Estigmas e fronteiras: atribuição de procedência e cor dos escravos na freguesia de Nossa Senhora da Graça (1845/1888).

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Transcrição:

Estigmas e fronteiras: atribuição de procedência e cor dos escravos na freguesia de Nossa Senhora da Graça (1845/1888). Denize Aparecida da Silva Observar as designações atribuídas aos africanos e seus descendentes sobre sua procedência e cor, segundo alguns autores pode levar a reconhecer de forma mais apurada as relações sociais construídas por estas populações ao longo da história do Brasil. Para estudar este aspecto da história dos escravos e de seus descendentes na freguesia de Nossa Senhora da Graça foram pesquisados os registros de batismo dos cativos e dos ingênuos no período de 1845 a 1888. Assim como, os Inventários post mortem de São Francisco do Sul nas décadas de 1850, 1860 e 1870, especificamente aqueles que apresentaram em seu rol de bens dois ou mais escravos. Os registros de batismos da referida freguesia marcam uma ínfima quantidade de africanos, porém os processos de inventários, principalmente os da década de 1850 revelaram um significativo número de africanos entre os cativos do local. Observou-se ainda que nos inventários as informações eram mais precisas, foi possível identificar quando o avaliador estava se referindo a cor e a procedência do escravo. Era muito comum um mesmo indivíduo ser descrito como crioulo de cor preto ou crioulo de cor pardo, daí entendermos crioulo nesse caso como procedência. A análise de procedência e de cor sobre a população cativa da freguesia Nossa Senhora da Graça, tornou-se um exercício instigante. Nos registros de batismo não é evidente sobre o que o pároco estava se referindo ao enquadrar o batizando e seus pais numa determinada categoria. Talvez ao registrar uma criança como crioula estivesse se referindo a sua cor ou poderia ser sua procedência. Ao longo do período estudado não foi detectado em 1

nenhum registro referência a palavra cor, apenas foi anotado escravo crioulo, escravo pardo, escravo preto, entre outros e em alguns casos não foi feito anotação sobre este aspecto. De modo que, neste texto, para os registros de batismo o termo crioulo está relacionado a cor. Os dados impressos na documentação sugerem e provocam questões bem interessantes sobre as definições atribuídas aos cativos desta freguesia. E ainda mais, qual era a representação da população escrava africana diante da crioula e qual era a direção e ritmo de crescimento do contingente escravo na freguesia estudada? Os inventários deixam transparecer que, ao contrário do que se constatou nos registros de batismo, a população africana em São Francisco do Sul, em algum momento do passado não muito distante de 1845 quando começa a análise deste trabalho, foi expressiva e heterogênea quanto à procedência destes africanos. Nos registros de batismo, o número de africanos foi muito pequeno, não chegando sequer a um por cento dos batismos, enquanto que, nos inventários a presença africana foi bem mais marcante. Na tabela 01 pode-se observar em detalhes a presença africana assinalada nos registros de inventários. Tabela 01 Distribuição dos escravos inventariados pela atribuição de procedência, nas escravarias com dois ou mais escravos (São Francisco do Sul, 1850-1859; 1860-1869; 1870-1879). Período Procedência atribuída 1850 a 1859 1860 a 1869 1870 a 1879 Nº Absol. % Nº Absol. % Nº Absol. % Crioulo 252 53,5 267 58,2 315 82,2 Africano - - 13 2,8 31 8,1 Benguela 22 4,7 12 2,6 - - Congo 20 4,2 8 1,8 - - Nação 23 4,9 18 3,9 - - Outras Proc.* 22 4,7 13 2,8 1 0,3 Sem Proc. 132 28,0 128 27,9 36 9,4 Total 471 100,0 459 100,0 383 100,0 Fonte: Processos de inventários post mortem. Arquivo do Fórum de São Francisco do Sul. * Na categoria outras procedências estão incluídos os angola, cabinda, caçange, galinha, gege, inhanbane, manjolo, mina, moçambique, nagôa, rebolo. Para o período de 1850 a 1859, foram registrados 87 africanos, deste, 48 eram homens e 39 eram mulheres, a maior concentração de africanos foi neste período, parece interessante observar que o termo africano não foi descrito em nenhum registro de inventário desta época. Este fato pode significar que para aquele momento era importante ser mais preciso sobre a origem do cativo, ou talvez que o próprio escravo tivesse uma noção exata de suas origens e que referenciá-las fosse uma forma de marcar seu espaço no grupo. 2

Na década de 1860 foram verificados 64 africanos, destes, 40 eram homens e 24 eram mulheres e para a década de 1870 o número de africanos que apareceram nos registros de inventários caiu para 32, deste, 19 eram homens e 13 eram mulheres. Percebe-se que a população escrava africana vinha diminuindo no decorrer de uma década para outra, isto pode significar um indicativo do efeito da proibição do tráfico atlântico sobre os plantéis da região. Outro aspecto bastante importante, que marcou os três períodos foi o predomínio do contingente de escravos homens sobre o de mulheres, fato que corrobora com os dados registrados pela historiografia da escravidão em outras regiões do Brasil. Muito provavelmente os senhores de escravos de São Francisco do Sul, a exemplo do mercado escravista nacional, davam preferência pela mão-de-obra cativa masculina. A composição da população escrava africana em São Francisco do Sul contemplava uma variada gama de regiões e culturas daquele continente, porém é nítido o predomínio dos povos africanos vindos de portos da África Central Atlântica. Essa característica se assemelha muito ao que Karasch percebeu em seus estudos sobre o Rio de Janeiro, na primeira metade de século XIX 1. Muito provavelmente a população cativa da freguesia da Nossa Senhora da Graça foi eminentemente crioula. Isto não só porque os registros de batismo comprovam e evidenciam, mas também porque o período que esse trabalho se propõe analisar, está inserido no contexto após a lei de proibição do tráfico (1850/51) de escravos africanos. Ao que parece, a chegada de africanos no porto de São Francisco do Sul, principalmente após a década de 1850 era algo raro, informação comprovada pelo ínfimo índice de batismo de adultos, a não ser que estes fossem batizados antes de virem para cá. Um outro dado que evidência esta tendência no contingente cativo da freguesia foi o pequeno número de registro de batismo de filhos de africanas. Dos 1600 batismos pesquisados na freguesia de Nossa Senhora da Graça, nove deles eram de filhos de africanas. Muito embora tenham sido nove batismos de filhos de africanas, mas,na verdade foram oito mulheres ditas de nação que levaram suas crianças á pia batismal. Pois, Mariana da nação Benguela, aparece duas vezes nos documentos, ao batizar suas filhas, Marta em 1845 e Isabel em 1851. Sob o estigma da cor 1 KARASCH, obra já citada. Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). Tradução Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 3

A análise de atribuição de cor aferida aos escravos africanos e seus descendentes é de grande relevância para esta discussão, porque se espera responder indagações sobre as sociabilidades interna e externa dos cativeiros da freguesia estudada. A historiografia mais recente sobre escravidão aponta na direção de que não era a cor da pele que levava a uma definição da alusão à cor anotada nos documentos. No caso em análise, fica mais complicado fazer um diagnóstico, uma vez que os documentos trabalhados são registros de batismo. Trata-se, na maioria das vezes, do registro de crianças recém-nascidas, dificultando ainda mais uma atribuição da cor. Na freguesia de Nossa Senhora da Graça, foi comum os párocos registrarem designações sobre a condição do batizando, um dado peculiar estava relacionado ao que neste estudo compreende-se como atributo de cor dos cativos. Para os registros dos batistérios dos escravos e dos ingênuos as informações sobre este aspecto são analisadas mediante aos dados apresentados na tabela 02. Tabela 02 - Distribuição dos batizandos escravos e ingênuos por cor atribuída na freguesia de Nossa Senhora da Graça (1845-1888). Cor Período do 1845 a 1849 1850 a 1859 1860 a 1871 1872 a 1888 Total geral Absol. Absol. Absol. Absol. batizando Nº % Nº % Nº % Nº % Nº Absol. % Crioulo 178 67,9 347 63,7 105 25,7 - - 630 39,6 Pardo 74 28,2 158 28,9 131 32,2 245 65 608 38,3 Mulato - - 3 0,6 2 0,5 - - 5 0,3 Preto - - 14 2,6 3 0,7 111 29,3 128 8 Fula - - - - - - 10 2,7 10 0,6 Branco - - - - - - 7 1,9 7 0,4 Não espec. 10 3,9 23 4,2 167 40,9 4 1,1 204 12,8 Total 262 100 545 100 408 100 377 100 1592 100 Fonte: Livros de Registros de batismos da Freguesia de Nossa Senhora da Graça. Arquivo da Mitra Diocesano de Joinville. Na freguesia de Nossa Senhora da Graça percebe-se que, durante os períodos dos batismos de escravos principalmente na década de 1860, houve um suposto descaso dos representantes da igreja em registrar uma referência para aquilo que se pode designar como cor dos indivíduos. A indagação bastante pertinente é: por que durante esse intervalo de 1860 a 1871 há um expressivo número de registros de batismo sem nenhuma informação que possa contar sobre a cor dos escravos? E ainda mais, por que quanto mais se aproxima do período de 1871 o número de batizandos registrados como crioulos, diminui gradativamente até chegar a desaparecer dos documentos? 4

Quanto a isso, alguns autores podem contribuir e fornecer pistas para esta discussão, em Das Cores do Silêncio Hebe Maria Mattos 2, levanta o aspecto de atribuição de cor como critério fundamental de diferenciação social na estrutura da sociedade brasileira para algumas décadas do século XIX. É preciso dizer que os documentos analisados pela autora são processos crimes ao passo que neste trabalho a leitura está centrada nos registros de batismo e processos de inventários post mortem. Constata-se, contudo, que há semelhanças nos resultados dos dois estudos. Se, como afirma Mattos, que até a década de 1860 o simples fato de ser considerado branco já elevava o indivíduo a status de livre. E que logo após este período houve uma reestruturação na forma de definir quem era quem na sociedade brasileira. Então, entende-se que até meados de 1860, a cor servia como forma de legitimar a posição social das pessoas, indicando qual era a condição de cada indivíduo na hierarquia social. Porém, após esse período novos critérios foram adotados para impingir uma posição social a uma determinada pessoa. Na freguesia estudada, até 1860, essa diferenciação parecia estar focalizada em ser livre ou escravo. No mundo escravo a relevância estava em ser crioulo ou africano, ainda que se diga que a maioria da população cativa da localidade estudada fosse eminentemente crioula, assim mesmo parecia ser de grande importância diferenciar crioulos de africanos. Sobre esta questão, parece bem relevante discutir sobre o grande número de crioulos registrados no período de 1845 a 1860, nota-se que bem mais da metade dos batizandos recebeu como atributo a definição de crioulo. Muito embora, o mais provável seja que crioulo neste momento tivesse um significado e uma intenção que não estava relacionada especificamente a cor da pele do indivíduo, mas sim sobre sua procedência e talvez sobre sua posição social. Vale lembrar que nos processos de inventários post mortem o maior contingente de crioulos estava posto na década de 1870, fato que a princípio parece contrariar os dados dos registros de batismo. Mas se naqueles documentos o termo crioulo designa a procedência do escravo, então realmente não é estranho que o maior número de crioulos apareça nos anos mais distantes do fim do tráfico escravo africano. Na freguesia de Nossa Senhora da Graça entre 1860 e 1871 percebeu-se uma significativa ausência de atributo de cor aos batizandos, mais de 40% tinham em seus batistérios o que se pode definir como ausência de cor. É bastante provável que nesse momento os critérios e conceitos sobre a cor dos indivíduos estivessem passando por transformações. Para o período de 1871 a 1888 os documentos apontam para um cuidado em 2 MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. 5

que fosse definido um atributo de cor aos africanos e seus descendentes. Tudo indica que na freguesia de Nossa Senhora da Graça, já não bastava mais distinguir crioulos de africanos, outros termos surgiram para redefinir posições sociais no mundo dos escravos e consequentemente na relação destes com o mundo dos livres. No texto Hebe Mattos indica que depois de 1860 aumenta o número de brancos não possuidores de escravos, bem como o número de pretos libertos e livres, a ponto de provocar uma reestruturação nas formas de diferenciação social. Tudo parece fazer sentido para a realidade da freguesia de Nossa Senhora da Graça. Como o número de libertos, forros e livres vinha aumentando, principalmente depois de 1871, a sociedade criou novos critérios para distinção social, fator percebido também neste estudo. É marcante como após 1871 a informação sobre a cor aparece bem definida e o número de crioulos chegou mesmo a desaparecer, nos registros de batismo, depois dessa data. Surgem nos documentos os termos, pardo, preto, mulato, fulo e branco o que não era comum até 1871. Isto leva a pensar em duas direções, uma que realmente as relações sociais sofreram mudanças em meados da década de 1860, impondo e desenhando novos limites para a posição dos indivíduos diante da hierarquia social; outra vai no sentido de que houve uma relativa aproximação entre os indivíduos pobres, fossem eles brancos ou pretos. De 1871 a 1888 alguns ingênuos foram registrados como brancos. Talvez tenha sido engano do vigário, mas pode ser também um indicador de mestiçagem. Entende-se mestiçagem pelo conceito de Kabengele Munanga que na sua obra Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil define o termo 3. Neste caso, ao analisar sobre os ingênuos denominados brancos como mestiços entende-se que eram indivíduos que nasciam do cruzamento ou miscigenação entre populações biologicamente diferentes. No entanto, não parece provável que em tão pouco tempo, cerca de duas décadas, tivesse havido um elevado processo de cruzamento entre as populações, de São Francisco do Sul, biologicamente diferentes. No sentido de justificar o relativo leque de denominações de cores atribuídas aos escravos africanos e seus descendentes na década de 1870. Sendo assim, é importante esclarecer que, quando se remete a discussão da atribuição e/ou silêncio sobre a cor dos cativos africanos e seus descendentes, busca-se uma aproximação com as idéias de Mattos. Entende-se que as mudanças nos critérios de atribuição de cor foram mais uma 3 MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. p. 21. 6

estratégia de garantir e demarcar posição na sociedade, do que propriamente distinguir a cor da pele dos indivíduos 4. Para a freguesia de Nossa Senhora da Graça o fato é que até 1860, tudo parecia estar bem arranjado, os párocos definiam os escravos na sua maioria como crioulos ou como pardos e outros termos estiveram praticamente ausentes. Para a década de 1860 houve uma indefinição, grande parte dos batizandos não recebeu nenhuma alusão sobre sua cor, foi um momento marcado pela ausência do registro da cor. Porém, a partir de 1871, o critério da cor volta a ter importância e o leque de referências se multiplica, vêem-se ingênuos sendo tratados como mulato, fulo, e branco, assim como pardo e preto, porém não mais como crioulo. Por outro lado é importante lembrar que havia um padrão oficializado pela Igreja sobre os dados que os párocos deveriam anotar nos registros de batismo 5. Muito embora alguns aspectos ao que parece ficavam a critério do vigário ou do responsável em fazer a anotação sobre o batismo, pois ao longo do tempo percebem-se pequenas variações nas informações anotadas. De qualquer forma parece provável que alguma coisa estava mudando nos padrões sociais em relação à distinção dos grupos. Acredita-se que a partir da década de 1870 o critério da cor teve um peso bastante decisivo para arranjar os indivíduos num determinado grupo e ao mesmo tempo afastá-los de outros. Os registros de batismos da freguesia estudada sugerem e, de certa forma, confirmam a idéia. Os párocos da freguesia de Nossa Senhora da Graça agiram da mesma forma e isto não parece incidir numa simples coincidência. Sobre a questão das noções de cor, um outro estudo que pode ajudar na análise, é o trabalho de Mary Karasch, já aludido neste texto. Os resultados encontrados por Karasch são pertinentes para este texto, ainda que a referência de tempo da pesquisa da referida autora esteja relacionada aos anos de 1808 a 1850. Os dados sobre os escravos do Rio de Janeiro apresentados pela autora sugerem que os africanos quase sempre eram definidos como pretos. Na freguesia Nossa Senhora da Graça no período de maior concentração de africanos, a década de 1850, o termo preto é praticamente nulo. Sendo assim, o melhor indicativo seja mesmo que o mais importante para esta localidade era diferenciar os escravos por crioulos ou por africanos, isto até 1860. 4 MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 98 e 99. 5 NEVES, Maria de Fátima Rodrigues das. Ampliando a família escrava: compadrio de escravos em São Paulo do século XIX. In: Nadalin, Sergio Odilon, et alii (coord.). História e população: estudos sobre a América Latina. São Paulo: Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados, 1990. 7

Pode-se ainda, para esta discussão, recorrer aos inventários post mortem de São Francisco do Sul e comparar as informações sobre a atribuição de cor com as dos registros de batismos. Para isso, procede-se a análise dos dados da tabela seguinte. Tabela 03 Distribuição dos escravos inventariados pela atribuição de cor, nas escravarias com dois ou mais escravos (São Francisco do Sul, 1850-1859; 1860-1869; 1870-1879). Período Cor atribuída 1850 a 1859 1860 a 1869 1870 a 1879 Nº Absol. % Nº Absol. % Nº Absol. % Cabra 1 0,2 - - - - Fulo - - 1 0,2 2 0,5 Mulato 32 6,7 18 4,0 11 3,0 Mulato Claro 1 0,2 2 0,4 - - Mulato Escuro - - 2 0,4 - - Pardo 42 9,0 104 22,6 137 35,7 Pardo Claro 2 0,4 - - - - Preto 63 13,5 140 30,5 166 43,3 S/Especif 330 70,0 192 42,0 67 17,5 Total 471 100,0 459 100,0 383 100,0 Fonte: Processos de inventários post mortem. Arquivo do Fórum de São Francisco do Sul. O que se constatou nos registros de inventário post mortem foi a mesma tendência sobre a atribuição de cor vista nos registros de batismos, à medida que se aproxima de 1880 vai diminuindo à incidência de falta de atribuição da cor para os indivíduos. Ou seja, na década de 1850 não tinham referência sobre a cor 70% dos escravos inventariados, para a década de 1860 este número cai para 41% chegando a representar apenas 17% na década de 1870. Isto pode significar que a partir da década de 1860 a cor começou e ter importância como atributo de distinção social, por isso tornou-se constante nas anotações dos avaliadores. Lembrando ainda que nos inventários ficou nítido quando o avaliador estava se referindo a cor e a procedência do cativo. Se por outro lado, entender-se o termo crioulo sob a ótica exclusiva de procedência, então a análise se remete para a direção apontada por Marisa de Carvalho Soares em Devotos da Cor 6, de que o termo crioulo era uma designação exclusiva da primeira geração de descendentes de africanas nascidos no Brasil. Então, não é estranho que o termo tenha desaparecido dos registros documentais, em especial nos batistérios, já nos primeiros anos da década de 1860, pois, a freguesia alvo deste estudo estava localizada numa região distante da 6 A autora sugere que ser crioulo é uma condição provisória que afeta apenas uma geração de cada descendência SOARES, Mariza de C. Devotos da cor. Identidade étnica, religiosa e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,2000. p.100 8

intensa rota do tráfico e com uma presença de africanos que vinha diminuindo sensivelmente após 1850. Desta forma pode-se sugerir, que a partir da década de 1870 a população escrava de São Francisco do Sul não poderia ser definida como maioria crioula, tratava-se sim de indivíduos que eram descendentes de gerações de escravos que estavam no Brasil há mais tempo. O mais provável é que a ligação desses indivíduos com a África estivesse marcada num período mais distante, tratava-se possivelmente de netos e quem sabe bisnetos de africanas. Tanto os inventários post mortem de São Francisco do Sul como os registros de batismos da freguesia de Nossa Senhora da Graça apontam para a mesma direção. Esses documentos confirmam a idéia de que a sociedade brasileira na década de 1860 passou por profundas mudanças quanto aos critérios de diferenciação social. E que logo após esse período a cor atribuída passa a ser um importante critério para limitar e/ou ampliar as fronteiras sociais dos escravos e seus descendentes. Para o mundo dos cativos, na freguesia Nossa Senhora da Graça, pode-se pensar que até meados de 1860 o importante era diferenciar crioulos de africanos, portanto o peso estava na atribuição de procedência. E que logo após este período a consideração estava centrada na definição de cor. Referências Bibliográficas CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil: 1850-1888. Tradução de Fernando de Castro Ferro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. FLORENTINO, Manolo e GÓES, José R. A paz das senzalas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. GUTIÉRREZ, Horácio.Crioulos e Africanos no Paraná, 1798-1830. In: Revista Brasileira de História. V.8, n.16, março-agosto/1988. HARO, Martim Afonso Palma de (org.). Ilha de Santa Catarina: relatos de viajantes do século XVIII e XIX. 3ª ed. Florianópolis: UFSC, 1990. KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). Tradução Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 9

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