AVALIAÇÃO DO CONHECIMENTO TRADICIONAL DOS PESCADORES DA RDSM APLICADO À IDENTIFICAÇÃO DO SEXO DE PIRARUCUS

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Transcrição:

UAKARI, v.5, n.2, p. 59-66, dez. 2009 RESUMO AVALIAÇÃO DO CONHECIMENTO TRADICIONAL DOS PESCADORES DA RDSM APLICADO À IDENTIFICAÇÃO DO SEXO DE PIRARUCUS Kelven Lopes 1 Helder Lima de Queiroz 1 Este trabalho analisou a aplicação do conhecimento tradicional dos pescadores de Mamirauá na determinação do sexo de pirarucus Arapaima gigas Schinz 1822. Foram avaliados os critérios utilizados para esta determinação pelos pescadores do setor Jarauá, na Reserva Mamirauá, no período de outubro e novembro de 2004. Foram analisadas as respostas de um grupo de aproximadamente 15 pescadores experientes do próprio setor Jarauá de um total de 109 indivíduos de pirarucus analisados, divididos entre 65 machos e 44 fêmeas. Deste número total, apenas 64 animais tiverem o sexo diagnosticado corretamente pelo grupo de pescadores. Apesar do conhecimento tradicional dos pescadores serem fundamental para viabilizar a pesca manejada da espécie, constata-se que o conhecimento tradicional não é funcional para sua aplicação na discriminação do sexual. Verificou-se que o grupo de pescadores não reconhece o sexo dos pirarucus, embora alguns critérios utilizados pelos pescadores neste reconhecimento sejam consistentes com a biologia da espécie. Os índices de acerto dos diagnósticos de reconhecimento de pirarucus machos e fêmeas foram similares àqueles obtidos ao acaso, mesmo quando os critérios aplicados foram consistentes, como o critério coloração, que foi significativamente consistente para identificação de machos. Apesar disso este critério aparentemente não é aplicado de forma correta pelo grupo de pescadores entrevistados na RDSM. Palavras-chaves: Pirarucu, Arapaima gigas, Manejo de pesca, Conhecimento tradicional. ABSTRACT This study examined the traditional knowledge of fishermen at Mamirauá Reserve about sex determination of pirarucus, Arapaima gigas Schinz 1822. We evaluated the criteria used for by fishermen in the sector Jarauá at Mamirauá Reserve for this determination, during the fisheries season, from October to November 2004. We analyzed responses of a group of about 15 fishermen collected in structured interviews regarding 109 individual pirarucus, 65 males and 44 females. From this sample, only 64 fish have their sex correctly predicted by the fishermen. Although the traditional knowledge of local fishermen is a key component of the sustainable fisheries of this species, this knowledge is not functional in all ranges and aspects, as in sex distinction. We found that the local fishermen evaluated are not able to recognize the sex of pirarucus, although some criteria applied for this purpose are consistent with their biology. The rates of correct forecasts for recognition of males and females were similar to those obtained by chance, even when the criteria applied were consistent, as the criterion coloration, which was significantly consistent for identification of males. Yet the group of fishermen interviewed in this study apparently did not apply this criterion correctly. KeyWords: Pirarucu, Arapaima gigas, Fisheries management, Reproduction, Traditional knowledge. 1 Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá - IDSM, e.mail: lopeskelven@yahoo.com.br 59

Lopes, K.; Queiroz, H. L. Avaliação do conhecimento tradicional dos pescadores da RDSM. INTRODUÇÃO Pertencente a família Arapaimatidae o pirarucu, Arapaima gigas Schinz 1822, é um teleósteo de grande porte que pode alcançar entorno de 3m de comprimento e pesar até 200-250 kg (SOUZA; VAL, 1990; WOTTON, 1990; QUEIROZ, 2000; REIS et al, 2003). Possui distribuição natural na bacia Amazônica, ocorrendo nas Guianas, onde recebe o nome de Warapaima, na Venezuela, Peru, Colômbia e Equador, onde recebe o nome de Paiche e no Brasil, com o nome de Pirarucu, que nas línguas do tronco Tupi quer dizer peixe (pira) vermelho (urucu) (FONTENELE 1948; BARD; IMBIRIBA, 1986; IMBIRIBA, 1991) em referência à sua coloração vermelha, que é mais proeminente no macho desta espécie (QUEIROZ, 2000). A espécie também tem ocorrência moderna na Bolívia, onde foi introduzido em meados dos anos oitenta, através do Rio Madre de Dios, por meio da fuga acidental de animais numa estação de piscicultura da região da cidade de Puerto Maldonado, no Peru (FARREL; AZURDUY, 2006). Este fisóstomo apresenta ciclo reprodutivo longo, atingindo a maturidade sexual com 4 a 5 anos, com peso em torno de 40 a 45 kg com aproximadamente 1,65 m (PONTES, 1977; QUEIROZ, 2000; LOPES, 2005). Outra característica marcante da espécie é que ambos os sexos apresentam somente uma gônada localizada no lado esquerdo da cavidade abdominal (LOPES, 2005; LOPES; QUEIROZ, 2009). A época de desova está relacionada com o inicio do período chuvoso, variando conforme acontecem às chuvas na Amazônia (QUEIROZ; SARDINHA, 1999). O pirarucu não apresenta caracteres sexuais secundários que permita a correta diferenciação entre os sexos por um observador, o que representa a primeira grande dificuldade para o desenvolvimento do manejo reprodutivo da espécie em cativeiro. A discriminação entre os sexos por meio de critérios visuais só é possível de maneira eficiente nos dias antecedentes à desova, quando a coloração vermelha do macho tornase mais intensa, contrastando com o restante do corpo escuro e deixando-o aparentemente mais colorido em relação às fêmeas. Já a coloração das fêmeas nesta mesma época torna-se mais pálida em relação ao macho (FONTENELE, 1948; LOPES 2005). Embora o pirarucu apresente várias características zootécnicas vantajosas em relação às demais espécies de peixes amazônicos de grande consumo humano (GRAEF, 1995), como crescimento rápido atingindo entorno de 10 quilos ao final do primeiro ano (MOURA CARVALHO; NASCIMENTO, 1992), alto rendimento de carcaça (IMBIRIBA et al, 1996), boa rusticidade ao manejo e alta qualidade de carne (BARD; IMBIRIBA, 1986; IMBIRIBA, 2001), o manejo reprodutivo esbarra na falta de estudos para melhor compreensão de sua complexa estratégia reprodutiva. E o reconhecimento sexual é parte desta necessidade. O conhecimento tradicional dos pescadores a respeito desta espécie é de extrema importância no manejo sustentável de sua pesca. Este tipo de manejo, implementado com base comunitária (VIANA et al, 2007), tem como uma de suas principais aplicações o método de levantamento de estoque, que se dá anualmente. Este método, é baseado no conhecimento tradicional dos pescadores experientes desta espécie (CASTELLO, 2004), com 60

UAKARI, v.5, n.2, p. 59-66, dez. 2009 grande potencial de replicação para outros locais da Amazônia (CASTELLO et al, 2009), ou de dentro da área de distribuição da espécie. Na tentativa de contribuir para o conhecimento das estratégias reprodutivas do pirarucu, e o seu manejo reprodutivo, este trabalho objetiva investigar o conhecimento tradicional do pescador ribeirinho da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá - RDSM na inspeção visual e determinação do sexo dos pirarucus, e os critérios utilizados para tal determinação. MATERIAL E MÉTODOS Os dados para esta pesquisa foram coletados na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá - RDSM, setor Jarauá (2 50 16 S; 64 59 39 O), localizada na região central do Estado do Amazonas, na confluência dos rios Solimões e Japurá (Figura 1). As entrevistas para coleta das informações ou diagnósticos ocorreram no período de outubro a novembro, período em que é realizada anualmente a pesca manejada de pirarucu pelos pescadores locais. Foram examinados 109 exemplares de Arapaima gigas, sendo 65 machos e 44 fêmeas. Figura 1- Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá localizada na confluência dos rios Solimões e Japurá, no Estado do Amazonas, destacando o setor Jarauá. 61

Lopes, K.; Queiroz, H. L. Avaliação do conhecimento tradicional dos pescadores da RDSM. Os peixes foram capturados pelos pescadores profissionais através de apetrechos de pesca tradicionalmente utilizados na região, como o arpão (haste de madeira com aproximadamente 3,5m, com ponta metálica de aproximadamente 15cm com fisgas laterais), e redes emalhadeiras, com espaçamento entre-nós adjacentes entorno de 30cm. Um grupo de aproximadamente quinze pescadores experientes locais foi entrevistado. Por meio de entrevistas o grupo em questão foi submetido aos mesmos questionamentos, como qual o sexo deste pirarucu? e qual o atributo ou critério adotado?. As respostas foram registradas em ficha de campo específica. Logo em seguida o peixe utilizado para a entrevista era fotografado e eviscerado, expondo as suas gônadas para a comprovação do prognóstico do pescador. Os dados foram analisados estatisticamente com o auxílio do pacote BioEstat 5.0 (AYRES et al, 2007), pelo teste Qui-quadrado e pelo teste t de Student, com significância ao nível de 5%. Analise da área de coloração por observação Para determinação da área de cobertura da coloração vermelha, utilizou-se uma ficha de campo contendo um desenho do contorno típico dos pirarucus sob uma grade quadriculada. Nesta figura foi transcrita a coloração de cada um dos animais observados, com o uso de um lápis. Foi calculado para cada um destes peixes um índice que representou a proporção de seu corpo coberta pela coloração vermelha típica. O cálculo do índice de área de coloração (IAC) foi obtido pela divisão do número de quadrados pintados (Qp) pelo número de quadrados que a figura do peixe ocupava (Qf), ou IAC = Qp/Qf. Análise da intensidade de coloração Para esta análise todos os peixes foram fotografados com uso de uma máquina digital de 3.2 megapixels. Para cada registro fotográfico, um padrão fixo de coloração vermelha, feito de material sintético, com 10cm 2, foi adicionado ao quadro, colocado sobre a superfície do peixe. Este padrão de coloração vermelha foi utilizado como referência, e o mesmo foi utilizado na fotografia de todos os animais avaliados. Com auxílio do programa Adobe Photo Shop 7.0, foi possível medir a intensidade de coloração vermelha do peixe e do padrão, criandose um índice de intensidade de coloração baseado na escala de intensidade de cores (vermelho, verde e azul), variando de 0 a 255, atribuída a cada pixel da imagem pelo programa. Este índice da intensidade da cor vermelha (IIC) de cada peixe foi obtido através da subtração da média de cinco pontos medidos nos pixels do padrão sintético (MPP) e a média de quinze pontos da coloração vermelha medidos nos pixels da coloração do peixe (MPA). Ou, colocado de outra forma, IIC= MPP MPA. Este procedimento foi importante porque pode anular a interferência de outros fatores na análise (como níveis de luminosidade, ou presença de outros objetos no quadro da fotografia), e para permitir uma comparação direta entre os níveis de intensidade de coloração vermelha de diferentes animais. Este método é uma adaptação das recomendações para o uso de imagens digitais no estudo da coloração de animais (STEVENS et al, 2007). 62

UAKARI, v.5, n.2, p. 59-66, dez. 2009 RESULTADOS E DISCUSSÃO Índice de acerto dos diagnósticos dos pescadores de machos (χ 2 =0,070) (Figura 3) e de fêmeas (χ 2 =1,667) (Figura 4) de pirarucus pelo grupo de pescadores. Dos 109 animais cujos prognósticos foram coletados junto aos pescadores, apenas 64 animais (58,71%) tiveram o sexo corretamente discriminado, numa freqüência estatisticamente similar ao acaso (χ 2 = 1,037). Isto nos indica que o conhecimento tradicional do grupo de pescadores entrevistados da Reserva Mamirauá não os torna capazes de discernir entre os sexos dos pirarucus de modo eficiente (Figura 2). Figura 3. Índice de reconhecimento do sexo em machos de pirarucus pelos pescadores da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. Figura 2. Índice de acerto na identificação do sexo dos pirarucus pelos pescadores da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. Quando confrontadas as respostas para cada um dos sexos em separado, a eficiência de identificação dos pescadores variou acertadamente em freqüências similares ao acaso. O que indica que não há diferença no reconhecimento sexual Figura 4. Índice de reconhecimento do sexo das fêmeas de pirarucus pelos pescadores da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. 63

Lopes, K.; Queiroz, H. L. Avaliação do conhecimento tradicional dos pescadores da RDSM. Critérios utilizados para a diferenciação do sexo dos Pirarucus MACHOS Os pescadores entrevistados disseram utilizar a coloração como atributo para reconhecimento do macho. Segundo os entrevistados, os espécimes machos apresentam maior intensidade de coloração vermelha e também maior superfície do corpo ocupada pela coloração, quando comparados com as fêmeas. O resultado das análises de intensidade da coloração vermelha que recobre o corpo dos pirarucus mostrou que os machos são mais intensamente vermelhos que as fêmeas (t=1,980<2,335), possuindo índices de coloração (IIC) significativamente inferiores (Figura 5) aos das fêmeas. Quanto menor este índice, maior é a proximidade da coloração com o padrão vermelho sintético e, portanto, mais intensamente vermelha é a coloração aparente do animal. A comparação da área de distribuição da coloração vermelha (IAC) entre os sexos mostrou que existe Figura 5. Intensidade de coloração vermelha em pirarucus analisados com programa computacional Adobe Photo Shop versão 7.0. uma diferença significativa (t=1,980<4,o95) entre eles. Machos possuem uma maior proporção da superfície do corpo coberta pela coloração vermelha que as fêmeas (Figura 6). Os pescadores utilizaram também como o atributo discriminatório o tamanho como forma de reconhecimento das fêmeas. Figura 6. Superfície ocupada pela coloração vermelha no corpo dos pirarucus fêmeas. Os membros do grupo acreditam que os exemplares mais compridos tendem a ser do sexo feminino. No entanto esta diferença não foi significativa nas distribuições de comprimento de machos e fêmeas nas classes de tamanho superiores (t=2,120>1,807). Neste estudo foram consideradas como classes superiores de comprimento aquelas a partir 180cm de comprimento total. Na figura 7 encontra-se a distribuição dos comprimentos dos dois sexos em todas as classes de comprimento. Apesar dos resultados da distribuição de comprimentos não apresentarem diferenças estatisticamente significativas entre os sexos, houve 64

UAKARI, v.5, n.2, p. 59-66, dez. 2009 fêmeas nas classes de comprimento superiores. O número de animais avaliados em tais classes ainda é muito reduzido. É necessário, portanto, que as amostragens sejam ampliadas para uma comparação mais consistente destes parâmetros. Desse modo, os resultados aqui apresentados devem ser considerados como uma tendência a ser ainda confirmada. Figura 7. Distribuição dos pirarucus agrupados em classes de tamanho. uma tendência dos pescadores apresentarem maior número de acertos para fêmeas do que para machos. Porém, os critérios utilizados para identificação de fêmeas não estão corretos. Já os critérios para identificação de machos são corretos e evidenciados através de análises estatísticas, embora não sejam corretamente aplicados pelo grupo de pescadores. Provavelmente o que ocorre é que alguns pescadores são capazes de aplicar o critério corretamente, mas o grupo como um todo não consegue apresentar a mesma eficiência. A coloração de machos é mais amplamente distribuída pelo corpo e é mais intensa que as das fêmeas, mas devemos lembrar que somente classes de tamanho entre 150 e 190cm de comprimento total foram disponíveis na amostra avaliada, pois foram utilizados animais pescados no programa de manejo, necessariamente maiores que 150cm de comprimento total. O mesmo pode ser dito com relação ao comprimento superior das fêmeas, ou a existência de uma maior freqüência de Apesar disto, os resultados comprovam que o grupo de pescadores avaliados não é capaz de reconhecer o sexo dos pirarucus por meio de atributos visuais. Entretanto, a seleção de alguns critérios consistentes para esta diferenciação, ainda que erroneamente aplicados, sugere que existem pescadores de grande conhecimento, e alta capacidade de realizar prognósticos corretos quanto ao sexo dos animais, mas que este conhecimento não se distribui amplamente entre todos os membros do grupo. REFERÊNCIAS AYRES, M. et al. Bioestat 5.0 aplicações estatísticas nas áreas das ciências biológicas e médicas. Belém: IDSM, 2007. 364p. BARD, J.; IMBIRIBA, E. P. Piscicultura do pirarucu Arapaima gigas.belém: EMBRAPA-CPATU, 1986. 17p. (Embrapa-CPATU. Circular técnica, 52). CASTELLO, L. A method to count pirarucu Arapaima gigas: fishers, assessment, and management. North American Journal of Fisheries Management, v. 24, n.2, p. 379-389, 2004. CASTELLO, L. et al. Lessons from integrating fishers of Arapaima in small-scale fisheries management at the Mamirauá Reserve, Amazon. Environmental Management, v.43, p. 197-209, 2009. 65

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