Heranças. Vida Vieira



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Transcrição:

Heranças Vida Vieira

Se você tem bens, seus herdeiros hão de apressar sua morte. Alguém me disse isso um dia. Mas eu era jovem, não dei importância. Agora essa frase me vem assim, do nada, decerto estava guardada lá no fundo de uma gavetinha da minha cabeça. Quem me dera eu tivesse refletido sobre isso naquela época. Mas não. Comprei imóveis. Casas, apartamentos, salas pra escritório, prédios inteiros, terrenos. Meu patrimônio está espalhado pela cidade toda. Uma fortuna imobilizada que me rende outra fortuna todo mês. Fiquei rico. E formei família, claro, o que mais um homem rico poderia fazer? Dois casamentos, um divórcio, uma viuvez, cinco filhos. Cinco filhos, nenhum orgulho. Um bando de desocupados. Enquanto eu me preocupava em multiplicar a herança do meu pai o que, modéstia às favas, fiz com maestria, meus filhos se tornavam uns burguesinhos fúteis. Eu achava que boas escolas e universidades fossem suficientes pra que jovens como eles não se deslumbrassem com o mundo dos ricos e suas facilidades, mas hoje vejo que estava errado. Criei cinco perdedores que não sabem fazer nada, que não têm talento algum. E que ainda atraíram para si gente da mesma laia, meus genros e noras, todos iguaizinhos, interessados na fortuna do velho aqui, não conseguem nem disfarçar. Até neto eu já tenho. Ainda é um inocente, não foi contaminado pela incompetência dos pais, talvez consiga se salvar do desastre que é a minha família. Seja como for, não vou estar aqui pra testemunhar. Acho que o grande engano foi meus filhos pensarem que eu não trabalho. Eles nunca compreenderam como as coisas funcionam. Eu também nunca expliquei, deixei que interpretassem como quisessem. Sou um negociador, um business man, alguém que nunca precisou sair de casa pra rechear os bolsos de dinheiro. Só porque não visto um terno e saio de casa todos os dias de manhã com uma pasta embaixo do braço, não quer dizer que não trabalhe. Que mal há em não ter uma rotina, qual a dificuldade de entender isso? É tão simples. Nos últimos anos, a maior parte do trabalho vem sendo feita pelo Jeferson. Ele pesquisa o mercado e traz as oportunidades, me apresenta os prós e os contras e eu tomo a decisão. Antes eu ainda vou a campo, tenho que

conferir pessoalmente, não confio tanto assim no tino do Jeferson. E dificilmente me engano. Ninguém nunca me passou a perna, percebo de longe um mau negócio, sinto cheiro de roubada. E também identifico a quilômetros uma transação lucrativa. Nesse ramo, não basta ter inteligência, tem que ser meio visionário, tem que ter intuição, e a minha não falha. A sensação de fazer uma aposta no escuro, dessas que ninguém faria, dessas que fazem os outros chamarem você de louco, e depois faturar uma bolada com ela, é indescritível. Nenhum desses marmanjos nunca entendeu isso, nem sentiu esse gostinho. Mas usufruem dos dividendos, é claro. O fato é que meu trabalho não me ocupa o tempo inteiro. Entre um investimento e outro eu vou ao clube, viajo, aproveito o dinheiro que ganho, cacete. Nunca quis só acumular e acumular, quis ser rico pra viver como rico, ganho o suficiente pra guardar e pra gastar. O problema é que a minha vida ficou com cara de férias, e aí os meus filhos concluíram que não é preciso trabalhar duro nem estudar pra ganhar dinheiro. Acho que me esqueci de esclarecer esse pequeno equívoco. Se bem que eu estudei bem pouco e não me fez muita falta. Mas os idiotas não podiam ser um pouco mais espertos? Tiraram administração, engenharia, direito, pra quê? Preguiçosos. Precisei subornar o diretor da faculdade pra um deles conseguir se formar. Teve uma que estudou moda, até dei força porque achei que podia dar certo, um ramo diferente, mulher gosta dessas coisas. Investi num tal de ateliê que ela insistiu em montar e que não deu em nada, um fracasso. Pra moda eu não tenho bom faro. E nem ela, pelo visto. Nenhum deles tem faro pra coisa alguma, só pro meu dinheiro. Nenhum herdou minha perspicácia, minha visão pros negócios, será que essas coisas não vêm no código genético, não passam de pai pra filho? Maldito AVC. As coisas começaram a sair do meu controle quando tive o primeiro. Fui pego desprevenido. Meu médico já tinha me avisado pra eu me cuidar mais, parar de fumar charuto, fazer exercício, reduzir o uísque. Não dei ouvidos porque sempre tive boa saúde, não pegava nem gripe. Meus filhos nunca me viram doente. De repente, tive o derrame. Não foi grave. Quando saí do hospital o doutor me deu

um tapinha nas costas e disse, às gargalhadas, que eu estava pronto pra outra. O filho da puta sabia mesmo o que estava falando. Três meses depois veio o segundo, dez vezes mais forte, um coice, e me colocou nessa cama. Todo meu lado esquerdo parou de funcionar. A boca entortou. Não me olho no espelho há muito tempo. Por mais velho que você seja, por mais rugas que tenha, nunca vai estar preparado pra ver seu rosto deformado, um olho fora de prumo, a boca caída pro lado. Os médicos dizem que vou me recuperar, que posso voltar praticamente ao normal, só que eles não falam isso pra mim, falam pros meus filhos, pra enfermeira, pro Jeferson, pras pessoas que ficam na minha volta, nunca pra mim, como se eu não pudesse entender. Mas eu entendo tudo. Outro dia ouvi algo como ele vai ter que reaprender a falar. Estão enganados, não preciso reaprender nada, ainda sei falar, apenas não consigo colocar pra fora, só o que sai da minha boca são grunhidos, uns sons horríveis que nem eu gosto de ouvir, então prefiro ficar quieto. Mas depois do que presenciei hoje de manhã, nada disso importa mais. Já sei que não vou me recuperar nem voltar a falar. Eles estão cuidando de tudo. Até o Jeferson parece estar metido no esquema. Não duvido que seja o mentor, afinal, é muito mais inteligente que os meus cinco filhos juntos, aqueles covardes não conseguiriam armar isso sozinhos. Formaram uma quadrilha, os seis. Sete, se a minha exmulher estiver envolvida, o que tenho quase certeza, mas é só um palpite. Bastou que me vissem quase vegetando numa cama pra perder completamente o respeito. Viram mais próximo o dia em que colocariam as mãos no meu dinheiro e decidiram acelerar o processo. Estúpidos. Como são burros. Comigo vivo eles têm tudo. Eu me queixo dos garotos, mas não nego nada. Esse foi meu maior erro, nunca disse não, nunca exigi nada deles, nunca obriguei que trabalhassem, que construíssem vida própria. Subsidiei as extravagâncias deles todos. Mas não estão nunca satisfeitos, não se contentam com as mesadas, os presentes, os cartões de crédito sem limites. Os inúteis querem assumir meus bens, colocar tudo em seus nomes. Se ao menos eu pudesse alertá-los. Eles estão errados, vão gastar tudo, vão dilapidar o patrimônio

que levei anos pra construir, não deixarão nada pros meus netos e bisnetos. Gostaria de dizer isso a eles. Se eu pudesse ao menos ensiná-los. Mas não há mais tempo, não fiz isso em minha vida inteira, não vai ser agora que estou aqui, entrevado. Lá vem o Jeferson. Que cara é essa, rapaz? E o que tem nesse copo? Imaginei que o Jeferson fizesse parte da quadrilha, mas é ele quem vai fazer o trabalho sujo? Meu próprio funcionário, tantos anos me servindo, sempre pareceu leal, nunca descobri nada que o desabonasse. Talvez passe a perna em todo mundo e fique com o dinheiro. Impossível não é, ele pode falsificar minha assinatura, sem falar nas procurações que eu mesmo dei a ele, já nem sei mais pra quê. Aí quero ver, vai ter gente se atirando da cobertura. Eu bem que podia cuspir esse maldito líquido, vou dificultar as coisas pra você, seu ingrato. Por que você está fazendo isso? Por que não é um dos meus filhos, eles não têm competência pra fazer? Claro que não, que cabeça a minha. São uns medrosos. Olha um deles espiando na porta. Vem cá, seu maricas. Não quer sujar as mãos, não é? Não tem coragem pra fazer, mas tem pra assistir. Fica ali, vendo tudo de camarote, seu velho pai sem poder se defender. E os outros? Cadê os outros? Devem estar esperando o telefonema. A grande notícia. Papai já era. Papai passou dessa pra melhor. Vão estourar rojões. Não, vão ter que se fazer de coitadinhos, receber as condolências, preparar o funeral. Vão chorar muito, fingir desmaios, fazer tudo parecer real e inesperado pra não levantar suspeita. E então vão se reunir com o advogado da família, discutir sobre o inventário e a divisão do espólio, ainda com os olhos inchados, mas comemorando por dentro. E daí para a ruína. Até nessas horas eles são previsíveis. Então é isso. Perdi. De que adianta cuspir? Eles vão lá e preparam outro. Ou metem pela sonda mesmo. Com papai foi diferente, não morreu feito um vegetal numa cama, foi uma morte mais digna. Aquele velho sovina. Assassinado por um antigo desafeto! Golpe de mestre. Ninguém nunca soube da verdade. Nossa, isso tem um gosto forte. Provavelmente é algo que paralisa o coração, vi na televisão uma vez. Tudo

bem, já estou com a metade do corpo paralisada, e é justamente a metade do coração. Não sei por que o maldito coração continuou batendo, devia ter parado junto com o resto.