Um olhar sobre as sobre as coisas: mapeando não humanos nas coberturas midiativistas por streaming ao vivo 1

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Transcrição:

Um olhar sobre as sobre as coisas: mapeando não humanos nas coberturas midiativistas por streaming ao vivo 1 Michele LIMA 2 Universidade do Estado do Rio de Janeiro Uerj, Rio de Janeiro, RJ Resumo Entender os processos comunicacionais contemporâneos desenvolvidos com as novas tecnologias de informação implica, cada vez mais, projetar luz aos atores não humanos. Ao utilizar as coberturas midiativistas por streaming ao vivo como foco de análise, este artigo propõe o exercício de identificação dos objetos e das associações agenciadas por eles nos fluxos das ações. Duas fontes teóricas se apresentam como importantes aliadas nesse trabalho: a Teoria Ator-Rede e a Internet das Coisas. Palavras-chave: não-humanos; cobertura midiativista; TAR; IoT. Introdução O advento das novas tecnologias de informação e comunicação, seus desdobramentos e distribuição vêm tornando o ecossistema midiático cada vez mais complexo e desafiador. Estudiosos e profissionais da área dedicam esforços para ir além da compreensão superficial do aspecto instrumental desses aparatos técnicos e reconhecê-los como agentes efetivos e parte fundamental da essência transformadora vigente nos processos comunicacionais contemporâneos. A experiência de cobertura audiovisual por streaming ao vivo, popularizada nas manifestações de rua ocorridas no Brasil a partir de junho de 2013, traz elementos interessantes para uma reflexão acerca do papel das novas tecnologias na produção de conteúdo informativo e na potencialização das formas de interação social. A partir de transmissões realizadas pelos coletivos midiativistas CMI (Centro de Mídia Independente) 3 e Mídia Ninja (Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação) 4, com o uso de celulares conectados à rede social/aplicativo Twitcasting, este artigo tem como 1 Trabalho apresentado no GP Cibercultura do XV Encontro dos Grupos de Pesquisa em Comunicação, evento componente do XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Mestranda do Curso de Pós Graduação em Comunicação da Uerj (RJ), email: minulima@gmail.com 3 Disponível em: <http://us.twitcasting.tv/cmirio>. Acesso em 6 de jul de 2015. 4 Disponível em: < <http://us.twitcasting.tv/midianinja>. Acesso em 6 de jul de 2015. 1

objetivo traçar um panorama geral do que seria mapear parte dos objetos na dinâmica de execução dessa prática. Tais transmissões conquistaram audiências surpreendentes para um veículo alternativo, especialmente por mostrarem as manifestações através de narrativas diferenciadas das realizadas pela mídia tradicional, considerando diversos fatores estéticos, políticos, ideológicos, técnicos, interacionais, etc. A proliferação da chamada mídiamultidão, materializada através dos aparelhos smartphones de cidadãos comuns, e seu poder de disseminação de informações chegou ao ponto de se tornar uma preocupação das forças policiais que atuavam no controle dos protestos. Ao apreender os celulares nas manifestações, o aparato policial tenta separar o sócio do técnico, desfazendo a possibilidade de compartilhamento das imagens com as redes de contatos dos manifestantes. Nesse sentido, cada vez mais, o celular, com suas possibilidades de gravação e transmissão, é uma arma quente utilizada pelos manifestantes, que encontram seus alvos nas redes que se configuram com a internet, onde se faz possível a propagação da comoção, inflamando a esperança de novos engajamentos na ação coletiva. (CASTAÑEDA, 2014, p.110) Trata-se de um conteúdo de análise empírica de grande representatividade do atual momento brasileiro, que carrega componentes muito ricos para ponderar o que seria a crise de uma dialética sócio e técnica. Considerando que os objetos podem ajudar a compreender esta e outras questões, cabe perguntar: qual o papel dos não humanos na cobertura midiativista audiovisual por streaming ao vivo? No artigo A Comunicação das coisas. Internet das Coisas e Teoria Ator-Rede etiquetas de radiofrequência em uniformes escolares na Bahia, o professor da Faculdade de Comunicação da UFBA, André Lemos (2012), faz um diálogo entre duas relevantes fontes conceituais acerca das associações (de dimensões políticas, morais e éticas) promovidas por antigos objetos ao adquirirem novas qualidades no momento em que são dotados de capacidade performativa infocomunicacional. Para o autor, devemos compreender as novas qualidades dos objetos, seu novo eidos, já que essa mudança acarreta consequências importantes nas relações sociais (técnicas, conversacionais, culturais, pedagógicas, ambientais). A Internet das Coisas (Internet of Things IoT), que trata da crescente conexão dos itens mais básicos do dia-a-dia à rede mundial de computadores, é um dos campos em desenvolvimento que trazem à tona a dimensão do tema. 2

A Internet das Coisas é, de acordo com CERP 2009 (Cluster of European Research Projects on the Internet of Things), uma infraestrutura de rede global dinâmica, baseada em protocolos de comunicação em que coisas físicas e virtuais têm identidades, atributos físicos e personalidades virtuais, utilizando interfaces inteligentes e integradas às redes telemáticas. As coisas/objetos tornam-se capazes de interagir e de comunicar entre si e com o meio ambiente por meio do intercâmbio de dados. As coisas reagem de forma autônoma aos eventos do mundo real / físico e podem influenciá-los por processos sem intervenção humana direta. O novo campo da IoT reúne questões técnicas e sociais. Durante o ano de 2008, o número de coisas ligadas à internet excedeu o número de pessoas no planeta. Estima-se que haja mais de seis objetos por pessoa conectados no mundo hoje. (LEMOS, 2012, p.19). Até que ponto desvendar esse mundo autômato dos objetos interconectados, estabilizados dentro das suas caixas-pretas, significa compreender a nós mesmos? André Lemos (2012) defende que não devemos separar em polos distintos uma internet das pessoas e outra das coisas, pois só há uma internet híbrida, formada por mediações, delegações, estabilizações das mais diversas entre humanos e não humanos. Parece fundamental lançar um olhar unificado sobre tais perspectivas, de forma a incluir e considerar a influência da dimensão material nas relações humanas. Pensá-las como um imbricamento sociotécnico, tendo em vista a ubiquidade cada vez maior com que as tecnologias da internet participam da vida cotidiana, ainda que exista uma divisão digital (CASTAÑHEDA, 2014, p. 109). Nesse sentido, é interessante utilizar as premissas da Teoria Ator-Rede (TAR), a partir das proposições do pensador francês Bruno Latour (2012). Muito mais do que ampliar o escopo de problematização do que é o social, com a ideia de uma sociologia das associações, a TAR tem como principal avanço conceitual a inclusão declarada dos chamados não humanos - suprimidos da experiência coletiva por mais de cem anos de estudos sociológicos - como atores plenos nos cursos das ações. Além de determinar e servir de pano de fundo para a ação humana, as coisas precisam autorizar, permitir, conceder, estimular, ensejar, sugerir, influenciar, interromper, possibilitar, proibir, etc. A ANT não alega, sem base, que os objetos fazem coisas no lugar dos atores humanos: diz apenas que nenhuma ciência do social pode existir se a questão de o quê e quem participa da ação não for logo de início plenamente explorada, embora isso signifique descartar elementos que, à falta de termo melhor, chamaríamos de não humanos. (LATOUR, 2012, p.108) Ou seja, a TAR se torna grande aliada das análises direcionadas à intenção de inverter o caminho: passar a seguir os não humanos ao invés dos humanos - tentar enxergar o mundo a partir dos objetos, ouvir o que eles têm a dizer sobre nós. Algumas 3

das premissas para reagregar o social segundo a TAR são: mapear as controvérsias (nas quais as instabilidades se apresentam) para identificar as associações que ocorrem nos agenciamentos entre atores humanos e não humanos, enquanto estes assumem e/ou alternam os papeis de mediador (altera o curso da ação) e intermediário (participa mas não altera o curso da ação), nos grupos e nas redes que se formam e se desfazem na dinâmica social. Para estudos de cibercultura, a TAR pode ajudar a revelar associações em fenômenos tão díspares quanto a sociabilidade online, análise dos rastros digitais deixados em diversas ações na internet, as mídias locativas, o corpo e a subjetividade, as interfaces e interações nos dispositivos móveis, a arte, o ciberativismo, o governo eletrônico, os games, a inclusão digital e a IoT. (LEMOS, 2012, p.34) A aplicação da TAR como método de análise sociológica exige um alto nível de detalhamento e seria inviável tentar fazê-la aqui. Porém, com base nela e nas outras referências teóricas colocadas, é possível pensar sobre o quão importante e revelador pode ser colocar luz a este ponto muitas vezes obscurecido nos estudos das Ciências Humanas. Um breve recorte da caracterização do objeto da minha pesquisa, recentemente iniciada no curso de Mestrado em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Mediações e intermediações (TAR) não humanas no curso da ação Ao projetar luz aos atores não humanos da cobertura midiativista audiovisual por streaming ao vivo, de imediato, a identificamos como um produto acabado do uso de um típico exemplo da Internet das Coisas IoT: o arranjo entre celular inteligente e internet proveu um objeto antigo de capacidades performativas inéditas. Em cadeia, essa nova qualidade do objeto viabiliza o uso da ferramenta Twitcasting, necessária à prática da cobertura, capaz de gerar um conteúdo audiovisual bem específico. Nesses desdobramentos fica registrado o rastro da internet como potência mediadora incalculável do desenvolvimento tecnológico. A execução deste tipo de cobertura demanda o mínimo de conhecimento de uma linguagem tecnológica para fazer uso de smartphones (híbridos de telefone com computador), que vai além de realizar e receber ligações e mensagens de texto; e também o acesso a um pacote de dados (3G, 4G, Wi-Fi). Tais questões podem ser consideradas secundárias se pensarmos que os fabricantes de celulares e as operadoras de telefonia e internet trabalham cada vez mais no sentido de aumentar o consumo desses produtos e 4

serviços, o que inclui oferecer preços acessíveis e facilitar as interfaces de conectividade com o usuário. Mas de fato há aí uma estrutura (não humana), composta de certo subsídio financeiro e intelectual, atuando como mediadora entre o midiativista (humano) e a cobertura (não humano), que seria suficiente para impedir a ação. De posse do smartphone e dos conhecimentos necessários para o uso das ferramentas correlatas, o midiativista deve instalar o Twitcasting no aparelho, concordar com os termos de uso do aplicativo e criar um perfil de usuário. Essas etapas também agem como um mediador funcional-buracrático entre o midiativista e a cobertura. Da mesma forma, o internauta (humano) que deseja compor a audiência assintindo e/ou participando da cobertura deve criar seu perfil no Twitcasting e dispor de computador ou outro aparelho com acesso à Internet. Os mesmos mediadores denominados aqui de estrutural e funcional-burocrático estabelecem associações tanto com o midiativista, quanto com o internauta e, na medida em que são superados/atendidos, passam a atuar como intermediários, pois se antes alteravam, num segundo momento já deram passagem e não mudam mais o curso dos acontecimentos. Os objetos, pela própria natureza de seus laços com os humanos, logo deixam de ser mediadores para se transformarem em intermediários, assumindo importância ou não, independente de quão complicados possam ser por dentro. Eis por que alguns truques precisam ser inventados para forçá-los a falar, ou seja, apresentar descrições de si mesmos, produzir roteiros daquilo que induzem outros humanos ou não humanos a fazer. (LATOUR, 2012, p.118). Em meio à manifestação na rua, o tempo de bateria do celular e a possível instabilidade da internet negociam, a todo o tempo, com o midiativista a possibilidade de que a transmissão ocorra ou, no mínimo, até quando ela continua. É necessário se equipar com fontes de energia, baterias ou celulares extras, e conexões de rede confiáveis, de melhor qualidade, para aumentar a segurança de uma transmissão ininterrupta de até seis horas, como é iminente de ocorrer numa cobertura desse perfil. Dessa forma, cada um desses atores não humanos tem a possibilidade de interferir no curso da ação e, assim como os mediadores estrutural e funcional-burocrático, podem ficar na alternância desta posição para a de intermediários. Fluxo interrompido pela bateria que acaba e que pode ser recarregada com a ajuda de um morador/espectador/manifestante localizado na cena ou nas imediações. Vimos isso acontecer no vídeo Prisão do Repórter da Mídia Ninja quando ele grita desesperadamente: Eu preciso de um smartphone, minha bateria está acabando e 5

imediatamente um desconhecido lhe passa o celular, antes que seja detido e embarcado em um camburão. (BENTES, 2014, p.336) No arranjo e nos desdobramentos da IoT, que providenciam as capacidades para este perfil de cobertura, o aparelho celular é destaque entre os não humanos e atua como um verdadeiro companheiro do midiativista em campo, um outro sujeito na multidão dos protestos. Acoplado à mão do cinegrafista, ele é a câmera do testemunho dos fatos: portátil e muito leve, direciona a composição de imagens com base em uma linguagem e estética definidas pela urgência, pelo risco, pela experimentação e pela extrema mobilidade. Assume também um papel de vigilância, mas sua presença em cena oscila entre denunciante e protetora: é atacada diretamente ou tapada, quando usada ostensivamente como salvo-conduto para testemunho de uma ação arbitrária ou violenta da polícia (id., ib. p.337). Há ainda nesse cenário outros tantos objetos com potencial de atuarem na cobertura como o próprio espaço público - seus acessos e obstáculos, bombas e tiros da polícia, objetos de defesa usados pelos manifestantes, acessórios de segurança do midiativista máscaras anti-gás, capacete, etc. É notável a frequente negociação entre humanos e não humanos, tanto quanto a influência que ambos sofrem a partir das suas conexões. Assim como aparelho celular, a plataforma de interface do Twitcasting (não humana) atua de forma determinante na cobertura, pois se mantém como mediadora fixa das relações midiativista x audiência, midiativista x cobertura, audiência x cobertura e internauta x internauta. Seus mecanismos de interação literalmente guiam e impõem limites de associação entre todos os atores da ação, mas ainda assim propiciam ampliar de forma singular os tradicionais papeis de emissor e receptor de informação, em função da total integração da tela de exibição do material audiovisual com o chat. Essa característica torna muito estreito e favorável o contato entre os midiativstas e os internautas e promove uma conversação incessante, que vai sendo incorporada à narrativa em construção, na medida em que a transmissão ocorre. O processo colaborativo online e a opção de streaming ao vivo, reunidos no mecanismo da ferramenta, radicalizam a participação da audiência conectada (internautas), que pode comentar, informar, analisar, dialogar entre si e com o midiativista, tornando-se co-autora da cobertura. Consequentemente, também é redefinido o lugar do produtor (midiativista): ele sai da posição confortável do discurso uníssono, pois agora é convocado a dialogar, a falar por si, pelo e com os que o assistem, no calor dos acontecimentos, na imprevisibilidade do ao vivo. O desfecho é uma experiência de construção coletiva de 6

conteúdo informativo diferente das permitidas pelas chamadas mídias tradicionais, na qual a internet é o elo provedor. Aponta para uma televisão reversa, em que o chat de comentários... se constitui como parte de uma intensa demanda por sentido e montagem que ativa o ex-pectador tornado interator (BENTES, 2014, p. 335). Outros componentes da interação carregam o tom de humor e animação das redes sociais, apresentando uma dinâmica de funcionamento similar à dos games: internautas podem dar aos produtores de lives pontuação, níveis, moedas, etc. Esses elementos perpassam a narrativa, contribuindo para a definição da linguagem muito própria que vai se delineando. Para divulgar uma transmissão, a ferramenta oferece ao midiativista a opção de twittar mensagens aos seus seguidores ao iniciá-la; e aos internautas a alternativa de criar uma lista de perfis favoritos no próprio Twitcasting dos quais se tornam torcedores. O Twitcasting também permite a instalação de alertas para que cheguem notificações de lives nos computadores dos internautas. Os mecanismos de interação somados à característica do ao vivo e à mobilidade da mídia (smartphones + internet), ambos de natureza não humana, têm papel fundamental na dinâmica em questão por serem agentes de várias negociações com os atores humanos e agruparem fatores primordiais para o desenvolvimento dos mais diversos e relevantes aspectos da narrativa comunicacional construída nessa experiência, no que diz respeito à técnica, à linguagem, à estética e à comunicação. Segundo a ANT, se quisermos ser um pouquinho mais realistas, em relação aos vínculos sociais, que os sociólogos razoáveis, teremos de aceitar isto: a continuidade de um curso de ação raramente consiste em conexões entre humanos (para as quais, de resto, as habilidades sociais básicas seriam suficientes) ou entre objetos, mas, com muito maior probabilidade, ziguezagueia entre umas e outras. (LATOUR, 2012, p.113) Desta forma, para chegar às minúcias que podem explicar esta prática midiativista é preciso enxergar e conversar com as coisas porque elas, literalmente, se comunicam e mediam nossas comunicações. Um olhar minimamente apurado sobre a paradoxal invisibilidade visível dos não humanos, possivelmente relacionada ao alto grau de naturalização alcançado na relação homem x máquina, pode trazer explicações surpreendentes para o melhor entendimento do nosso tempo. 7

REFERÊNCIAS BENTES, Ivana. Estéticas Insurgentes e Mídia-Multidão. Liinc em Revista, Rio de Janeiro, v.10, n.1, p. 330-343, maio 2014. Disponível em: http://revista.ibict.br/liinc/index.php/liinc/article/view/ 704/479. Acesso em: 16 jul. 2015. CASTAÑEDA, Marcelo. As manifestações de 2013: imbricamentos sociotécnicos e perspectivas. CAVA, Bruno. COCCO, Giuseppe. Amanhã vai ser maior: o levante da multidão no ano que não terminou. São Paulo: Annablume, 2014. CASTELLS, Manuel. Redes de Indignação e Esperança: movimentos sociais na era da internet. 1 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. HARDT, Michael. NEGRI, Antonio. Multidão Guera e Democracia na Era do Império. Rio de Janeiro: Record, 2005. LATOUR, Bruno. Reagregando o Social: uma introdução à teoria Ator-Rede. Salvador: Edufba, 2012. LEMOS, André. A Comunicação das Coisas. Internet das Coisas e Teoria Ator-Rede Etiquetas de Radiofrequência em Uniformes Escolares na Bahia. SimSocial Simpósio em Tecnologias Digitais e Sociabilidade, Salvaldor (BA). Outubro de 2012. Disponível em: http://www.seminariosmv.org.br/textos/andre%20lemos.pdf. Acesso em: 16 jul. 2015. MALINI, F. AUTOUN, H. A Internet e a rua: ciberativismo e mobilização nas redes sociais. Porto Alegre: Sulina, 2013. 8