A tradição manuscrita portuguesa da Regula Benedicti: perspetivando o seu enquadramento na família europeia.

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Transcrição:

A tradição manuscrita portuguesa da Regula Benedicti: perspetivando o seu enquadramento na família europeia. Joana Serafim, Universidade Europeia / CLUL 1. São Bento e a tradição da Regula Benedicti São Bento, considerado o fundador do monaquismo ocidental, nasceu em Núrsia, no norte de Roma, por volta do ano 490 da nossa era. Interrompe os estudos em Roma para ingressar na vida monástica e cedo ganha alguns seguidores, que agrupa em doze pequenos mosteiros em Subiaco. No entanto, alguns problemas obrigam-no a deixar este local. Por volta do ano 529, vai para Montecassino, onde funda uma comunidade e onde redige a sua Regra, já perto do final da sua vida, ou seja, entre os anos 530 e 560. São Bento morreu em Montecassino, por volta do ano de 560 1. A Regra de São Bento adquiriu uma enorme importância na organização da vida nas comunidades monásticas, em particular nas ordens beneditinas e cistercienses. Este texto, assente em três grandes princípios obediência, silêncio e humildade fundamenta-se, naturalmente, nas palavras da Bíblia, que é citada com frequência, mas também noutras regras monásticas de tradição mais antiga, nomeadamente na de Santo Agostinho e na de São Basílio. Além destas fontes, reconhecidas em geral pelos estudiosos, autores como Philibert Schmitz 2 e Adalbert de Vogüé 3 defendem que São Bento se inspirou, acima de tudo, numa outra regra sua contemporânea, a Regula Magistri, redigida provavelmente entre os anos 500 e 530, de autor e origem desconhecidos. Bento de Núrsia terá, portanto, modificado e adaptado a Regra do Mestre às necessidades da comunidade em que estava inserido, de acordo com a sua longa 1 Estas datas, fornecidas por Philibert Schmitz (ed.), Règle de Saint Benoît, 5ª ed. (Turnhout: Brepols, 1987), pp. xii-xiii, são diferentes das tradicionais, que situam a vida de São Bento entre os anos 480-547, mas são consideradas mais rigorosas. 2 Cf. Philibert Schmitz (ed.), op. cit.. 3 Adalbert de Vogüé e Jean Neufville (ed.), La Règle de Saint Benoît (Paris: Éditions du Cerf, 1972). 1

experiência de monge, espelhando nela a sua perspetiva do que deveria ser uma Regra. Esta teoria não é, porém, unanimemente aceite, havendo alguns autores que defendem que a Regra do Mestre deverá ser posterior à Regra de São Bento e outros, como Linage Conde 4, que não excluem a hipótese de ambas terem sido escritas por São Bento. A difusão da Regula Benedicti dá-se sobretudo graças à influência do Papa São Gregório, o primeiro biógrafo de São Bento. Cerca de 20 anos depois da morte de São Bento, em 581, o mosteiro de Montecassino é destruído pelos Lombardos e os monges refugiam-se em Roma, a partir de onde a Regula se vai disseminar, tornando-se cada vez mais uma referência. É, então, adotada em vários mosteiros, que muitas vezes a combinam com outras regras, em particular com a de São Columbano, sendo este chamado o período das regulae mixtae. No entanto, em 817, Bento de Aniane faz da Regra de São Bento a norma exclusiva dos mosteiros carolíngios 5. Inúmeros manuscritos da Regra terão, então, circulado, mas o original desapareceu. 2. A Regula Benedicti na Península Ibérica No que concerne à entrada da Regula Benedicti na Península Ibérica, José Mattoso defende que esta terá sido a última região da Europa a adoptar o sistema da regra única, numa época em que o monaquismo ocidental observava há muito a Regra de S. Bento 6, o que poderá dever-se ao isolamento desta região relativamente ao resto da Europa, ideia, de resto, corroborada por Linage Conde 7. Segundo Mattoso, as primeiras referências à Regula em território hispânico surgem desde o início do século IX, mas apenas na Marca Hispânica, havendo também, durante o século X, menções à Regra na região de Castela 8. No entanto, estas referências não significam que a Regula Benedicti já tivesse sido adotada como sistema único nestes locais, pois os mosteiros da Península Ibérica seguiam sobretudo o sistema das regulae mixtae, combinando diferentes regras sendo as mais frequentes, nesta região, a de 4 António Linage Conde, São Bento e os Beneditinos (Braga: Edição da Irmandade de São Bento da Porta Aberta, 1989), tom. I, pp. 119-123. 5 São Bento de Aniane (750-821) tornou-se monge em 774 e fundou o Mosteiro de Aniane em 779, tendo adotado a Regra de São Bento. Por influência sua, o Sínodo de Aix-la-Chapelle de 817 impôs a RSB a todos os mosteiros não canonicais e decretou a unidade de observâncias [ ] : José Mattoso, Bento de Aniane (São) in Enciclopédia Verbo Luso-Brasileira de Cultura Edição Século XXI (Lisboa São Paulo: Editorial Verbo, 1998), vol. 4, p. 722. 6 José Mattoso, Religião e Cultura na Idade Média Portuguesa, 2ª ed. (Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1997), pp. 73-74. 7 Cf. António Linage Conde, op. cit., tom. I, max. p. 190-198. 8 José Mattoso, ibid., pp. 77-78. 2

Santo Isidoro e a de São Frutuoso, e podendo ainda incluir usos e tradições locais 9. Ainda de acordo com o mesmo autor, a adoção da Regra de São Bento na Península como regra única terá acontecido entre 1085 e 1115, período que corresponde a uma abertura à influência das instituições religiosas francesas, nomeadamente da Ordem de Cluny, 10 e à adoção oficial da liturgia romana (no Concílio de Burgos de 1080), de que os monges cluniacenses foram os principais protagonistas [ ] 11. A forma como esta influência se propagou em território nacional não é, contudo, absolutamente conhecida. Pensa-se que terá havido uma interferência de Espanha, em particular de Sahagún, de onde viriam os novos livros litúrgicos necessários para os mosteiros e, com os livros, terão vindo também os costumes cluniacenses. Em território nacional, terá cabido a Coimbra um papel de centro difusor dos costumes de Cluny 12. A partir do século XII, o papel decisivo na proliferação da Regula Benedicti coube à Ordem de Cister, uma vez que os monges brancos atraem um grande número de mosteiros e de outras comunidades, nomeadamente algumas que já tinham obediência beneditina. O mosteiro cisterciense mais importante foi, no entanto, o de Santa Maria de Alcobaça, fundado de raiz em 1153, mas a sua influência fez-se sentir sobretudo a partir do século XIII 13. Este mosteiro filiou e fundou outros mosteiros, e tornou-se num dos principais centros de cultura, sendo a sua livraria reconhecida como uma das mais importantes da Idade Média portuguesa. 3. A tradição manuscrita portuguesa da Regula Benedicti No que concerne à tradição manuscrita portuguesa da Regula Benedicti, são ainda escassas as informações relativamente aos testemunhos deste texto que circularam em Portugal, ao contrário do que acontece em relação à sua circulação no resto da Europa, que tem sido estudada por vários autores, destacando-se as obras dos já mencionados Philibert 9 José Mattoso, ibid., p. 56. 10 José Mattoso, Um mundo em evolução in Obras Completas O Monaquismo Ibérico e Cluny (Rio de Mouro: Círculo de Leitores, 2002), vol. 12, p. 106. 11 José Mattoso, Beneditinos in Dicionário de História Religiosa de Portugal (Rio de Mouro: Círculo de Leitores, vol. 1, 2000), p. 202. De facto, segundo este autor, as primeiras referências explícitas à Regra de São Bento enquanto regra única no que viria a ser território português surgem num documento do Mosteiro de Lorvão, em 1085, e noutro do mosteiro de Vilela, diocese do Porto, no ano seguinte, havendo outras referências da mesma época em documentos dos mosteiros de São Romão de Neiva, Arouca e Vacariça. Cf. José Mattoso, Um mundo em evolução in Obras Completas O Monaquismo Ibérico e Cluny (Rio de Mouro: Círculo de Leitores, 2002), vol. 12, max. p. 102-sq. 12 Cf. José Mattoso, op. cit., p. 106. 13 José Mattoso, op. cit., p. 109. 3

Schmitz, Adalbert de Vogüé ou Linage Conde. É este precisamente o nosso objetivo: definir, por um lado, os testemunhos da Regula Benedicti existentes em Portugal e perceber a sua circulação, assim como estabelecer as relações de dependência entre os vários testemunhos em latim, e entre estes e as traduções portuguesas; por outro, interessa integrar esta tradição manuscrita portuguesa na família europeia, de modo a identificar a origem dos manuscritos a partir dos quais construímos a nossa própria tradição. Segundo os estudos efetuados, confirma-se, para já, a existência em Portugal de quatro manuscritos com o texto latino da Regra: - dois códices alcobacenses, conservados atualmente na BNP: o Alc. 231, datado do século XII e o Alc. 281, da segunda metade do século XIII; - um manuscrito do antigo Mosteiro do Lorvão, guardado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (CF 17), que deverá ser do século XII ou XIII; - e um códice que se encontra atualmente na Biblioteca Pública Municipal do Porto (ms. 1164), provavelmente do século XVII. Além destes quatro códices, deverá haver ainda dois outros manuscritos com o texto latino da Regra, conservados na Biblioteca Pública de Évora, segundo as informações constantes no catálogo de Cunha Rivara 14. Assim, se se verificar a existência destes dois códices, a tradição manuscrita portuguesa do texto latino da Regula Benedicti passará a ser composta por seis testemunhos, número muito reduzido, considerando a importância deste texto, especialmente para a história religiosa, e a sua grande difusão em território português. Na verdade, ainda que estes fatores pressuponham a existência de numerosas cópias desta Regra, em particular durante a Idade Média, é possível que, por um lado, uma parte significativa dos testemunhos se tenha perdido pelas mais variadas razões, nomeadamente devido a fenómenos naturais (inundações, incêndios, etc.), a empréstimos cuja devolução nunca chegou a acontecer ou, simplesmente, ao mau estado do códice; por outro, é provável que, havendo já um entendimento deficiente da língua latina nas nossas instituições religiosas, os monges tenham substituído estes manuscritos com o texto em latim pela sua versão em português. Assim, pode conjeturar-se que um códice com o texto latino, uma vez traduzido para a língua vernácula, perdesse a sua utilidade e, como tal, facilmente seria reaproveitado para outros fins. Esta hipótese é bastante verosímil, uma vez que, há, pelo menos, 12 testemunhos 14 Joaquim Rivara, Catalogo dos Manuscriptos da Bibliotheca Publica Eborense (Lisboa: Imprensa Nacional, 1850), tom. III, pp. 114-sq. 4

manuscritos com a tradução em português do texto da Regula 15, não correspondendo, no entanto, a 12 traduções diferentes, pois alguns são cópias de uma mesma tradução. O facto de haver várias cópias de um mesmo texto significa que havia um número significativo de leitores, pois a produção de manuscritos era demasiado morosa e cara para contemplar obras que fossem consideradas supérfluas, o que reforça a ideia de que os textos tinham uma utilidade imediata, além do seu caráter simbólico, como é o caso das obras religiosas. Aliás, a existência de traduções de um texto cuja língua original estava associada a uma certa sacralidade, o latim, pode parecer, desde logo, contraditório, mas estas versões em português justificam-se precisamente pela sua utilidade evidente: de facto, a necessidade de traduzir o texto da Regra para vernáculo terá sido motivada pelos pouco sólidos conhecimentos de latim dos religiosos, que deveriam conhecer a Regra por que se regia a instituição em que se encontravam. Esta informação acha-se, de resto, expressa no final de uma das traduções portuguesas da Regra, que integra um manuscrito alcobacense do século XV (BNP: Alc. 73), e é-nos transmitida pelo próprio tradutor: Regla [ ] conposta assi en linguagem por que fosse cõmũha a todos. conuẽ a ssaber a simplices e a ssabedores. (fl. 78v.). Segundo as pesquisas efetuadas, sabe-se que há sete manuscritos portugueses com o texto da Regra de São Bento oriundos do Mosteiro de Alcobaça, representando, portanto, mais de metade dos testemunhos deste texto. Por outro lado, se a estes sete manuscritos juntarmos os dois testemunhos alcobacenses com o texto latino, confirmamos a ideia de que este local foi, sem dúvida, um importante centro de difusão da Regula. Na verdade, em relação à produção manuscrita deste mosteiro cisterciense como já foi referido, o mais importante da Idade Média portuguesa a esse nível pensa-se que inicialmente os livros terão vindo da casa-mãe, em Claraval, tendo sido depois copiados no scriptorium de Alcobaça. Desta forma, os monges ficariam com os exemplares das obras mais necessárias à sua 15 Sete manuscritos conservados na BNP: Alc. 14 (séc. XIV) - Cf. BITAGAP manid 1127; Alc. 44 (séc. XV) - Cf. BITAGAP manid 1126; Alc. 73 (séc. XV) - Cf. BITAGAP manid 1124; Alc. 231 (séc. XV) - Cf. BITAGAP manid 1122; Alc. 223 (séc. XVI) - Cf. BITAGAP manid 1128; Il. 70 (séc. XV/XVI) - Cf. BITAGAP manid 1729; Il. 209 (séc. XVI/XVII) - Cf. BITAGAP manid 1901; dois manuscritos guardados no IANTT: SEMIDE, LIV. 3 (séc. XVI) - Cf. BITAGAP manid 4025; CF 99 (séc. XVI/XVII) - Cf. BITAGAP manid 1583; um conservado na BPMP (séc. XV - final): Azevedo 18 - Cf. BITAGAP manid 5235; outro no ADBP (séc. XV/XVI): Cf. Mss. 132 BITAGAP manid 1556; e outro no Museu do Mosteiro Cisterciense do Lorvão (séc. XVI): Lorvão 18 BITAGAP manid 4035; a acrescer a estes testemunhos, há ainda notícia de mais dois cuja localização é desconhecida (Cf. BITAGAP manid 4033 e manid 4034). A edição e estudo das traduções portuguesas da Regra de São Bento tem sido desenvolvido por um grupo de trabalho coordenado por Ivo Castro (FLUL). 5

disposição, quer para uso próprio quer para difusão noutros mosteiros dele dependentes. Esta ideia é, aliás, defendida por Aires Nascimento: Tenham ou não os actuais códices sido copiados já em território português, haveria de supor pelo menos a presença temporária de exemplares trazidos pelos fundadores; [ ] será mais razoável aceitar que boa parte dos nossos códices pertencentes aos sécs. XII e XIII são de origem estrangeira. 16. O mesmo autor acrescenta ainda: A procura no estrangeiro constituía o único meio de responder às exigências próprias de comunidades monásticas em fase de expansão. [ ] Para Alcobaça terão sido os monges de Claraval quem terá trazido os livros necessários à vida em comunidade organizada [ ] 17. Considerando que a difusão deste texto se estendeu por toda a Europa, é necessário, então, identificar a família europeia em que se integra a tradição portuguesa da Regula, pois, como vimos, haverá, muito provavelmente, uma forte ligação entre os mosteiros pertencentes a uma mesma ordem religiosa, o que implicará uma aproximação entre os manuscritos produzidos em Portugal e em França, pelo menos da parte dos mosteiros da Ordem de Cister. Considerando estes dados, fez-se, então, uma primeira análise comparativa dos dois códices alcobacenses com o texto da Regula Benedicti. Efetuámos, primeiramente, a transcrição diplomática do texto de ambos os manuscritos, seguindo-se o estudo das variantes. Este estudo, que implica uma comparação, palavra a palavra, do mesmo texto, revela, para já, que estes dois testemunhos apresentam pelo menos uma relação: o alc. 231 tem uma nota marginal que indica que aquela não é a disposição habitual do texto ( Este passo não se encontra aqui habitualmente. Volta a página e lê pela ordem disposta ); e no alc. 281 essa mesma parte encontra-se no final do texto, havendo uma nota na margem com essa informação: Aquele trecho que falta aqui está no final da Regra ; e no final do texto pode ler-se: Esta parte deve ler-se noutro lugar. 18. Seria expectável que uma indicação semelhante fosse encontrada numa das traduções produzidas em Alcobaça, mas tal não acontece e não há ainda dados suficientes que nos permitam estabelecer com segurança uma relação de dependência entre o texto latino e as 16 Aires Augusto Nascimento, Concentração, dispersão e dependências na circulação de manuscritos em Portugal, nos séculos XII e XIII (Coloquio sobre Circulación de Códices y Escritos entre Europa y la Peninsula en los siglos VIII-XIII Actas, Universidade de Santiago de Compostela, 1988), p. 62. 17 Ibid., p. 83. 18 Traduções efetuadas e conjeturadas a partir da respetiva leitura (parcial) dos manuscritos Alc. 231 e Alc. 218, respetivamente: Ista uerg[ ] quia non inuenit uulgius (?). Verte folium et lege disposito ordin[e] (alc. 231); Quamquam sententia[m] que desit [ ] in fine regule ; Ista pars alibi debet legi (alc. 281). 6

traduções alcobacenses. Relativamente à identificação da família europeia a que pertencerão estes manuscritos, foi efetuada uma comparação entre os dois manuscritos alcobacenses com o texto latino e os lugares críticos dos testemunhos mais relevantes das diferentes famílias da Regula, referidis no estudo de Vogüé e Neufville 19. Os dados obtidos indicam, então que, muito provavelmente, se integrarão no ramo mais difundido da Regula, a série gama, que corresponde ao texto contaminado, ou seja, a uma tradição textual composta sobretudo por manuscritos tardios e que tende a corrigir as versões anteriores, aproximando-se, assim, do texto primitivo da Regra de São Bento 20. Estes são, portanto, os resultados iniciais do projeto que temos estado a desenvolver e esperamos, em breve, contribuir com novos dados, de modo que se explorem todas as potencialidades deste texto que marcou a história e cultura portuguesas, não só ao nível da crítica textual, mas também ao nível linguístico, quer pela relação entre o latim e o português, quer pelo facto de as traduções portuguesas representarem épocas e estados distintos da língua, reunindo preciosas informações sobre a sua evolução. 19 Cf. Adalbert de Vogüé e Jean Neufville, op. cit., vol. I, max. p. 353-sq. 20 Cf. Adalbert de Vogüé e Jean Neufville, op. cit., vol. I, max. p. 315-sq. 7