Quem tem medo da Fada Azul?



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Transcrição:

Quem tem medo da Fada Azul?

Lino de Albergaria Quem tem medo da Fada Azul? Ilustrações de Andréa Vilela 1ª Edição POD Petrópolis KBR 2015

Edição de Texto Noga Sklar Ilustrações Andréa Vilela Capa KBR sobre ilustração de Andréa Vilela Copyright 2015 Lino de Albergaria Todos os direitos reservados ao autor. ISBN: 978-85-8180-429-3 KBR Editora Digital Ltda. www.kbrdigital.com.br atendimento@kbrdigital.com.br 55 21 3942.4440 JUV000000 - Ficção juvenil

Formado em Letras e Comunicação, com mestrado em Editoração na Universidade de Paris, Lino de Albergaria nasceu em Belo Horizonte e morou durante algum tempo no Rio de Janeiro e São Paulo. É autor de dois romances para o público adulto, mas a maior parte de seus livros é dirigida para o público juvenil. Para o autor, as histórias são mais importantes do que quem as escreve. Seu mundo favorito é a lua, com seus dragões, unicórnios, fadas e gigantes, incluindo aquele espelho que um autor tem que atravessar toda vez que volta à terra. Email: linoalb@terra.com.br

-1- Por que todas as meninas e todos os meninos ganham presentes de aniversário, menos meu irmão e eu? Bom, acho que as crianças que são pobres, muito pobres mesmo, também não ganham presentes. Ou os índios, ou gente que vive muito afastada da nossa civilização, como os esquimós e os aborígenes da Austrália. Em relação a esses, não tenho muita certeza, mas minha mãe diz que em lugares assim, também conhecidos como fim de mundo, não existe consumismo. Minha mãe e meu pai são radicalmente contra o consumismo. Aqui em casa não tem Natal nem Dia das Crianças. O lugar mais perigoso para nós, que eu só vejo de certa distância, é o shopping center. Lá tudo é supérfluo, caríssimo, cheio de armadilhas para fazer com que as pessoas comprem 9

Lino de Albergaria coisas inúteis. Crianças que vão desde muito pequenas ao shopping viram robôs. Não sabem escolher nada que seja útil nem conhecem o verdadeiro valor das coisas. Só aprendem a gastar e a gastar e a querer presentes. Cada vez mais presentes. Será que algum dia eu entrei ali e não me lembro? Só se foi à noite, e dentro de algum sonho. Esqueci os detalhes logo que acordei, mas me ficou essa vontade. Eu não devia querer isso, mas eu quero. Queria saber o que é ganhar um presente. Pois então, naquele dia, quando meu pai e minha mãe saíram para uma manifestação contra o desmatamento da Amazônia e eu brincava de teatrinho de fantoches com o Mateus, meu irmão menor, ele resolveu inventar que o nosso teatrinho podia se transformar em um programa de televisão. Ficou louco, Mateus? eu não estava acreditando que meu irmãozinho quisesse brincar com aquela coisa proibida que nosso pai nunca deixou entrar lá em casa. 10

Lino de Albergaria Por que não, Débora? A gente pode brincar de tudo, não pode? Brincar de tudo eu não sabia se era possível. Minha mãe dizia que os jogos e as brincadeiras eram coisas saudáveis. Só que havia tantas coisas proibidas, como ganhar presentes, ir ao shopping center, assistir televisão. A gente devia brincar com os fantoches ou com os tocos de madeira, que tinham sido os brinquedos favoritos de meus pais. Os toquinhos tinham vindo da infância dele, e as figurinhas de feltro eram do tempo em que ela era criança. A gente também podia se distrair com os livros que minha mãe escolhia na biblioteca pública e que a gente sempre tinha de devolver. Ter mais coisas, fora os toquinhos de madeira e os fantoches, era consumir. Consumir, segundo meu pai, era ter armários cheios de trecos sem muito uso. E os livros guardados ainda serviam para juntar poeira e fazer espirrar, achava minha mãe. Assim, mesmo se a gente gostasse daquela história, tinha de devolver para a biblioteca. Para que outras crianças também lessem e gostassem, nas palavras de meu pai. 12

Quem tem medo da Fada Azul? Você anda vendo televisão, Mateus? perguntei, muito chocada com a suposição que me veio à cabeça. Eu não sou cego, Débora. É só olhar pela janela de qualquer casa. Sempre tem alguém numa sala ou num quarto olhando para a televisão. Bem que eu tenho vontade de saber o que acontece dentro daquela tela. A gente nunca deve dizer cego ou anão ou aleijado. Não é correto, mas eu nem corrigi meu irmão. Tela. Foi nessa palavra que eu mais reparei. Na minha lembrança, televisão era um tipo de caixa, mas, para minha surpresa, as televisões não pareciam mais caixas, só as muito antigas. Foi o que meu irmãozinho começou a me explicar. Entretanto, por trás da cabeça dele, em cima da mesa de jantar, aberta e virada de frente para mim, se achava a caixa bem grande e vazia onde a gente guardava nossos fantoches, Pinóquio, Gepeto e o Grilo. Mateus olhou na mesma direção que eu, parece que roubou meu pensamento. E agarrou a caixa. 13

Lino de Albergaria Pronto, agora nós temos uma televisão! Xi, não grita, menino! eu sabia que nossos pais não estavam por perto, mas falar tão alto o nome de uma coisa tão ruim no mínimo iria trazer azar para nós. Bom dia! Mateus começou a imitar a voz do Pinóquio. Sempre fazemos as mesmas vozes para nossos personagens. A de Gepeto é grossa, a do Grilo sai pelo nariz e a de Pinóquio é mais fina. Bom dia... respondi, com uma voz que não era nem tão grossa nem tão nasal. Ainda não tinha decidido se era Gepeto ou o Grilo quem ia entrar em cena. De agora em diante nós moramos dentro da televisão! Pinóquio anunciava numa voz sussurrada, enquanto os olhos de Mateus brilhavam, um brilho que não dava para entender se era de coragem, de atrevimento ou de desobediência. Com a mão esquerda eu segurava Gepeto, e com a direita, o Grilo. Eles não se mexiam, os dois bem distantes da caixa. 14

Lino de Albergaria Entrem! Entrem logo! Pinóquio pulava lá dentro e fazia gestos meio malucos. Dá licença... minha voz engrossou, enquanto Gepeto deu uns passos meio tímidos na direção de seu filho. Você também, Grilo! Pinóquio convidava, insistente. Nessa hora minha mão direita tremeu, e a cabeça do Grilo se virou para mim. Engasguei, sem saber o que dizer. Olá, Pinóquio! Que bela casa! quem falava por Gepeto era o Mateus. E o danado ainda ia empurrando devagar meus dedos, fazendo com que o velho também entrasse na caixa. Será que isso está certo? o Grilo falou, sem sair do lugar. Se quiser, fique de fora nos assistindo disse Pinóquio, dando uma cambalhota na frente de Gepeto. Nesse dia o Grilo ficou de fora, só assistindo ao programa apresentado pela voz fina e pela voz grossa. E minha mão esquerda é que comandava os movimentos de Gepeto lá dentro da televisão, mesmo que Mateus falasse por ele. 16