
23/01/2006 Movimentos Sociais Lá fora do Hotel Hilton, a revolução Francisco Carlos Teixeira* Mesmo sem ter sido oficialmente aberto, o Fórum Social Mundial em Caracas já é uma grande festa de grupos, organizações e gentes as mais variadas. Algumas ruas e praças já estão ocupadas com barraquinhas e quiosques com amplo material do FSM e de outras atividades paralelas. Ao longo da Avenida Libertador, no centro da cidade, grupos de seguidores de Chávez e da revolução bolivariana explicam e divulgam seus objetivos. OS ANOS DOURADOS DO PETRÓLEO O centro nervoso da organização do FSM está no Caracas Hilton Hotel, uma imensa e nada graciosa estrutura arquitetônica da época do prosperidade petroleira da Venezuela. Entre 1973 quando da Guerra do Yom Kippur, seguida do bloqueio do petróleo decretado pelos países árabes contra o Ocidente até 1983 quando a crise mundial da dívida externa arrastou a Venezuela para a vala comum dos maus pagadores houve um poderoso sonho que embalou a maioria dos venezuelanos. Políticos, jornalistas e administradores acreditaram que o maná do petróleo era para sempre, sem percalços ou crises. A moeda nacional, o bolívar, equiparava-se às moedas fortes do Ocidente e as viagens ao exterior quer dizer, para Miami eram cotidianas. A agricultura e a indústria feneciam ante as compras regulares e aos pares, como diria o historiador Manuel Caballero, feitas no exterior. Tal farra cambial garantia a felicidade da classe média. A elite dirigente transferia para o exterior alguns bilhões de dólares, perenizando o atraso e o empobrecimento do país. Tudo isso explodiu na crise financeira e econômica geral de 1983 e acabaria, em dez anos, por gerar as revoltas militares de 1992, quando a figura de Hugo Chávez emergirá para por fim a IV República. Memória FSM memoriafsm.org 1
O sistema liberal representativo venezuelano fora inaugurado depois da queda de Marcos Perez Jiménez, em 1958, abrindo o caminho para a redemocratização do país, alcançada com a constituição de 1961. Esta criara na verdade um sistema de alternância formal entre dois partidos: a Ação Democrática (AD), conservadora, e o Copei, de cunho social-democrata. Impunha-se então um sistema bipartidário que mal encobria uma república oligárquica e conservadora, muito pouco interessada no bem-estar da população venezuelana. A exaustão do modelo se dá, por fim, com a ascensão de Chávez ao poder e a generalização da chamada revolução bolivariana. Nas ruas de Caracas, o que se vê hoje são sinais evidentes do impacto das transformações decorrentes da revolução comandada por Chávez. NO CARACAS HILTON Caracas é uma cidade confusa, com um traçado urbano produzido aleatoriamente pela prosperidade dos anos 70 e 80, com prédios sujos e uma coleta de lixo descuidada nada diferente de outras grandes cidades sul-americanas! O transporte urbano e o trânsito são caóticos; Moto-táxis suprem as necessidades de cruzar rápido a c idade, enquanto pequenas bancas de camelô vendem chamadas em celulares amarrados em cordões por 300 bolivarianos. Contudo, nada disso altera uma imensa simpatia da população, muito falante, na verdade cantante, com rádios e alto-falantes tocando insistentemente salsas e merengues. Todos estão dispostos a ajudar, indicar uma estação de metro ou um prédio público, muitas vezes acompanhando o turista. Enfim, Caracas embora declarada perigosa pela coordenação do FSM é, em face do Rio de Janeiro, Buenos Aires ou Ciudad de México, um centro amigável e pacífico. Grande parte do FSM se reúne no lobby do Caracas Hilton e várias de suas atividades Democracia Participativa e Inclusão Social, por exemplo dão-se aqui mesmo nas grandes salas desse hotel. O ar-condicionado é gelado, quase hostil. Os restaurantes, com alguma qualidade, são caros e formais, embora os garçons estejam claramente à beira de um ataque de nervos com o imenso público de clientes. Por fim, as instalações Memória FSM memoriafsm.org 2
de facilidades estão desativadas. Os encontros, ou reencontros, são freqüentes e grupos acompanham os acontecimentos do FSM sentados em suas poltronas com seus laptops. Contudo, é lá fora, nas ruas que o clima inicial do FSM surge com suas dimensões políticas e culturais mais claras. A Avenida Bolívar reúne inúmeros organismos públicos, autodenominados revolucionários, entidades estatais como as missões criadas pelo Governo Chávez - ou ONGs, grupos políticos e alternativos de todas as partes do mundo. O vermelho é a cor dominante, além das cores da bandeira da Venezuela. Para a maioria dos militantes, trabalhando ou não em missiones bolivarianas, trata-se claramente de um processo revolucionário em curso. Para muitos reunidos no Caracas Hilton, a revolução tem outro conceito, voltando-se para a autogestão, para a participação autônoma e a iniciativa local. Ainda uma vez, dá-se uma clara distinção em torno do papel do Estado, das suas instituições e dos partidos políticos no interior do FSM. E NAS RUAS Enquanto isso, nas ruas e avenidas de Caracas uma grande maioria da população, e não só os militantes, acredita claramente que se vive um processo revolucionário. Mas, enfim, o que seria a revolução? Não se trata, aqui, das transformações rápidas e radicais de radice, raiz! como se deu em 1917 na Rússia ou em Cuba depois de 1959. Por outro lado, alguns elementos que marcam os tempos presentes da Venezuela e, mais além, na Bolívia, Peru ou Equador podem ser claramente definidos como revolucionários. A própria presença de Chávez ou Evo Morales na presidência de seus países é um fato revolucionário. Na Venezuela e na Bolívia as elites brancas dominaram a política dos dois países, a ponto de a oposição chamar Chávez de el mono, o macaco em alusão ao seu tipo mestiço, como a maioria absoluta da população venezuelana. A eleição de Evo Morales, por sua vez, é o rompimento drástico com um sistema de apartheid vigente durante 500 anos naquele país. Mas não são apenas militantes bolivarianos e do MAS boliviano que acreditam numa revolução em curso. Jesse, por exemplo, é um estudante americano, falando um excelente espanhol, vindo de Boston. Distribui na Avenida Bolívar folhetos contra o Memória FSM memoriafsm.org 3
capitalismo e o imperialismo. Apenas alguns metros de Jesse, um estudante venezuelano, de nome Santoro, organiza uma banca de livros e folhetos de esquerda; um pouco depois, Fernando, estudante de economia da UFF, Niterói, Brasil, discute o caráter do governo Chávez. Todos acreditam que um mundo melhor é possível, que o capitalismo é o grande mal e o imperialismo é sua expressão maior. Todos três americano, venezuelano e brasileiro acreditam ainda presenciar, e participar, de uma revolução. Chávez, em face dos demais governantes do continente, é um avanço. Contudo, é preciso fazer mais, é preciso segundo eles tocar a raiz, ainda uma vez, da desigualdade: a propriedade do grande capital, em especial do grande capital internacional. No entanto, ainda hoje, El Universal, o grande periódico caraquenho, publica uma pesquisa de opinião onde uma mostra da população venezuelana, ouvida em oito cidades, se declara contra o fim da propriedade privada e a implantação de um sistema de propriedade comum ou coletiva. A pesquisa da empresa Alfredo Keller Y Asociados não distinguiu que propriedades seriam expropriadas e em que condições haveria a expropriação de terras, fábricas ou bens, podendo ser acusada de gerar mais confusão do que informar imparcialmente. De qualquer forma, a discussão avança no ritmo das próximas eleições e ao som de slogans gritados nas ruas: Chávez no se vá! Tanto a Assembléia Nacional quanto o próprio poder executivo anunciam um aprofundamento do processo revolucionário, ultrapassando a democracia representativa ainda no âmbito das instituições do Estado Liberal em direção a uma democracia participativa, expressa em slogans como el parlamento en la calle ou la democracia en calle. O que é uma democracia de ruas? Ainda não sabemos. Para os militantes, a democracia das ruas se constrói hoje, ao som de salsa e merengue revolucionários, como cantados por Ilma Garcez, la vocera del canto bolivariano. De qualquer forma, parece longe dos debates nos salões do Caracas Hilton. Para ver a revolução de Chávez é preciso ir para as ruas. Memória FSM memoriafsm.org 4
* Francisco Carlos Teixeira é professor de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Memória FSM memoriafsm.org 5